domingo, 8 de janeiro de 2012

Referendo (II)

Eu quero um referendo sobre o novo tratado europeu, mas o tempo vai curto, as pessoas estão alheadas, muitos ativistas acham que outras coisas mais (controladamente!) mediáticas são mais importantes. Sem desprimor para auditorias, acampamentos, protestos sectoriais legítimos, penso que a luta contra o próximo futuro tratado é a prioridade. É transversal, alastra para a discussão de tudo e todos, o euro (acaba? Ficamos? Saímos?), a ideia da Europa, a soberania dos povos, a dialética entre a luta nacional e supranacional, o modelo de sociedade que determina os problemas dos “à rasca”.
Estamos a dois meses da efetivação, diria que inevitável, da revisão dos tratados europeus, agora na versão de tratado dos 17 da eurozona, a que aderirão mais nove países, ficando de fora o Reino Unido. Ficar de fora que podia ter sido por razões magníficas mas que o Sr. Cameron soube transformar em negócio de merceeiro.
Recordemos, muito sinteticamente, o que é a proposta Rompuy, apoiada pelo consenso de Bruxelas. Afinal, essencialmente, apenas a consagração da já velha proposta do “six pack”. 
1. Reforço da disciplina orçamental e limites orçamentais: limitação do défice estrutural a 0,5% do PIB, em concordância geral com o valor nominal de 3% definido por Maastricht; idem para o limite da dívida pública de 60% do PIB. Nada disto é novo nem muito importante. Novo é o que vem a seguir: todas estas regras têm de ser consagradas nas constituições dos estados membros ou em leis de igual valor.
2. A violação destas regras implica automaticamente, e sem processo de discussão política, a penalização do estado infrator, com multas pesadas. O estado infrator fica também obrigado a um processo de tutela europeia com base num “programa de reformas estruturais” (não sabemos o que isto significa?).
3. Os orçamentos nacionais são previamente escrutinados pelas instâncias europeias, antes de aprovados pelos parlamentos.
4. Todas as decisões são tomadas com base numa maioria suficiente de 85% mas com tal ponderação que, na prática, se consegue com a parelha franco-alemã mais dois ou três países do norte fanáticos do pensamento dominante. A Europa do Sul está lixada!
5. À boa maneira alemã, todas as dúvidas ficam dependentes dos tribunais constitucionais, esses aerópagos iluminados pelo Espírito Santo e acima do poder democrático dos povos. É o poder dos burocratas, dos juristas, dos economistas. Acabou-se a política, enquanto poder conferido aos representantes democráticos.
Se tudo isto é mau, ressalto a regra da imposição de alterações constitucionais. Nunca se viu. Vinte e seis chefes de governo, vinte e seis homens medíocres, combinam mudar as constituições que regem milhões de pessoas, constituições muitas vezes conquistadas com sangue, suor e lágrimas. Constituições que, tipicamente, só podem ser alteradas por maiorias qualificadas. Então como é que esses senhores estão tão certos de que o podem fazer - e podem mesmo? Porque, como sempre fizeram em relação aos tratados europeus, vão chantagear, vão ameaçar com as desgraças da perturbação da “construção europeia”, vão transformar referendos em coisa folclórica que, com pressão política, são torneados no ano seguinte. Franceses e holandeses votaram contra? Não faz mal, é só mais um ano, e no ano seguinte votaram a favor do tratado de Lisboa. Europa dos cidadãos? Estão a gozar?
Porque estão a brincar connosco, arrogantemente, eu digo que quero um referendo. Em termos absolutos, nunca antes houve tanta razão, porque está em causa agora a imposição do essencial da nossa soberania, a nossa constituição.
Todavia, as coisas nunca podem ser vistas em termos absolutos. Tendo falado há dias sobre a Suíça, nada mais apropriado para me lembrar dos “malefícios do referendo”. Afinal, sei que não há risco zero de toxicidade ou de avarias nem para o melhor medicamento ou o mais perfeito instrumento. 
Segui com atenção referendos e iniciativas legislativas na Suíça, habitualmente apontadas como exemplos de democracia direta. São de dois tipos muito diferentes. Primeiro é o exemplo folclórico dos velhos cantões (a que assisti), com os eleitores em palanque improvisado durante uma manhã. Votam, e bem, coisas menores e locais, regras de convivência entre vizinhos, esgotos, águas e caminhos, petições a Berna. Parece ter-se voltado à idade média. Quando o referendo é nacional, é uma desgraça. Resulta quase sempre em coisas execráveis de conservadorismo, de xenofobia, depois de campanhas da mais óbvia manipulação dos sentimentos primários, do populismo. E qual é a nossa experiência de referendos?
Portanto, primeira razão para me dizerem que uma proposta de referendo sobre o novo tratado é errada.
Na prática, embora o referendo seja extra-partidário, é óbvio que as máquinas partidárias são essenciais para a discussão do referendo. Quem apoia este referendo sobre a ratificação portuguesa deste novo tratado? O apoio declarado de Pacheco Pereira não conta para a decisão do PSD. Do CDS e do PS, nada se ouviu. O PCP disse que talvez. O BE disse em surdina que sim e depois calou-se.
Portanto, segunda razão para me dizerem que uma proposta de referendo sobre o novo tratado é errada.
As consequências políticas de uma derrota referendária da posição de recusa do tratado são negativas. Reforçam a nossa imagem de povo submisso aos capatazes europeus, de bons alunos, de pedintes envergonhados. Legitimam a autoridade dos troikianos que nos ensinam a portarmo-nos bem. Afinal, na prática, o sim referendário ao tratado obriga Portugal a ratificá-lo. Mas alguém pensa que, sem referendo, o resultado não será exatamente o mesmo, dada a composição da Assembleia da República? No entanto, reconheço, esta inevitabilidade ganha outra autoridade com o reforço referendário.
Portanto, terceira razão para me dizerem que uma proposta de referendo sobre o novo tratado é errada.
Outra característica essencial dos referendos é o frequente desajustamento do debate e das motivações instintivas dos eleitores em relação à “pergunta seca” do referendo. Neste caso, seria “concorda com a ratificação do novo tratado europeu?”. Claro que ninguém pensa limitar a isto a discussão. Virá tudo à baila, a austeridade, a política do governo, a reação popular instintiva contra os homens da pasta de executivo, a dívida, a necessidade ou não de auditoria, o desemprego dos “à rasca” e de muitos mais. 
E, afinal, aquilo que nenhuma das lutas parciais até hoje abordou minimamente: e o euro? Ficamos ou saímos? E a União Europeia? É a fada salvadora, se transmutada de sapo em príncipe por beijo dos deputados PE euroentusiastas, ou é um absurdo a arrastar-nos para o abismo?
Portanto, quarta razão, mas esta para eu dizer que uma proposta de referendo sobre o novo tratado é correta, acertada e merecedora da atenção de amigos que andam mais dedicados a outras iniciativas.

P. S. (9.1.2012) - Eu não tinha razão? Acabo de ler no Público online que o casal Merkozy, no fim de mais um encontro íntimo em Berlim (salvo seja, que comparação com a Bruni...) garantiu que o novo tratado será assinado pelos 26 fora o Reino Unido em 1 de Março. Como é que podem garantir isto? Infelizmente, podem. Só lhes falta garantir que todos os 26 países o vão ratificar, porque é coisa teoricamente para além dos poderes dos 26 boys. Mas escrevi "teoricamente", porque se calhar pensam mesmo que é coisa garantida. Se não lutarmos.

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