Prosseguindo a discussão da unidade de esquerda, disse que, na minha opinião, essa discussão teria de ser fundamentada em dados objetivos, não em pressupostos morais subjectivos. Não com indignações virtuosas de quem paira acima das responsabilidades dos partidos, apresentados como incapazes de verem a fada de salvação da esquerda que esses iluminados dizem ser, sem que, ao menos, proponham a tal plataforma mínima ou credível que reclamam.
Neste texto e nos que se lhe seguem, tentarei lembrar aos leitores o que são coisas fundamentais que dificultam essa unidade (a não ser que nos contentemos com um acordo de generalidades, sem efeito prático numa acção coerente e coesa de governo). Não tomarei partido por nenhum dos partidos, mas tomarei posição em relação a cada posição ou proposta concreta. Vou começar hoje pelo PS.
Partido Socialista
A atitude inicial do PS foi de quase silêncio, compreensível por parte de quem estava comprometido com a negociação e assinatura do memorando de entendimento com a troika. Posteriormente, foi denunciando os custos da “austeridade exagerada” [?] e defendendo a necessidade de uma política de crescimento e de combate ao desemprego, a meu ver não concretizada em propostas concretas.
Aliás, nem vejo como o poderia ser. Não querendo o PS admitir formas radicalmente diferentes de financiamento e estando totalmente dependente do resgate troikiano (e, no futuro, provavelmente aceitando um segundo resgate ou um programa cautelar do MEE e compra de dívida pelo BCE, por OMT) não se vê como pensa o PS financiar essas políticas de crescimento ou de alívio da austeridade a não ser por crença na fada europeia, que acordará depois das eleições alemãs.
A questão central posta pela posição do PS é “como conciliar a proposta de política de crescimento e emprego com austeridade, medidas estruturais e aceitação de metas gravosas?” Quem diz “entendam-se, porra!” também deve responder a esta pergunta.
As propostas do PS são a quadratura do círculo. No essencial, o PS, com bastante grau de generalidade e admitindo eu que com alguma (e estou a ser generoso) moderação em relação aos fanáticos troikistas, 1. é a favor do cumprimento do programa de resgate, embora defendendo algum alívio das taxas de juro e das metas de acerto do défice orçamental; 2. é contra a reestruturação da dívida (se incluir rejeição de parte da dívida e “hair cuts”; 3. é radicalmente contra qualquer hipóteses de estudo da possibilidade da saída do euro; 4. defende a renegociação com a troika do plano de “ajustamento” para que as obrigações do resgate (que o PS aceita) sejam menos punitivas em termos de austeridade; 5. da mesma forma, entende que a austeridade deve ser compensada com uma política de crescimento económico e de promoção do emprego.
Estas posições aparecem transparentemente na moção de António José Seguro ao último congresso do PS, “Portugal Primeiro”. O diagnóstico não levanta problemas: o governo está a empobrecer o país, falha previsões e não cumpre as metas [JVC - fosse este o problema!], as principais vítimas são os mais pobres, aumenta o desemprego e há sério risco de pobreza, a fatalidade da emigração, etc. Ataca também o famigerado corte dos 4 mil milhões, só para diminuir o défice para 2,5% em 2014 [JVC - afirmação incorrecta]. Também a caracterização da crise e da sua origem me parece, como leigo, corresponder à opinião séria, não contaminada pela caricatura do “governo que gastou demais”.
No entanto, recordando coisas médicas elementares, um bom diagnóstico só serve para propor uma boa e adequada terapêutica, com meios disponíveis e com medicações coerentes entre si ou que não se anulem em efeitos. Que terapêutica propõe o PS? Todo um mundo de medidas como se não houvesse a austeridade imposta pela troika e o definhamento da economia por retração da procura, causada por essa austeridade. O PS propõe aquilo que sabe ser impossível de cumprir sem antes se fazer o que o PS não quer, a denúncia do memorando e a reestruturação da dívida. Quer sol na eira e chuva no nabal. Não é sério.
O programa económico do PS, credível – em três páginas, há seis referências a “credível” ou “credibilidade” (para quem?) – visa estancar a perda (repare-se na subtileza, não é aumentar) do PIB, defender uma nova política europeia e adoptar uma agenda para o crescimento e emprego.
O que são as medidas para “estancar a perda de valor (PIB) da economia portuguesa? No essencial, já as referimos: renegociação com a troika “das condições de ajustamento com metas e prazos credíveis”, bem como dos prazos de pagamento de parte da dívida, medidas estruturais [o que são?] que conciliem rigor orçamental com crescimento económico.
O programa, na tradição do PS desde o “Europa connosco” e acompanhando posições europeistas de outro partido que discutiremos noutro "post", desenvolve com pormenor um amplo conjunto de medidas estritamente baseadas na crença da fada europeia, a contra-corrente da falta de solidariedade, neo-imperialismo e hegemonia de direita que se espalhou pela Europa. Parece-me sonhador defender-se – e esperar-se – como o PS um programa europeu de combate ao desemprego jovem, reforço da acção do BCE junto dos mercados financeiros (quando a acção actual já é inaceitável para o Bundesbank), mutualização de parte das dívidas, união bancária (teoricamente já criada), financiamento dos bancos pelo MEEF, convergência fiscal.
Repare-se na última proposta: “aprofundamento da União Económica e Monetária como resposta afirmativa à crise do euro”. É uma típica frase redonda, cujo significado eu bem gostaria de conhecer. A maior parte das propostas são requentadas e contam com a firme oposição da toda-poderosa Alemanha. São apenas uma forma de a social-democracia europeia, “animada” pela eleição do triste Hollande, parecer desmarcar-se. Foi assim que o Pasok tentou governar. Vê-se no que deu, para a Grécia e para o próprio Pasok.
Finalmente, o último dos pilares, o da agenda para o crescimento e emprego: qualificação das pessoas, financiamento das PMEs, redução dos custos de contexto da actividade económica (custos administrativos, custos judiciais, funcionamento da administração), apoio à investigação e desenvolvimento tecnológico, promoção da economia verde e das energias renováveis, promoção das exportações [JVC – também para a Europa em recessão?], captação de investimento estrangeiro.
O mesmo programa repete-se nos cinco grupos de medidas apresentadas no início do ano no parlamento e muito parcamente divulgadas: parar com a austeridade; estabilizar a economia; implementar um programa de emergência para apoiar os desempregados; adoptar uma estratégia realista [?] para diminuição da dívida e do défice; agenda para o crescimento e o emprego.
Sendo repetição da moção ou das dez propostas a que me referirei adiante, relembro só o que é a tal estratégia “realista e credível” [novamente…] em relação à troika e ao resgate: “renegociação a) das condições de ajustamento com metas e prazos credíveis; b) do alargamento dos prazos de pagamento de parte [que parte?] da dívida pública; c) do diferimento do pagamento de juros dos empréstimos obtidos; d) dos juros a pagar pelos empréstimos obtidos; e) reembolso dos lucros obtidos pelo Banco Central Europeu pelas operações de compra de dívida soberana.
Claro que não são más propostas, antipopulares, mas é tudo muito curto, cobertor que não tapa os pés. Hoje quase não há nenhum economista liberal ou conservador que não defenda isto, mesmo os que, inicialmente, alinhavam acriticamente no coro de louvor à troika. E, afinal, até não foi Gaspar, apoiando-se no seu homólogo irlandês, que andou a negociar coisa parecida no Eurogrupo?
É sonho demais para uma concomitante aceitação, com vagos protestos, do empobrecimento causado pela troika, seguindo a linha dominante da economia política europeia. É uma proposta política com um pé cá e um pé lá, um no cumprimento das “obrigações morais de devedor honesto”, outro numa proposta aparentemente keynesiana. São obviamente incompatíveis. A Fed teve total capacidade de fazer “quantitative easing”, de se apresentar como emprestador de último recurso, de manter as taxas de juro muito baixas, não fazendo do medo da inflação a sua preocupação principal. Será que Seguro consegue ser o Ben Bernanke europeu ou convencer Draghi a sê-lo?
De tudo isto, veja-se só, como exemplo, o aspecto do financiamento da dívida. Segundo o BdP e o Deutsche Bank, Portugal precisa até meados de 2015 de 30 mil milhões de euros para pagar compromissos não anuláveis e para o serviço da dívida. É já considerada irrealista a ida aos mercados. Então, qualquer forma de “ajuda”, nos termos ortodoxos, implica mais austeridade e a recusa de políticas expansionistas (a não ser o fantástico “austeritarismo expansionista”).
Não esqueçamos também que, para o pensamento ortodoxo que o PS partilha, o pecado original é a dívida. À Reinhard-Rogoff, é a dívida que cria a recessão, não o contrário. Ora a renegociação da dívida nos termos em que o PS propõe aumenta a dívida. Como é que se pode compatibilizar com isto o projecto do PS? Ou o PS, austeristarista brando, não aceita a ortodoxia e o desprestigiado estudo R-R? Como disse acima, não é a quadratura do círculo?
Também é cada vez mais vulgar ouvir-se pessoas do arco troikista falarem como inevitabilidade de segundo resgate, mesmo que disfarçado com um programa OMT do BCE com condicionalidades troikistas. O El Pais de hoje anuncia-o e ouvi há pouco declarações de um dirigente do PS dizendo que só o PS é que está em condições de gerir esse segundo resgate sem os sacrifícios do primeiro. A mim, tanto se me dá quem me administra o veneno.
Claro que a solução poderia estar numa posição firme do PS a favor de uma renegociação da dívida, uma renegociação diferente – prefiro chamar-lhe reestruturação. A meu ver, firmeza, neste caso, significa várias coisas, em simultâneo: 1. um forte sentimento da independência e da dignidade nacional; 2. a atitude de negociar prioritariamente na perspectiva do devedor e não do credor; 3. negociar indissociavelmente todos os aspectos da dívida – legitimidade, recusa de dívida odiosa, maturidades, juros, montantes e eventuais “hair cuts”; 4. estar preparado para ir tão longe quanto possível e para assumir consequências negativas se elas forem menos nocivas do que a situação actual. Nenhuma declaração do PS permite ter-se confiança em que defenda esta atitude negocial.
Entretanto, o PS vai propondo medidas avulsas que, por causa destas constrições financeiras, se ficam por medidas avulsas de natureza legal ou fiscal. Para além do que já falámos, são exemplo recente as 10 medidas, propostas em 21 de Junho à Assembleia da República e viabilizadas pela maioria [JVC – afinal até pode haver entendimento, mas não à esquerda!], contra a vontade de Gaspar.
No essencial, são medidas de estímulo à oferta, não à procura: 1. pagamento das dívidas do Estado a horas, se necessário por intermédio de um banco; 2. renovação em 2013 dos seguros de crédito à exportação; 3. investimentos com participação dos cidadãos; 4. equiparação de juros e capital para efeitos fiscais; 5. redução dos impostos sobre lucros reinvestidos; 6. ampliação do tipo de garantias das empresas, para além de caução ou fiança; 7. actualização de juros; 8. sistema de conta-corrente com o fisco; 9. processo especial de revitalização; 10. IVA da restauração a 13%. Por outro lado, não discute a possibilidade de investimento com o que ainda vamos tendo de fundos, do QREN.
Não sou economista, mas duvido de que estas medidas, apoiadas pela maioria, ajudem significativamente à solução da crise. E talvez manifestem uma posição declarada do PS de ir por caminhos enevoados, pronto a “uma alternativa que inclua todos os partidos da esquerda e da direita”.
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