quarta-feira, 24 de julho de 2013

E se começássemos por perguntar o que é a esquerda?


(NOTA PRÉVIA – Este “post” é politicamente incorrecto e contém cenas eventualmente chocantes)

RESUMO: nenhuma discussão é válida sem entendimento sobre o significado dos termos. Clamar por unidade de esquerda exige entendermo-nos sobre o que é esquerda. Historicamente, teve grande evolução, o que não permite uma caracterização. Também por isto, a ambiguidade da noção actual de esquerda só permite uma caracterização muito ampla e difusa. Em tempo de crise, ou de bifurcação, dispomos de uma definição de esquerda que seja operacional?


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Com maior ênfase nestes dias recentes de jogos unitários cruzados, muito se discutiu a unidade de esquerda, com variantes ao gosto de cada um. Para uns, nunca com o PCP; para outros, nunca incluindo o BE. Curiosamente, todos incluindo sempre o PS. Parece indubitável que o PS é um partido de esquerda. Será? Para muitos, porque sim, porque sempre pensaram assim. Não valerá a pena reflectir um pouco?

Começo por deixar bem claro que a minha dúvida sobre esta questão não se reflecte, em consciência, em nenhuma atitude sectária. É para mim claro que o PS é o aliado natural e preferencial da esquerda, mas em circunstâncias históricas e políticas que não têm a ver, directamente, com a delimitação rigorosa da esquerda (com este nome ou outro, já que este nome tradicional e emblemático pode hoje favorecer confusões ou rejeições emocionais). E creio que essa delimitação é essencial para uma perspectivação dialéctica ou dinâmica – coloco-me nessa posição – dos processos políticos. 

“O que é a esquerda?” não é questão bizantina nem de mera terminologia. A meu ver, é necessária para evitar perverter o sentido de muitas discussões políticas, para evitar demagogias e, com isto, contribuir para o esclarecimento dos eleitores.

Claro que esta questão é mais ampla, incluindo as interacções com os movimentos sociais e com a rua, inorgânica. Todavia, por facilidade de discussão, fico pelos partidos. Também por facilidade, considero apenas o PS, o PCP e o BE, por pensar que o PEV não é determinante da política de UE.

Ainda previamente, uma primeira pergunta a conduzir adiante a uma dicotomia: basta a suavização da austeridade? Sérgio Lavos escreveu que “a Seguro bastou um módico de decência e olhar para o rasto de destruição que a austeridade está a deixar no país para acertar e ser, vá lá, coerente, para ganhar a batalha”. 

Pergunto: para vencer a crise e inverter o caminho para a desgraça a que nos estão a sujeitar, num quadro de política europeia intransigente e para qual não se vislumbra correcção que desobedeça ao ordoliberalismo, basta “um módico de decência”? E que a coerência fique pela que o PS mostrou (não estou a diminui-la)? E que seja isto o que se entende como coerência com a caracterização de um partido como de esquerda? É o que pretendo discutir.

É certo que, estando o PS mais pressionado, as suas propostas para a negociação à direita foram relativamente mais claras do que até agora. Mas são coerentes e realistas? Criticam-se as propostas do PCP e do BE porque irrealistas, mas sem se ter em conta que elas se inserem num quadro estratégico diferente, de luta e resistência. Pode-se duvidar da sua viabilidade, mas têm essa coerência: assumem a denúncia do memorando, a reestruração da dívida e, em último caso, o abandono do euro. As do PS são simpáticas mas inviáveis porque não têm sustentação numa estratégia de rejeição da austeridade. Não há austeridade dura e austeridade suave; há a austeridade punitiva – e isto é muito importante! – que não mudaremos com atitudes de meninos obedientes e bem comportados. Como é que o PS se propõe mudar isto?

Estou a falar de relações entre partidos a nível de direcção e de aparelhos centrais. Claro que é muito diferente a questão da convergência de membros individuais dos partidos para actuações conjuntas em sindicatos, comissões de trabalhadores (onde ainda há), acções sectoriais ou transversais (comunitárias ou temáticas) ou, tão importante hoje, no âmbito de movimentos sociais e políticos. Veja-se, por exemplo, como participaram socialistas conhecidos em acções como a Iniciativa Cidadã da Dívida ou o Congresso Democrático das Alternativas. Mais importante ainda, obviamente, é não confundir o PS-partido com o seu eleitorado.

Seria altura de perguntar, a começar, se o PS é de esquerda. Come se verá adiante, não é para mim questão essencial, é mais de rótulo e de que esse rótulo, sem mais crítica, condicione a definição do quadro de alianças. Quero dizer, evitar o raciocínio vicioso “é preciso unir a esquerda / o PS é de esquerda / logo é preciso unir PS, PCP e BE”. Hoje, vou preocupar-me mais com o primeiro termo. O segundo exigiria larga discussão, quanto à história do PS depois do 25 de Abril (e antes, por exemplo em relação às CEUD e às posições em relação à descolonização), às características sociais e ideológicas do seu eleitotrado, ao seu enquadramento internacional, ao seu programa, à sua cultura organizativa e funcional.

Mesmo sem esta discussão, creio ser opinião generalizada que o PS navega sempre ambiguamente por águas turvas. Essa ambiguidade permite-lhe ser uma espécie de atractor de “esquerda”, um álibi para gente que, psicologicamente e socialmente, foi criando relações com “gente bem”, se aburguesou (mais do que já eram). MES, ex-PCP, até um ou outro ex-LUAR. Continuaram de “esquerda”, moralmente tranquilos porque iam fazer do PS um verdadeiro partido de esquerda. Viu-se.

É paradoxal que muitos escribas que hoje tanto discutem esquerda e direita sejam os que, tipicamente, há tempos, diziam que já não fazia sentido distinguir entre esquerda e direita, que eram conceitos ultrapassados. A tal ponto que já não me lembro quem comentou que “quando ouvia uma pessoa dizer isso sabia logo que ela era de direita”.

Porque serve hoje à direita falar hoje de uma esquerda difusa em que situa o PS? Em primeiro lugar, se o comprometer com a política de direita, pode apresentar esta como uma política de “salvação nacional”, e lá conta com Cavaco, com isto prendendo o eleitorado num espartilho de bloco central, numa democracia  de consensos espúrios. Em segundo lugar, diferencia duas esquerdas, a moderada e a radical. 

A mensagem transmitida ao eleitorado, mesmo que com risco de alternância – que as forças socioeconómicas dominantes aguentam – é de que a esquerda moderada é sensata, realista, bem educada, de gente engravatada. A radical é irrealista, minoritária, só berra e não quer assumir a responsabilidade do poder, não é de pensar nela como alternância. Ao aceitar este papel, a esquerda moderada deve pagar o preço. Sempre houve a história do polícia bom e do polícia mau; mas também a do escravo bom e do escravo mau.

Até que ponto esquerda é um conceito com alguma perenidade temporal e manutenção de um corpo essencial de características?

Creio que a resposta é claramente negativa, até por haver vários critérios definidores da esquerda. Se virmos épocas passadas da história, faz algum sentido separar esquerda e direita em função de monárquica ou republicana, laica ou não (França, Assembleia de 1789)? Ou de princípios revolucionários depois das jornadas de 1848, cedo confundidos por cisões de socialistas, comunistas, anarquistas, contra os utópicos como Saint-Simon e Fourier? Ou de teorias gerais, nomeadamente prudhonianas ou marxistas? Ou, mais tarde marxistas e sociais-democratas?

Com tudo isto, a confusão evolutiva de uma noção de esquerda em sentido lato que vá desde polos a meu ver mal classificados – de extrema esquerda a centro-esquerda – leva a que, hoje, só um conjunto muito vago de tendências (nem lhes chamaria características) a caracterize grosseiramente: valorização da equidade e da justiça social, do Estado social (principalmente no caso europeu), aceitação de limitações à propriedade privada, defesa de regulação da especulação financeira desenfreada, maior aceitação das mudanças nos costumes, dos direitos das minorias, dos valores ambientais. Concretizando, esta esquerda em sentido lato, em Portugal, compõe-se do PS, do PCP (mais PEV) e do BE.

Em contrapartida, uma esquerda em sentido estrito tem tudo isto mas mais uma diferença essencial, de que decorrem políticas diferenciadoras: rejeita o capitalismo, mesmo que, com o fim último de o conseguir, faça a sua gestão em favor das classes populares (como se vê hoje na América latina). Concretizando, esta esquerda em sentido estrito, em Portugal, compõe-se do PCP (mais PEV) e do BE.

Até que ponto esquerda é um conceito operacional? Se a definirmos de modo abrangente, como acima, é certo que a unidade de forças que se reconheçam neste espectro um pouco vago de valores pode conduzir a políticas populares, de que há exemplos históricos (as frentes populares francesa e espanhola dos anos 30 – curiosamente “populares”, não “de esquerda” como a que recentemente candidatou Melenchon). Também a social-democracia nórdica obteve progressos indiscutíveis na construção do estado social.

No entanto, estas frentes são, em geral, defensivas. Podem ser até imperiosas em estado de guerra ou de catástrofe. Podem configurar uma natureza de força popular patriótica em situação de neo-imperialismo. Podem ser necessárias, com maior coesão a nível da esquerda em sentido lato para defesa – volto a insistir no carácter defensivo – quando as forças do capital, nacional e internacional, põem em risco conquistas sociais importantes.

Quanto a isto, há um aspecto essencial, de se estar ou não em situação de crise. As situações que referimos são de conflito e tensão, mas não obrigatoriamente de crise. Nestas situações, é sempre melhor alguma coisa do que nada e devem-se explorar todas as possibilidades de unidade, com cedências mútuas certamente necessárias. 

A nossa situação é diferente, é de bifurcação (uma perspectiva enriquecedora, com fundamento de modelos matemáticos, da velha dialéctica). Muito simplesmente, em história, a bifurcação é uma situação em que não há meios termos, atalhos, compromissos. Ou há escravatura ou há abolição. Ou há monarquia ou há república. Numa bifurcação, a escolha é imperiosa. Não se pode ir por um caminho e outro; quem escolhe um dificilmente pode ter por companheiro quem escolher o outro. Ceder mutuamente, pactuar, só se se ficar parado a conversar antes da bifurcação, com risco de ser apanhado pelo perseguidor que vem atrás.

Alguém tem dúvidas de que estamos em bifurcação, aliás com sub-bifurcações? 1. A nossa crise de austeridade recessiva resolve-se no quadro europeu porque a UE, o BCE e os países germano-centrados vão ver que o euro está em risco e que isto os prejudica grandemente. É a posição dos que acreditam na fada europeia, parte creio que minoritária do BE e alguns independentes umbilicalmente ligados às instituições europeias. 2. A resolução da crise impõe uma política nacional diferente, sem a sujeição extrema que tem havido aos ditames da troika. É a posição do PS, do PCP e da maioria do BE (claramente da sua direcção). 

Mas: 2.1. Pode haver uma solução moderada, com renegociação pacífica de prazos, metas e juros e com adopção (com que meios) de políticas de investimento e promoção do emprego. É a posição do PS. 2.2. O problema central não é a dívida ou o défice, mas sim a disfuncionalidade de origem do sistema do euro, que não permite “correcções suaves” ou cosméticas. Mau grado o reconhecimento de que a denúncia do memorando (e mesmo a indesejável mas eventualmente necessária saída do euro) tem custos, eles são menores do que os da política austeritária. É a posição do PCP e do BE.

Penso que, nesta situação de exemplar tensão dialéctica, só um grande milagreiro é que a pode resolver sem desiludir todos os que clamam por uma unidade impossível.

1 comentário:

  1. Creio que o conceito é útil para os que se opõem aos ordoliberais. Desde sempre que esquerda foi oposição ao status quo, incluindo no território do socialismo real, guiada pelo projecto de mudança, inspirado na utopia egualitária.
    Em vez de fugir ao rótulo, creio que os que querem esse projecto, por mais genérico que pareça, devem assumi-lo com alegria.
    Depois, essa noção é contextual.
    Um exemplo?
    Obama é de esquerda?
    Não? Leia-se o texto seguinte e questione-se quem entre nós o ousaria enquanto declaração política:

    "Hello everybody --

    The basic bargain of this country says that if you work hard, you can get ahead -- you can build a secure life for your family, and know that your kids will do even better someday.

    But for more than a decade, that bargain has frayed, and a devastating recession made it worse.

    Over the past four and a half years, America has fought its way back, laying a new foundation for more durable economic growth. But many of the challenges that faced the middle class before the recession remain. And Washington has taken its eye off the ball.

    Too many people in this town are focused on scoring political points or fanning phony scandals instead of finding ways to help grow our economy, create jobs, or roll back a 30-year trend of rising inequality.

    It’s time for that to stop. It’s time for all of us to focus on our top priority as a country, and that’s reigniting the engine of our prosperity: a rising, thriving middle class.

    That’s what I just said while speaking at Knox College, back home in Illinois, where I kicked off a series of speeches on what truly matters to the middle class.

    If building America from the middle out is an idea you share, I need you to stand with me. Add your voice to mine.

    This has been my North Star for as long as I've been in office, and it's what will shape the time that I have left in the White House.

    In the weeks ahead, in towns across the country, I’ll be talking about my ideas for building on the cornerstones of middle-class security: Good jobs with good wages. An education that prepares our children and our workers for a new economy. A home to call your own. Affordable health care when you get sick. A secure retirement even if you’re not rich. A better bargain for the middle class, and for all who are striving to join it.

    This is the debate we need to have. And you can join me right now.

    Let the country know that you believe that America works best not when it grows from the top down, but when it grows from the middle out:

    http://www.whitehouse.gov/a-better-bargain/speak-out

    Thank you,

    President Barack Obama"

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