segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Protetorado Helénico


Há coisas tão aberrantes, gerando tal convergência de críticas que se poderia dizer que não adianta escrever mais. Mas é mais uma voz. É o caso da proposta germânica de obrigar o governo grego à tutela de um “comissário de orçamento”, de nomeação europeia, com poder de veto sobre qualquer decisão de execução orçamental (impostos e despesas) - como se houvesse muito mais de ação de governo que não ficasse abrangida por isto. Se não, é rejeitado o segundo pedido grego de “ajuda”.
Foi notícia do Finantial Times não desmentida, mesmo confirmada  hoje pela própria Sra Merkel, com a supina hipocrisia de que se trata de uma ajuda amiga e generosa à Grécia. 
A proposta alemã inclui também a obrigação de a Grécia aprovar uma lei em que se fixe a obrigação de afetar a receita do Estado “primeiro e com maior importância” ao serviço da dívida. Só depois é que o governo pode gastar em funcionamento normal do Estado.
O governo grego rejeitou com indignação esta imposição. “Quem põe um povo perante um dilema entre a ajuda financeira e a dignidade nacional, ignora as lições históricas fundamentais”, disse o ministro das Finanças grego, Evangelos Venizelos. Mas tem credibilidade para que  se leve a sério essa indignação? Como bem escreveu Yanis Varoufakis, “que raio se esperava?  Quando um país aceita a lógica de empréstimos enormes sob condição de austeridade, vem sempre o momento em que os credores internacionais exigem poder executivo. Em linguagem de negócios, é custódia (“receivership”). Os políticos gregos assinaram todos esses diversos acordos, pelo que a sua atitude de agora estica a corda da credibilidade”.
Até em Portugal o ministro Portas manifestou publicamente a sua discordância com a proposta alemã. Pudera. Alguém garante que isto não chegará a Portugal, talvez mais cedo do que se pensa? Claro que Portugal não é a Grécia! (será que acreditam que ainda haja quem acredite nisto?)
Iluminado pela fé na austeridade, irracional como é toda a fé, o ministro Gaspar já jura pela próxima saída da crise. O ministro Álvaro também a anunciou para o fim deste ano, mas agora está mais prudente, diz que em economia há sempre imponderáveis e fatores externos. Para já, é tabu falar-se sequer na hipótese de segundo resgate. Seria demasiado cheiro a grego. Afinal, temos sido tão bem comportados, mais troikianos do que a troika! “Eppur”, os injustos mercados não nos baixam os juros… Malvados, não se faz isto aos melhores servidores da sacralidade dos tais mercados.
Afinal, o projeto de novo tratado, que está a ser preparado a mata cavalos, não prenunciava já  este espírito autoritário, arrogante, imperial, que a Alemanha agora mostra com total descaramento? E, como os outros 25 mais, o governo português vai aprová-lo e fazer tudo para a sua já praticamente garantida ratificação. Eu defendo um referendo, mesmo com o risco de aparente validação democrática do tratado, mas não parece que, em tão curto prazo, me valha a pena ignorar o distanciamento das forças políticas em relação a esta possibilidade.
E não se diga que o que se está a passar vai na lógica do espírito da construção da União Europeia. A proposta alemã em relação à Grécia, se for aprovada (espero para ver até amanhã, fim da cimeira, mas não aposto que não seja aprovada) institui coisa bem conhecida da história, um protetorado. Era coisa que fazia pensar em Marrocos, no Uganda, no Egito, na Pérsia, no Afeganistão ou nas Filipinas. Não me lembro de alguma vez ter havido um protetorado na Europa.

Ou melhor, houve situações de certa forma semelhantes no 3º Reich (curioso, outra vez a Alemanha a vir à baila neste escrito). Não falo dos países ocupados, mas do caso, por exemplo, da Eslováquia do monsenhor Tiso. Tenho curiosidade em saber como vai votar hoje ou amanhã o governo eslovaco acerca desta "agressão" à Grécia.
NOTA - Varoufakis também se dirige aos alemães, no mesmo “post”: “Conscientemente e com força, impuseram (…) condições de austeridade que mirraram a economia social grega. (…) Impuseram à Grécia uma política errada, bem como à periferia europeia em geral. Agora, têm de suportar as consequências.” Parafraseando uma coisa célebre, é preciso que se diga dos devedores abusados "no pagarán!"

P. S. (19:37) - “Estou firmemente contra a ideia de impor um comissário com essa missão só para a Grécia. Isso não é aceitável”, disse o presidente do Eurogrupo, o luxemburguês Jean-Claude Juncker, em declarações aos jornalistas à chegada ao Conselho Europeu que decorre em Bruxelas. (Público). Será que a Alemanha já começa a não ser o que era?...

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Sobre o populismo - os descamisados na net


Há dias, publicou-se um estudo que revelava que só 56% dos portugueses confiam ou valorizam como essencial a democracia. Felizmente, ao que penso, isto não significa que os restantes anseiem por uma ditadura. Nem esta, muito menos por manu militari, me parece ameaça próxima. Já não digo o mesmo de velha doença degenerativa da democracia, tão vulgar quando ela perde alma e caráter, que é a demagogia, nos tempos modernos bem exemplificada pelo populismo.
Começo por um exemplo de comentário de hoje a uma notícia de jornal, que até só era indireta, sobre o risco de incumprimento da nossa dívida. Vai como publicada, toda em maiúsculas (não tenho pachorra para passar para grafia decente), a forma netiana de berrar, com aquela “sabedoria” provinciana de que quem acaba por ter razão é quem berra mais (ou, também na net, a disfarçar os erros de gramática, muitas cores, muito “bold”, muitos tipos de letra em grande tamanho).
ACABEM, FECHEM TUDO O QUE SERVE AOS DEPUTADOS E POLÍTICOS PARA "SACAR" E NO FINAL AINDA VAI SOBRAR DINHEIRO PARA EMPRESTAR Á "EUROPA" A JUROS SUPERIORES AO QUE NOS EMPRESTAM A NÓS E ACABEM COM OS LADRÕES DE REFORMADOS E DE QUEM TRABALHA, INCLUINDO OS ALDRABÕES DE CRIANÇAS !!! ASSIM : 
NÃO É COM O CAPITALISMO QUE É PRECISO ACABAR...É PRECISO ACABAR COM A GANÂNCIA, PARTIDOS POLÍTICOS E PRINCIPALMENTE COM LADRÕES DE REFORMADOS E DE QUEM TRABALHA...ENTÃO SIM O MUNDO SERÁ PRÓSPERO E A HUMANIDADE VIVERÁ FELIZ !!! ACABAR COM VENCIMENTOS DE MILHARES DE "PENTELHOS" EM TODOS OS SECTORES DE ACTIVIDADE, LIMITAR AS PENSÕES A POR EX. 2000 € / MENSAIS, ACABAR COM AS PENSÕES DE DEPUTADOS QUE NÃO TRABALHAM 40 ANOS, ACABAR COM INDEMINIZAÇÕES A DEPUTADOS PARA VOLTAREM AO ACTIVO NO PRIVADO UMA VEZ QUE QUANDO SÃO DEPUTADOS ESTÃO A TRABALHAR NO...PRIVADO, TRANSFORMANDO A POCILGA DA REPÚBLICA NUM ESCRITÓRIO DE INTERESSES INSTALADOS !!! QUE NINGUÉM GANHE MENSALMENTE MAIS DO QUE O P.R. (NÃO ESTE! ), QUE A JUSTIÇA FUNCIONE, QUE OS EX-PRESIDENTES SE LIMITEM Á SUA PENSÃO E NÃO A CUSTAREM 300.000 EUROS ANUAIS AO POVO, ETC, ETC.
Este texto reproduz, no essencial, as centenas ou milhares que todos os dias se publicam, com a mesma indigência mental e política. Por exemplo, coisas elementares suscitadas por este texto. Se acabasse o “sacanço” dos políticos, que percentagem do PIB se pouparia? O que têm a ver os pedófilos com a dívida? Acabando-se com os partidos, não é preciso acabar com o capitalismo?! Um teto de rendimento de 2000 euros é coisa revolucionária, certamente inspirada na Coreia do Norte? Desde quando um ex-PR custa 300.000 euros por ano? Etc.
As pessoas estão zangadas, e com razão. Se, pelo tipo de educação que temos e da cultura que temos interiorizada, não sentimos muita tendência para o pensamento crítico, muito mais quando, sendo a zanga má conselheira, ficamos irracionais. 
Pior é o alinhamento com isto, alimentador, de uma mistura perversa de jornalistas, professores (principalmente de economia), opinadores e gurus. Ainda há dias um amigo me dizia que eu não tenho razão em denunciar a ação malévola (estou convencido de que é consciente) de Medina Carreira, parece que opinador arguto para muita gente de responsabilidade. Isto levou-me a ver a sua última participação, até porque o tema era a saúde, que julgo dominar minimamente. Percebi que ele agrade a gente evoluída e culta porque lhes excita o tradicionalismo político da crítica verrina entre clubistas, não de futebol.

Não há uma observação fatual que não venha embrulhada no ataque generalizado aos políticos (como se ele nunca tivesse sido). Parece que os "políticos", mesmo não encartados, gostam disso. Os simpatizantes do PS acham que ele está a criticar o PSD, vice-versa. A arraia miúda acha e bem que ele está a malhar em todos, como quem atira barro à parede.
Mas fiquei a perguntar-me como é possível que não se perceba que todas as suas observações “atraentes” contra a corrupção, o estatismo, a irresponsabilidade vão sempre cair em “se queremos saúde e educação, então temos de cortar nos salários e na segurança social, porque não há dinheiro”. Num só programa, esta mensagem foi repetida meia dúzia de vezes. Não se está a assistir hoje a uma espécie de “sado-psicopatologia” sobre o empobrecimento dos outros? Estarei porventura a ser delirante, mas é o que me vem à cabeça quando vejo pessoas a babarem-se de gozo com a austeridade, principalmente quando é para os outros. Há algum neoliberal fanático que ganhe menos do que os tais razoáveis 2000 euros por mês a que se referia o comentarista da notícia?
Já nem falo dos célebres gráficos, porque talvez seja preciso um pouco de domínio da estatística - minha obrigação profissional - para se perceber logo que aquilo não tem qualquer rigor, chegando até ao ponto de usar só valores nominais e não valores reais. O homem ou é senil ou é desonesto. Escolham.
Também me preocupa que este tipo de reação populista que invade a net e as conversas de café ou de mercado seja acarinhada por um outro tipo sofisticado de populismo (sei que vou apanhar por dizer isto), o de políticos que avalizam todo este discurso irracional de zanga quando expresso por novos “movimentos”, espontâneos, populares (?). Quando declaram o nascimento de uma nova democracia numa praça de Lisboa. 
É claro que não me passa pela cabeça que a esquerda, o caminho da revolução, se faça na biblioteca do British Museum. Mas fez-se muito aí! A questão é como enquadrar a zanga, a revolta, num quadro ideológico consequente e racional. E como impedir que os pensadores, os políticos mais experientes e com maior reflexão, resistam a esta terrível tendência atual para a sua infantilização e auto-degradação no populismo, mesmo que muito disfarçado de crítica superior e de nova sociologia.
Nada disto é verdadeiramente esquerda. Nada que seja inteletualmente viciado, mentalmente desonesto, pode validar uma ação política com futuro para além da pequenina vida dos profissionais da política. Vem-me à cabeça a dúvida sobre se Marx, que tanto discutiu o papel nefasto do “lumpen”, não acharia que hoje o “lumpen” tem computador, acesso à internet e possibilidade de malhar como sempre fez no verdadeiro proletariado a soldo da polícia, agora como escrita a soldo do sistema.
NOTA - Referi Marx, mas sobre este tema, sobre a construção das ideias feitas, da manipulação das mentes, de como se fazem as ideologias, de como isso se articula com os determinantes económicos estruturais do processo histórico, é imprescindível lembrar Gramsci e toda a sua discussão da hegemonia.
(Ilustração - Padre Malagrida)

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

A China aqui tão perto...

Recebi de um amigo alerta para este vídeo sobre os riscos das fantasias imobiliárias na China. Não me digam que isto não é assustador e não nos deve fazer duvidar de alguma coisa perversamente messiânica que por vezes ouço, “mas afinal, como último recurso para a crise mundial, há a China, que não vai deixar cair a ordem económica internacional”. Há alguns vídeos no YouTube, muito bem feitos, sobre a bolha imobiliária espanhola, para quem não leu toda a informação técnica disponível. Também não se esqueça que toda a atual crise começou com o "subprime" imobiliário nos EUA. Mas isto, à chinesa, é multiplicação por 1000.
Mas será que damos a devida atenção a estas coisas? Fico por vezes com a impressão de que ainda há muita gente a pensar paroquialmente, em termos de política tradicional. A nossa desgraça genética, os nossos políticos, a nossa corrupção, “as nossas culpas”, etc. Ao mesmo tempo, aquele elétrico que vamos a ver se apanhamos. Meninos, o mundo já não é só o Chiado do confronto entre João da Ega e Gouvarinho, a civilização já não nos vem só de comboio parisiense para uns escolhidos, nós somos um pequeno casinhoto da aldeia global
Como Graciliano satirizava Getúlio, pensando no nazi-fascismo, “até o nosso fascismo é pequenino, tupinambá”. Em contrapartida a esta visão de crítica política tradicional - mas merecedora do maior respeito, enquanto no seu tempo histórico -, os que, como eu, reduzem ao seu devido nível o que é a nossa política interna e mandam para a miséria do ridículo os que lá devem estar, como os gurus, os opinadores de serviço e os novos Malagridas, são uns lunáticos que só sabem ver a crise de hoje como sistémica. Dá mais jeito usar a crise para a farpa paroquial. Quase que parece haver um clube espúrio de gente "bem pensante", só porque é superior à canalha da política. O VPV, o MEC, o MST - estão a ver como todos os conhecemos por siglas? - até são gente muito inteligente. E basta! Por mais farpianas e com magnífica verve que sejam algumas crónicas que se leem ao estilo de tertúlia, os tempos hoje são outros, em termos de análise e debate político. Sistemática, global, com bom fundamento de economia política.
O filme que referi logo no início dá boas razões para pensar que há ameaças sistémicas para além da Europa. Da China de hoje, não se quer perceber que é uma das mais perversas experiências da história, isto, obviamente, quando confrontado com a nossa visão euro-afro-americana de paradigma de civilização, a mescla da herança greco-romana e da civilização semítica, da revelação, nas suas diversas variantes.

A civilização chinesa é diferente. Não é só uma questão de cultura, costumes, tradições. É uma civilização milenarmente diferente. Por exemplo, é vulgar lerem-se coisas a defender que há uma irredutibilidade entre nós e o mundo islâmico por diferença de civilização. É falso, partilhamos as raízes da civilização construída pelo homem africano quando ocupou o crescente fértil, que, milhares de anos depois, deu a civilização da revelação monoteista, do livro, da ética radicada na religião, depois magnificamente imbricada com a civilização greco-romana. É experiência muito mais próxima para nós, na origem longínqua, do que a do homem primitivo que foi povoar o leste. Ou julgam que a a evolução do homem biológico-cultural não conta?

Marx percebeu esta dificuldade de inserir uma civilização diferente na sua teoria da evolução económica e da estrutura social de classes. A sua genial análise da história do capitalismo é circunscrita à Europa centro-ocidental e isto explica que a sua concretização prática na Rússia, fora do enquadramento marxista mas invocando-o abusivamente, tenha “destruido” (?) a credibilidade do pensamento de Marx. Contra alguma facilidade do pensamento comunista das últimas décadas, entendo que a contradição entre o "socialismo real", soviético, e a racionalidade flexível e intelectualmente estimulante da obra de Marx não data da aberração estalinista. Já está em Lenine, até mesmo no primarismo ideológico de Plekhanov. Mais ainda nas coisas absurdas de Trotsky (a propósito, Louçã, V. ainda é trotskista?)
Em relação à Rússia e à China, Marx fala, honestamente com menor fundamentação científica, do “modo de produção asiático”, em que a dinâmica do desenvolvimento capitalista estaria muito condicionada pelo domínio político de toda a sociedade por um sistema e cultura imperiais, fortemente centralizado, totalmente dominado pelo Estado, sem verdadeira tensão dialética "livre" entre as forças e relações de produção. O que “o grande filósofo renano” (lembram-se de a gente ter de escrever assim?) certamente não pensou é que foi agora essa estrutura política imperial, invocando uma caricatura horrorosa do marxismo, que deu a base de poder para o atual sucesso económico chinês. 

O sucesso do capitalismo chinês é indissociável de um sistema político arrasante de toda a dignidade humana, a começar pelos direitos dos trabalhadores. A economia chinesa não é, no seu sucesso quantitativo, a prova da razão do mercado. Ela é o anti-mercado, o domínio da economia por um aparelho político totalmente oposto à ideologia económica liberal que nos hegemoniza. E só por isto tem sucesso.
O mundo ocidental, particularmente a Europa, forçado pela crise, está a abrir as portas (“as pernas”…) à China. O que é que isto nos vai custar como fim possível da nossa civilização? Queremos competir no mesmo terreno? Queremos adotar a civilização chinesa? Trocamos a nossa democracia pela cultura política de império? Reconhecendo que é caso anedótico (no sentido anglo-saxónico do termo), vamos aceitar a execução de um pobre ladrão com a família a pagar a bala, quando há já século e meio alguém na Europa escreveu um imenso romance sobre um ladrão de um pão, um pobre mas magnífico Jean Valgean? 

Querem continuar a discutir o Terreiro do Paço, ignorando que quem manda é uma sargenta qualquer que pode ter da vida e da história uma conceção imperial à chinesa? Que nunca leu Hugo? Nem sequer o seu Goethe? Obviamente muito menos Eça ou Ramalho, que nos vão deliciando na retro-projeção psicológica da nossa grandeza.
A propósito, o suplemento Ypsilon (13.1.2012) do Público traz um grande artigo sobre os maoismo em Portugal. O que é verdadeiro dá vontade de rir, tantos anos depois. Há coisas de que já nem me lembrava. Por exemplo, do Eduino, da AOC e do castelo de Guimarães! O que não é verdadeiro, e é muita coisa, inquieta, em termos de desconhecimento jornalístico de um passado afinal não tão distante. Por exemplo, expoente da extrema esquerda maoista, o Veiga de Oliveira! E outra coisa omissa neste trabalho e em que ainda ninguém pegou de forma sistemática e elaborada: quais as motivações políticas, ideológicas, sociais, psicológicas, para que toda uma data de gente tenha passado diretamente do maoismo para o PSD (Barroso, Pacheco Pereira e tantos mais), sem transição sequer pelo PS (como Lamego, M. João Rodrigues, Ana Gomes e poucos mais)? Não me digam que a minha pergunta é ingénua. Eu sei bem a resposta, estou só a provocar.
Ainda uma nota final, a roçar o ridículo. O tal suplemento fala só de maoistas portugueses e de relações com a China. Não é verdade, houve os pós-maoistas. A partir de certa altura, já depois do 25 de Abril, confundida com a maluqueira do circo dos grupos de extrema esquerda, a China fechou a torneira. Desconfio de que também havia nisto alguma coisa ligada às ex-colónias, com quem a China só se prejudicaria, em relações de todo o tipo, mostrando relações com o folclore português. O resultado é que, como se devem lembrar, a referência ideológica do único grupo que se manteve (fora o caso especial do MRPP, porventura sustentado por outros lados opostos), a UDP, era… a Albânia. Até um hoje conhecidíssimo político atual me chegou a oferecer um folheto panegírico do Enver Hoja, quando lhe sugeri um BE imaginado 10 anos antes do tempo devido.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Por onde anda a fada da confiança?


Julgo que foi Paul Krugman que popularizou esta da “fada da confiança”. A economia deixou de ser um domínio quase-científico da racionalidade e da objetividade, passou a ser um conto de fadas. É exemplo típico da economia-ideologia, para mais articulado com a economia-moral.
Diz a fada: “os mercados precisam de confiança, senão fecham a torneira do crédito”. As agências de “rating” são o termómetro dessa confiança. Para os fanáticos do neoliberalismo e do pensamento dominante, não interessa que os critérios de confiança sejam os de quem decide, neste caso as agências, muito menos os académicos até Nobel, mas os seus próprios critérios dogmáticos. Como dizia a mãe do recruta no juramento de bandeira (podia ser a Sra. Merkel), “só o meu filho é que marchava com o passo certo”. Para o pensamento dominante, a confiança dos mercados vem exclusivamente do cumprimento escrupuloso da política de austeridade imposta pelos credores máximos, UE, BCE, FMI. Porque os mercados nunca ouviram falar em crescimento, em sustentabilidade da dívida, em ter-se recursos suficientes para evitar a insolvabilidade...
Porque é que as agências não confiam em algumas dívidas soberanas? Porque esses países são mal comportados, trapaceiros em contas, vivendo acima das suas possibilidades, não vendo os exemplos prussianos, dizem os economistas de serviço. Portugueses e não só, até de bom nível intelectual e capacidade crítica, embarcam neste discurso. Não veem que a crise se fez com as nossas dívidas só porque houve créditos equivalentes de outros. Ninguém se empobrece sem que alguém se enriqueça! Não veem - e a propaganda hegemónica não lhes permite que vejam -  que a crise não é localizada, na periferia, é sistémica.
Quem melhor para lhes fazer ver do que gente de fora, hoje amaldiçoada mas afinal criaturas do sistema financeiro que nos rege? Porque é que a S&P baixou a dívida francesa para baixo do mítico AAA?
We also believe that the agreement [the latest euro rescue plan] is predicated on only a partial recognition of the source of the crisis: that the current financial turmoil stems primarily from fiscal profligacy at the periphery of the eurozone. In our view, however, the financial problems facing the eurozone are as much a consequence of rising external imbalances and divergences in competitiveness between the EMU’s core and the so-called “periphery”. As such, we believe that a reform process based on a pillar of fiscal austerity alone risks becoming self-defeating, as domestic demand falls in line with consumers’ rising concerns about job security and disposable incomes, eroding national tax revenues.
Traduzindo:
Também julgamos que o acordo [o plano EU de dezembro] se baseia apenas numa visão parcial da origem da crise: que a atual tempestade financeira radica primariamente na devassidão orçamental da periferia da eurozona. Porém, a nosso ver, os problemas financeiros com que a eurozona se defronta são principalmente a consequência dos crescentes desequilíbrios das balanças comerciais e das divergências de competitividade entre o núcleo da união monetária europeia e a chamada “periferia”. Assim, cremos que um processo de reforma baseado apenas na austeridade orçamental arrisca-se a ser auto-derrotado, porque a procura doméstica [agregada] cai em paralelo com as dúvidas crescentes dos consumidores acerca da segurança no emprego e dos seus rendimentos disponíveis, com desgaste das receitas fiscais do estado.
Qual foi a resposta do sistema do euro, pela boca da Sra Merkel? “Estão a pressionar, temos de fortalecer o euro, avançar rapidamente para a disciplina orçamental”. Leia-se: mais austeridade, mais economia moral, mais penalização dos pecadores periféricos. Ela acredita na fada da confiança. Mas os critérios de confiança são os da sua débil estrutura mental, primarismo político de educação na RDA, ignorância da economia política, não os de quem de facto dita as regras.
Lembram-se do anúncio do coelho Duracell, que batia contra a parede e continuava a patinar, a patinar?

NOTA - Com o impacto desta história no coração do euro, nem se fala de que a dívida portuguesa foi mais uma vez desgraduada. Afinal, para a nossa crise, o que é que isto conta? O que conta é ir ao centro da nossa crise (nossa, como disse, é maneira de dizer).

domingo, 8 de janeiro de 2012

Referendo (II)

Eu quero um referendo sobre o novo tratado europeu, mas o tempo vai curto, as pessoas estão alheadas, muitos ativistas acham que outras coisas mais (controladamente!) mediáticas são mais importantes. Sem desprimor para auditorias, acampamentos, protestos sectoriais legítimos, penso que a luta contra o próximo futuro tratado é a prioridade. É transversal, alastra para a discussão de tudo e todos, o euro (acaba? Ficamos? Saímos?), a ideia da Europa, a soberania dos povos, a dialética entre a luta nacional e supranacional, o modelo de sociedade que determina os problemas dos “à rasca”.
Estamos a dois meses da efetivação, diria que inevitável, da revisão dos tratados europeus, agora na versão de tratado dos 17 da eurozona, a que aderirão mais nove países, ficando de fora o Reino Unido. Ficar de fora que podia ter sido por razões magníficas mas que o Sr. Cameron soube transformar em negócio de merceeiro.
Recordemos, muito sinteticamente, o que é a proposta Rompuy, apoiada pelo consenso de Bruxelas. Afinal, essencialmente, apenas a consagração da já velha proposta do “six pack”. 
1. Reforço da disciplina orçamental e limites orçamentais: limitação do défice estrutural a 0,5% do PIB, em concordância geral com o valor nominal de 3% definido por Maastricht; idem para o limite da dívida pública de 60% do PIB. Nada disto é novo nem muito importante. Novo é o que vem a seguir: todas estas regras têm de ser consagradas nas constituições dos estados membros ou em leis de igual valor.
2. A violação destas regras implica automaticamente, e sem processo de discussão política, a penalização do estado infrator, com multas pesadas. O estado infrator fica também obrigado a um processo de tutela europeia com base num “programa de reformas estruturais” (não sabemos o que isto significa?).
3. Os orçamentos nacionais são previamente escrutinados pelas instâncias europeias, antes de aprovados pelos parlamentos.
4. Todas as decisões são tomadas com base numa maioria suficiente de 85% mas com tal ponderação que, na prática, se consegue com a parelha franco-alemã mais dois ou três países do norte fanáticos do pensamento dominante. A Europa do Sul está lixada!
5. À boa maneira alemã, todas as dúvidas ficam dependentes dos tribunais constitucionais, esses aerópagos iluminados pelo Espírito Santo e acima do poder democrático dos povos. É o poder dos burocratas, dos juristas, dos economistas. Acabou-se a política, enquanto poder conferido aos representantes democráticos.
Se tudo isto é mau, ressalto a regra da imposição de alterações constitucionais. Nunca se viu. Vinte e seis chefes de governo, vinte e seis homens medíocres, combinam mudar as constituições que regem milhões de pessoas, constituições muitas vezes conquistadas com sangue, suor e lágrimas. Constituições que, tipicamente, só podem ser alteradas por maiorias qualificadas. Então como é que esses senhores estão tão certos de que o podem fazer - e podem mesmo? Porque, como sempre fizeram em relação aos tratados europeus, vão chantagear, vão ameaçar com as desgraças da perturbação da “construção europeia”, vão transformar referendos em coisa folclórica que, com pressão política, são torneados no ano seguinte. Franceses e holandeses votaram contra? Não faz mal, é só mais um ano, e no ano seguinte votaram a favor do tratado de Lisboa. Europa dos cidadãos? Estão a gozar?
Porque estão a brincar connosco, arrogantemente, eu digo que quero um referendo. Em termos absolutos, nunca antes houve tanta razão, porque está em causa agora a imposição do essencial da nossa soberania, a nossa constituição.
Todavia, as coisas nunca podem ser vistas em termos absolutos. Tendo falado há dias sobre a Suíça, nada mais apropriado para me lembrar dos “malefícios do referendo”. Afinal, sei que não há risco zero de toxicidade ou de avarias nem para o melhor medicamento ou o mais perfeito instrumento. 
Segui com atenção referendos e iniciativas legislativas na Suíça, habitualmente apontadas como exemplos de democracia direta. São de dois tipos muito diferentes. Primeiro é o exemplo folclórico dos velhos cantões (a que assisti), com os eleitores em palanque improvisado durante uma manhã. Votam, e bem, coisas menores e locais, regras de convivência entre vizinhos, esgotos, águas e caminhos, petições a Berna. Parece ter-se voltado à idade média. Quando o referendo é nacional, é uma desgraça. Resulta quase sempre em coisas execráveis de conservadorismo, de xenofobia, depois de campanhas da mais óbvia manipulação dos sentimentos primários, do populismo. E qual é a nossa experiência de referendos?
Portanto, primeira razão para me dizerem que uma proposta de referendo sobre o novo tratado é errada.
Na prática, embora o referendo seja extra-partidário, é óbvio que as máquinas partidárias são essenciais para a discussão do referendo. Quem apoia este referendo sobre a ratificação portuguesa deste novo tratado? O apoio declarado de Pacheco Pereira não conta para a decisão do PSD. Do CDS e do PS, nada se ouviu. O PCP disse que talvez. O BE disse em surdina que sim e depois calou-se.
Portanto, segunda razão para me dizerem que uma proposta de referendo sobre o novo tratado é errada.
As consequências políticas de uma derrota referendária da posição de recusa do tratado são negativas. Reforçam a nossa imagem de povo submisso aos capatazes europeus, de bons alunos, de pedintes envergonhados. Legitimam a autoridade dos troikianos que nos ensinam a portarmo-nos bem. Afinal, na prática, o sim referendário ao tratado obriga Portugal a ratificá-lo. Mas alguém pensa que, sem referendo, o resultado não será exatamente o mesmo, dada a composição da Assembleia da República? No entanto, reconheço, esta inevitabilidade ganha outra autoridade com o reforço referendário.
Portanto, terceira razão para me dizerem que uma proposta de referendo sobre o novo tratado é errada.
Outra característica essencial dos referendos é o frequente desajustamento do debate e das motivações instintivas dos eleitores em relação à “pergunta seca” do referendo. Neste caso, seria “concorda com a ratificação do novo tratado europeu?”. Claro que ninguém pensa limitar a isto a discussão. Virá tudo à baila, a austeridade, a política do governo, a reação popular instintiva contra os homens da pasta de executivo, a dívida, a necessidade ou não de auditoria, o desemprego dos “à rasca” e de muitos mais. 
E, afinal, aquilo que nenhuma das lutas parciais até hoje abordou minimamente: e o euro? Ficamos ou saímos? E a União Europeia? É a fada salvadora, se transmutada de sapo em príncipe por beijo dos deputados PE euroentusiastas, ou é um absurdo a arrastar-nos para o abismo?
Portanto, quarta razão, mas esta para eu dizer que uma proposta de referendo sobre o novo tratado é correta, acertada e merecedora da atenção de amigos que andam mais dedicados a outras iniciativas.

P. S. (9.1.2012) - Eu não tinha razão? Acabo de ler no Público online que o casal Merkozy, no fim de mais um encontro íntimo em Berlim (salvo seja, que comparação com a Bruni...) garantiu que o novo tratado será assinado pelos 26 fora o Reino Unido em 1 de Março. Como é que podem garantir isto? Infelizmente, podem. Só lhes falta garantir que todos os 26 países o vão ratificar, porque é coisa teoricamente para além dos poderes dos 26 boys. Mas escrevi "teoricamente", porque se calhar pensam mesmo que é coisa garantida. Se não lutarmos.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Em resposta a "Eu quero ser alemã?"

Resumo:
Como isto é longo, tentarei resumir. Ao contrário do projeto de União Europeia, as confederações, mormente as que se solidificaram de forma a evoluirem facilmente para estados federais, nunca foram utopias ou projetos políticos vanguardistas. Singraram porque se fizeram em luta contra opressões. 
Foram essencialmente processos de construção política de identidade comum, coletiva. A União Europeia, pelo contrário, tem sido feita numa lógica dos negócios, ao arrepio da construção de uma cidadania comum, solidária, que tem tido algum papel, reconheça-se, mas diminuto. 
Há quem veja como razões da atual crise financeira, do euro, e vêem bem, o irrealismo de uma construção tipicamente federal quando a Europa não é uma federação. Mas caem na armadilha de, por ser essa a falha, tentar resolvê-la com um salto para o abismo, no sentido de uma federalização que é só juntar crise política à crise económica e financeira. Quando não só nunca houve condições históricas, mas agora muito menos nestes tempos de enclausuramento nacionalista e egoista, para uma união centralizada dos povos europeus. 
Certamente muita gente - espero bem - vai rejeitar o tratado que se prepara. No entanto, alguns rejeitarão porque ele não será o conto de fadas da Europa com que sonham. Eu rejeito-o sem qualquer esperança frustrada; considero-o o reflexo inevitável da Europa imutável que temos e que teremos ainda durante um longo período histórico. 

Continuando a entrada de há dias e em resposta à minha amiga, aqui vão algumas considerações mais “secas”, certamente com menor impacto comunicacional que o seu texto, mas complementares. De quem aprecia a tal carta que recebi, por eu reconhecer que tendo mais para uma visão mais “cínica” da história.
A sua pergunta final é sobre a possibilidade de uma federação ser feita em condições de grande desigualdade. A história mostra que sim, no que toca a todas as atuais grandes federações bem sucedidas, Estados Unidos, Suíça, Brasil. Todavia, são casos muito particulares, embora com características comuns que nos permitem vislumbrar condições necessárias (mas não suficientes, porque nada é suficiente em História). Tudo depende da força do elemento aglutinador e das condições históricas em que surgiu a federação.
Se nos centrarmos naqueles exemplos, parece-me óbvio que o que as distingue radicalmente da União Europeia é que a sua união original foi de luta contra qualquer coisa, não um projeto desenhado em gabinetes de políticos. Também há os casos especiais de desbravamento de novos territórios, conjugando essa especificidade com uma origem comum, como na Austrália e no Canadá. Também muito especial a África do Sul, em que a forma mais recente da federalização foi um instrumento da superação do poder branco e do compromisso entre as duas grandes nações negras.

Mas ainda antes, e em linguagem de cultura geral porque não sou jurista nem muito menos constitucionalista, tenha-se em conta que a UE não é uma federação, como as que referi. Os membros de uma confederação, de que está mais próxima a UE, mantêm grau elevado de soberania, enquanto que os estados federados deixam de ter poderes estruturais do conceito de soberania: relações internacionais (embora, bizarramente, algumas repúblicas soviéticas fossem membros da ONU), forças armadas, emissão de moeda. Por isto, para melhor comparação com a UE atual, pensemos nas outras uniões enquanto ainda confederações.
Como disse, creio que o elemento fundador essencial é o de defesa comum ou de revolta. Estas uniões fizeram-se sempre contra qualquer coisa. Tendo vivido na Suíça, interessei-me pela sua história. Ao fazer feriado no 1º de Agosto, ao menos tinha de saber porquê. Em 1291, foi o pacto fundador de uma confederação. Durou até aos tempos napoleónicos, em que a Suíça se transformou numa república quase unitária, de que só mais tarde emerge uma verdadeira federação, consagrada, até hoje, pela reforma de 1848.
Os seus cantões de montanha fundadores da confederação, Schwiz, Uri e Unterwald, coisas minúsculas, viviam uma forma bizarra de feudalismo. O senhor estava longínquo, o Habsburg. Não se contava com ele para alguma defesa dos vassalos mais ricos e o seu representante, o bailio, era um tirano a dobrar, cobrando para o senhor mas também para ele. Tudo isto foi inscrito na lenda do Guilherme Tell. Depois, eram comunidades alpinas com fácil resistência militar, quase que de guerrilha. Aos poucos, foram servindo de polo de atração e de ajuda para outras pequenas comunidades também em luta, mas convindo tanto aos já confederados como aos novos manterem boa delimitação e garantia dos seus poderes cantonais.  Importante, construiram estradas ligando-os a comunidades das planícies. Mais tarde, o caso especial de Genebra, refúgio de Calvino. Também, nos tempos napoleónicos, os outros cantões francófonos, mas num contexto de quase guerra civil, a revolução de 1798. Importante é que a confederação nasce de uma rebelião e se faz sempre atrator de outras comunidades em rebelião. Até que os laços ficam tão fortes que permitem facilmente o passo seguinte, para uma federação.
No caso americano, são sobejamente conhecidos os fatores de união dos “wasp”: língua, costumes, respeito pela lei comum e pelos direitos tradicionais, minorias religiosas mal toleradas na metrópole. A luta contra o dominador inglês foi comum e essa luta comum cimentou a união. Novamente, a união faz-se “contra”, sempre o inimigo comum e de fora, quando se sente que isso é mais importante do que os provincianismos. Depois, mau grado o drama da secessão, a conquista do imenso território também foi comum. E a assimilação de muitos milhões de imigrantes fez-se num quadro bem vincado de “americanismo”.
Na história brasileira, salvo erro, o mesmo. Durante séculos, pouco unia as capitanias ou as entidades territoriais que lhes sucederam. A ida da corte para o Brasil e a criação do Reino do Brasil começa a unificação, mas creio que ela só se efetiva, e com dificuldades, mais uma vez “contra”, neste caso a seguir a 1820-22 e à sobranceria das cortes constituintes de Lisboa.
Não há nenhum “contra” forte, sentido unificadoramente pelos povos, na construção da UE. Ainda por cima, povos que se degladiaram durante séculos, como nunca suíços, americanos (fora a secessão) e brasileiros entre si. É verdade que há um “contra” na criação da CEE e, depois, da UE - exatamente esse risco de guerra permanente e a união como forma de a evitar. Não é por acaso que a primeira “comunitarização” é dos grandes fatores de guerra, o carvão e o aço, bem como da emergente energia nuclear. 
Mas esta coisa de um projeto europeu como limitativo do risco de nova guerra nunca foi sentido pelos povos que, aliás, sempre marcharam alegremente para as guerras europeias. Este artificialismo da criação da CEE como tampão contra a guerra explica bem como desde sempre (De Gaule / Adenauer) foi decisivo, na “real politik”, o eixo franco-alemão. Não se pense que é coisa só de Merkozy. Com exceção da Guerra dos cem anos, todos os conflitos europeus tiveram sempre origem nessa divisão terrível para a Europa que é o Reno.
Os povos europeus são tão diferentes como as cartas de um baralho, com a maior diversidade de histórias, formas de construção do seu estado vestefaliano e depois do seu estado moderno, mais ou menos direitos individuais e comunitários conquistados em períodos particulares de revolução, babel de línguas, templo barulhento de religiões com tendência para manu militari, que confusão. Só mesmo um “grande atrator” os unirá. Os ventos de leste?...
Uma eventual ameaça ou a perceção de um caminho conjunto para evitar a decadência civilizacional começará a unir as elites, os dirigentes sociais, políticos, económicos e culturais. Muito mais dificilmente os povos, que não se revêm em nenhuma verdadeira entidade europeia, política, social ou cultural. Nunca precisaram de arvorar uma bandeira europeia ou um cantar um hino comum para combater um inimigo externo a ameaçá-los a todos. Historicamente, o inimigo foi sempre interno.
A Europa tem disfarçado a sua falta de coesão política e de políticas comuns solidárias com coisas menores, embrulhadas em enorme burocracia. Mesmo algumas que tanto elogiamos, como o financiamento comunitário da investigação, só mesmo à escala da nossa pobreza, porque, para os países ricos, é uma pequena fração do seu investimento.  A nível daquilo que mais exprime o poder político, a projeção nos assuntos internacionais e o poder militar, nem se fala.
De facto, a União Europeia sempre foi apenas uma construção política ao serviço dos negócios e, crescentemente, de uma visão unificadora neoliberal. É a Europa da PAC e da destruição da agricultura dos seus países menos industrializados, como a Grécia e Portugal. Idem para as pescas. É a Europa do mercado único sem regulação dos movimentos nos mercados financeiros. Finalmente, acabou na Europa do euro, uma sobrevalorização das moedas dos países periféricos, que entraram num ciclo de perda de competitividade, défice da balança de pagamentos e, consequentemente, de dívida pública - e, pior, muito mais privada. Mais importante, a banca aproveitou o espaço económico europeu único mas, de facto, ao contrário de qualquer grande banco americano, tem uma perspetiva, foco de interesses, âmbito de relações de poder e estrutura social tipicamente nacionais.
Para muita gente, e lamentavelmente, a meu ver, alguns setores de esquerda que insistem no euro-entusiasmo, diria até euro-messianismo (talvez porque tivesse sido diferença neobatismal em relação ao seu passado), continua a dizer-se que "esta Europa é má mas a luta essencial é fazê-la boa". Homeopaticamente, o envenenamento trata-se com mais veneno. Mais, o remédio é um passo em frente para o abismo: “esta Europa intergovernamental está limitada, é preciso avançar para a federação, os Estados Unidos da Europa”.
Insisto: as confederações falharam sempre quando lhes faltava o essencial de uma federação, que discuti atrás. O que foi a Liga Hanseática? O Sacro Império? A Confederação germânica de 1820? Bismarck é que soube. E em tempos de que me lembro, a Federação Árabe, a República Árabe Unida, os Estados Árabes Unidos, a Federação das Repúblicas Árabes. Houve exceções de federações com muito artificialismo, mas com origens históricas muito particulares, como a URSS e a atual Alemanha Federal. 
Quando as confederações tiveram bases sólidas, de interesse comum fortemente sentido pelos povos das entidades confederadas, facilmente se avançou para a federalização. A língua comum ajudou muito, ou, como na Suíça, o frequente bilinguismo. Também, nos Estados Unidos, a conquista do Oeste ter sido feita por gente de todas as antigas colónias. Em regra, a federalização foi um processo natural, de reforço indiscutível dos laços de solidariedade entretanto adquiridos. Principalmente, houve o desenvolvimento de uma identidade nacional e, ligado a isto, a aceitação fácil, quase o desejo, de um forte poder central controlador dos egoismos regionais. Mas isto não se decreta.
Na Europa, os euro-entusiastas proclamam o desejo de avanço para o federalismo sem nada disto cumprido na prática. Muitos parecem dizer que é a limitação do caráter confederal reforçado (uma “coisa” que se chama vagamente de construção pelo método comunitário) que explica a crise atual e a paralisia cerebral do euro. Em parte, é alibi para atirar para outro terreno de luta o que na casa não se consegue fazer. Por outro lado, é sonho, mormente de políticos que com tal projeto político almejam figurar nos livros da história, como se esta fosse um jogo de xadrez ao invés da dinâmica social e da vontade/resistência dos povos.
A Europa está em crise económica e financeira e os eurofanáticos querem resolver a situação juntando crise à crise, isto é, agravando os conflitos que estamos a viver com um avanço voluntarista para a federalização, certamente gerador de uma crise política. Juntando crise política à crise financeira.
É que não é só não estar cumprido o caminho prévio que leva naturalmente do confederalismo ao federalismo. Pior, não só não cumprido como até antagonizado. Vivemos tempos preocupantes de xenofobia, de egoismos nacionais. Os governos, condicionados pelo eleitoralismo, condescendem com essa atitude e até a alimentam. O discurso hegemónico da “economia moral” cava fossos entre os povos europeus e contradiz as declarações piedosas sobre o grande projeto europeu. A imigração do terceiro mundo desperta racismos que são semente daninha que facilmente desabrocha em atitudes de antagonismo cultural, comparações étnicas - um dia destes genéticas, ainda vão ver - mesmo entre europeus. Nestas condições, não há condições subjetivas mínimas para avanços no sentido de uma utópica federação europeia.
Não me importo de pensar numa federação europeia se eu tiver a certeza de que um alemão me olha da mesma forma fraterna como um paulista olha para um cearense. Se eu tiver a certeza de que um holandês aceita que os seus impostos possam ajudar um grego como sei que um californiano tem isto como elementar em relação a um “midwest”. Se eu tiver a certeza de que tenho um banco central que, como a Reserva Federal, emite moeda a pensar no crescimento e não só na obsessão do controlo da inflação, coisa que os alemães ainda recordam de Weimar (a seguir votaram no Hitler), um banco central que é o “último emprestador” e que não está acima da vontade democrática dos povos.
Admito que paradoxalmente (eu acho que não), uma federação que tem como lema o respeito pelos direitos de estados iguais - grandes ou pequenos, ricos ou pobres - é também, inevitavelmente, um forte poder central, porque a união económica e financeira, a moeda comum, um tesouro comum a garantir esta moeda, a solidariedade e transferências orçamentais entre os estados, a fiscalidade harmónica, a dívida pública emitida e garantida em comum, tudo isto exige um poder central forte.
Obviamente, um poder central democrático. Quais são as propostas dos euro-entusiastas e quais são as perspetivas do seu sucesso no quadro desta “euroglobalização” burocrática, de hegemonia do pensamento neoliberal, ao mesmo tempo com cada vez maior preponderância de visões políticas medíocres, de eleitoralismo rasteiro? Julgam que Sócrates ou Passos Coelho destoam dos seus colegas? Ou que Barroso é pior candidato a primeiro-ministro europeu do que qualquer dos originários dos outros 26?
Qualquer americano ou brasileiro, por muito que sinta a sua comunidade local e o seu estado, dá a maior importância à vida política federal. Nós, europeus, não estamos em condições culturais e políticas para isto. Não se vislumbra que vamos votar num presidente, com o entusiasmo com que se votou em Obama ou em Lula. Ou claro que sim, em Rompuy!... Não se propõe que vamos ter senadores, os mais importantes agentes políticos dos estados federais. O Parlamento Europeu não é e não vai ser uma verdadeira câmara de deputados de toda a “nação”, com os poderes que têm os seus equivalentes federais. Não vai haver partidos europeus a fazerem campanha em todos os estados (não falo desse artifício de arranjos pós-eleitorais em Estrasburgo). Nunca, a médio prazo, vai haver um exército europeu.
Entretanto, o que nos vai sair em breve como novo tratado é uma importante limitação de soberania, no plano orçamental, até com penalizações, e sem nada em troca. E tudo decidido a nível intergovernamental, obviamente a toque de tambor alemão e de pífaro francês. 
É isto que queremos? Claro que a nossa corrente eurofantasista diz que não, que vai lutar contra isto, mas porque querem a tal outra federação que é um Godot que não sei quando virá. 
Mal por mal, comecemos por pensar na União da Europa Meridional. Porque não - até porque, como disse acima, a união faz-se "contra"? Claro que hoje não é possível, mas é discussão para a próxima vez.