sexta-feira, 12 de julho de 2013

A crise passou para Belém

Sobram os comentários sobre a crise reavivada pelo Presidente da República (PR). Custa não deixarmos registada a nossa opinião, mas não é fácil. A situação está muito incerta, certamente condicionada por informações reservadas. Provavelmente há pressões imperiais que desconhecemos, bem como pressões domésticas dos senhores do capital. Mas, acima de tudo, há perguntas suscitadas pura e simplesmente por certos factos parecerem totalmente desprovidos de lógica.

Julgo que o PR tem insuficiências conhecidas, mas não o considero desprovido de inteligência. Como político, aguentou-se 10 anos no palacete de S. Bento, constituiu uma rede notória de relações e passa por não dar ponto sem nó. Não se deve subestimá-lo, se os seus actos parecerem desprovidos de lógica.

Creio que, a menos que haja alguma coisa na manga, quase toda a gente considerará a proposta do PR como irrealista e imprudente. Imprudente porque a falhar, quase certamente – ou muito me engano – redundará em maior desprestígio de quem já anda muito na crítica do povo. Então, só uma coisa me parece ter lógica. O PR está a fazer uma provocação, sabendo que depois pode culpar os partidos pelo fracasso da sua proposta irrealista. Com isto, vai, populisticamente, apelar ao antagonismo de muita gente contra os partidos, favorecendo assim uma solução cesarista. A referência ameaçadora a “outras soluções no quadro do nosso sistema jurídico-constitucional” [?] não augura nada de bom.

Começo pelas eleições e com a declaração de interesses de que, como aqui tenho escrito, não vejo vantagens em antecipação das eleições. O PR justificou longamente, entre a tecnicidade e a exposição dos malefícios políticos, que não podia convocar eleições antecipadas. Mas alguém esperava que o fizesse, quando tem passado todos os últimos meses a declarar expressamente o seu apoio à coligação maioritária e a garantir apoio ao governo? Até aqui, nada de surpreendente.

Inaudito, sim, é que um PR anuncie eleições antecipadas com um ano de antecedência. Independentemente de grave problema relacionado com isto – e que é: que governo aceitará governar com morte anunciada? – não dá para acreditar que o PR possa ver para daqui a um ano, com certeza certa, o desaparecimento dos factores que, segundo ele, impedem agora a antecipação das eleições. 

Será que o PR acredita com inabalável fé de economista que, em Abril de 2014, a troika sai de um Portugal de excelente saúde financeira, respeitado nos mercados e com taxas de juro favoráveis? Ou, pelo contrário, o PR, informado pelas fontes governamentais, financeiras e europeias, sabe que é praticamente inevitável um segundo resgate ou, pelo menos, um novo programa de austeridade baseado em OMTs? Tudo leva a crer, desde a capacidade técnica do PR até à sua manifestada preocupação com o pós-troika, que a segunda hipótese é que é verdadeira, o que retira congruência à convocação de eleições para o ano e não agora.

Por outro lado, não há na comunicação do PR uma palavra a justificar as eleições em 2014. Seria lógico qualquer coisa como “entendo que o povo português deve ser chamado a pronunciar-se sobre a política que tem sido seguida e que continuará, mas, por restas e estas razões, não podem ser agora e convocá-las-ei logo que acertado, daqui a um ano”. Eu discordaria, mas reconheceria que, do ponto de vista do PR, tinha lógica.

Da mesma forma, promover agora um compromisso do arco da troika com incidência em formação de governo, com um programa a médio prazo (donde, se ainda entendo as palavras, para lá de 2014) e convocar eleições durante a vigência desse compromisso) é surrealista, Não me parece poder significar outra coisa que: “seja qual for o resultado eleitoral, uma grande maioria já está vinculada a uma política com expressão governamental”. É bom exemplo do descarrilamento da democracia a que, dia a dia, vamos assistindo. É a pós-democracia. 

Passemos aos partidos. O PR teve a suprema arte de os colocar a todos – os três troikianos, claro – em posição desconfortável. Diga-se mesmo que sob ameaça: “se esse compromisso não for alcançado, os Portugueses irão tirar as suas ilações quanto aos agentes políticos que os governam ou que aspiram a ser governo.” Se algum vai conseguir – ou quer conseguir – resistir à ameaça é coisa para se ver nos próximos dias ou semanas.

PS e PSD estão visivelmente atónitos, depois de o PR ter feito deles gato sapato. Ninguém pode acreditar que as negociações entre eles há uma semana não tivessem sido pautadas por linhas gerais de orientação discutidas entre o PR e Passos Coelho, logo na sequência da demissão de Portas.

Como é agora? O governo continua em plenitude de funções, diz o PR. Com ou sem demissão “irrevogável” de Portas? E como vai Portas e o CDS engolir a escandalosa afronta de ser apeado da importante posição que foi anunciada a todo o país? Quem se está a rir é Álvaro Santos Pereira.

E, das duas uma. Antes da comunicação feita por Passos Coelho com Portas ao lado, não informaram o PR, e são tontos e politicamente infantis; ou fizeram-no e então alguém não fica nada beneficiado na imagem de pessoa leal e séria.

Quanto ao PS, para o eleitorado de direita e até para parte do seu próprio eleitorado, continua prejudicado pelo ódio a Sócrates, pela história (diga-se que sem fundamento) de que a crise se deve aos seus gastos exagerados e a ter sido o principal subscritor do memorando com a troika. Também pela suas posições tíbias, não ganha apoio à esquerda. Por isto, apesar da grande perda da direita nas sondagens, o PS não beneficia. Ser agora convidado para o “clube da salvação nacional”, quando começava a desmarcar-se timidamente, foi um presente envenenado.

No meu último “post”, manifestei fortes críticas em relação às propostas do PS para nos libertarmos do sufoco da política austeritária que a troika nos impõe – com grande cumplicidade interna. No entanto, face à proposta do compromisso de “salvação nacional”, achei que o PS iria resistir ao canto suicidário da sereia, como aparentemente declarado por Alberto Martins. Todavia, não ponho as mãos no fogo, depois de o Expresso noticiar que “Passos e Seguro abertos a negociar”.

Note-se também que há omissão total do que o PR entende por “salvação nacional”, excepto no que respeita a procedimentos. Não vale o argumento de que é matéria de programa de um governo e de uma coligação que o suporta. O que se exige ao PR, quando decide uma medida de tal importância e até, para alguns, na área de penumbra dos seus poderes constitucionais, é que mostre ao país, sem ele próprio se comprometer em concreto com os partidos, o que são as vias de solução para a crise, os seus custos e expectativas, o esforço de afirmação de patriotismo, nesta crise de submissão neo-imperialista do país, que se exige dos agentes políticos.

Na realidade, à “austera, apagada e vil tristeza”, ao aumento moral e socialmente inaceitável do desemprego e à crescente pobreza dos velhos, à submissão vergonhosa a interesses estrangeiros – porque “também dos Portugueses alguns tredores houve algumas vezes” – junta-se uma doença porventura letal da democracia.

Na actual pós-democracia, a expressão popular é limitada a eleições ritualizadas e, quando apresentam riscos para a “seita dos grandes irmãos”, manipulam-se, como nos referendos dos tratados europeus, ou mesmo exige-se a sua anulação, como o referendo grego. Os direitos e liberdades são formais e reduzidos ao mínimo, só para salvaguarda das aparências. Os “poderes de facto” – capitalistas, corporações, irmandades diversas, comunicação social, certas academias, etc. – fazem e desfazem governos, corrompendo agentes políticos ou manipulando a informação. Os políticos “formam-se” cada vez mais nas juventudes partidárias ou entidades por elas controladas, como associações de estudantes, dando em pobres carreiristas em que a capacidade de intriga e de tráfego de influências pode sobrepor-se ao mínimo de inteligência e cultura. A corrupção destila pus como ferida infectada. A promiscuidade é escandalosa, de que é exemplo a porta giratória entre governos e grandes empresas ou, mais caricatamente, entre política e lugares de comentador ou colunista na comunicação social. Todo um bando de medíocres e arrivistas que parasitam as instituições democráticas baba-se, e tudo faz para, a beijar a mão dos sacerdotes da tal “seita dos grandes irmãos”.

É o que estamos a viver. Os próximos tempos, depois da comunicação do PR, serão de agravamento da crise. E lembremo-nos de que “um fraco rei faz fraca a forte gente”.

(A imagem retrata a repressão nas ruas de Paris em 2 de Dezembro de 1851, mais famoso como "o 18 brumário de Luís Napoleão")

1 comentário:

  1. Um grande, comovido abraço, João, se o nosso conhecimento - muito formal - lho consente.
    Não encontraria melhor expressão para a leitura que faço, com uma funda emoção que não a obscurece, antes ilumina.
    Talvez seja estação para frutificar, como algumas vezes tem acontecido - alastrando - na História.
    Obrigado.

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