sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

A China aqui tão perto...

Recebi de um amigo alerta para este vídeo sobre os riscos das fantasias imobiliárias na China. Não me digam que isto não é assustador e não nos deve fazer duvidar de alguma coisa perversamente messiânica que por vezes ouço, “mas afinal, como último recurso para a crise mundial, há a China, que não vai deixar cair a ordem económica internacional”. Há alguns vídeos no YouTube, muito bem feitos, sobre a bolha imobiliária espanhola, para quem não leu toda a informação técnica disponível. Também não se esqueça que toda a atual crise começou com o "subprime" imobiliário nos EUA. Mas isto, à chinesa, é multiplicação por 1000.
Mas será que damos a devida atenção a estas coisas? Fico por vezes com a impressão de que ainda há muita gente a pensar paroquialmente, em termos de política tradicional. A nossa desgraça genética, os nossos políticos, a nossa corrupção, “as nossas culpas”, etc. Ao mesmo tempo, aquele elétrico que vamos a ver se apanhamos. Meninos, o mundo já não é só o Chiado do confronto entre João da Ega e Gouvarinho, a civilização já não nos vem só de comboio parisiense para uns escolhidos, nós somos um pequeno casinhoto da aldeia global
Como Graciliano satirizava Getúlio, pensando no nazi-fascismo, “até o nosso fascismo é pequenino, tupinambá”. Em contrapartida a esta visão de crítica política tradicional - mas merecedora do maior respeito, enquanto no seu tempo histórico -, os que, como eu, reduzem ao seu devido nível o que é a nossa política interna e mandam para a miséria do ridículo os que lá devem estar, como os gurus, os opinadores de serviço e os novos Malagridas, são uns lunáticos que só sabem ver a crise de hoje como sistémica. Dá mais jeito usar a crise para a farpa paroquial. Quase que parece haver um clube espúrio de gente "bem pensante", só porque é superior à canalha da política. O VPV, o MEC, o MST - estão a ver como todos os conhecemos por siglas? - até são gente muito inteligente. E basta! Por mais farpianas e com magnífica verve que sejam algumas crónicas que se leem ao estilo de tertúlia, os tempos hoje são outros, em termos de análise e debate político. Sistemática, global, com bom fundamento de economia política.
O filme que referi logo no início dá boas razões para pensar que há ameaças sistémicas para além da Europa. Da China de hoje, não se quer perceber que é uma das mais perversas experiências da história, isto, obviamente, quando confrontado com a nossa visão euro-afro-americana de paradigma de civilização, a mescla da herança greco-romana e da civilização semítica, da revelação, nas suas diversas variantes.

A civilização chinesa é diferente. Não é só uma questão de cultura, costumes, tradições. É uma civilização milenarmente diferente. Por exemplo, é vulgar lerem-se coisas a defender que há uma irredutibilidade entre nós e o mundo islâmico por diferença de civilização. É falso, partilhamos as raízes da civilização construída pelo homem africano quando ocupou o crescente fértil, que, milhares de anos depois, deu a civilização da revelação monoteista, do livro, da ética radicada na religião, depois magnificamente imbricada com a civilização greco-romana. É experiência muito mais próxima para nós, na origem longínqua, do que a do homem primitivo que foi povoar o leste. Ou julgam que a a evolução do homem biológico-cultural não conta?

Marx percebeu esta dificuldade de inserir uma civilização diferente na sua teoria da evolução económica e da estrutura social de classes. A sua genial análise da história do capitalismo é circunscrita à Europa centro-ocidental e isto explica que a sua concretização prática na Rússia, fora do enquadramento marxista mas invocando-o abusivamente, tenha “destruido” (?) a credibilidade do pensamento de Marx. Contra alguma facilidade do pensamento comunista das últimas décadas, entendo que a contradição entre o "socialismo real", soviético, e a racionalidade flexível e intelectualmente estimulante da obra de Marx não data da aberração estalinista. Já está em Lenine, até mesmo no primarismo ideológico de Plekhanov. Mais ainda nas coisas absurdas de Trotsky (a propósito, Louçã, V. ainda é trotskista?)
Em relação à Rússia e à China, Marx fala, honestamente com menor fundamentação científica, do “modo de produção asiático”, em que a dinâmica do desenvolvimento capitalista estaria muito condicionada pelo domínio político de toda a sociedade por um sistema e cultura imperiais, fortemente centralizado, totalmente dominado pelo Estado, sem verdadeira tensão dialética "livre" entre as forças e relações de produção. O que “o grande filósofo renano” (lembram-se de a gente ter de escrever assim?) certamente não pensou é que foi agora essa estrutura política imperial, invocando uma caricatura horrorosa do marxismo, que deu a base de poder para o atual sucesso económico chinês. 

O sucesso do capitalismo chinês é indissociável de um sistema político arrasante de toda a dignidade humana, a começar pelos direitos dos trabalhadores. A economia chinesa não é, no seu sucesso quantitativo, a prova da razão do mercado. Ela é o anti-mercado, o domínio da economia por um aparelho político totalmente oposto à ideologia económica liberal que nos hegemoniza. E só por isto tem sucesso.
O mundo ocidental, particularmente a Europa, forçado pela crise, está a abrir as portas (“as pernas”…) à China. O que é que isto nos vai custar como fim possível da nossa civilização? Queremos competir no mesmo terreno? Queremos adotar a civilização chinesa? Trocamos a nossa democracia pela cultura política de império? Reconhecendo que é caso anedótico (no sentido anglo-saxónico do termo), vamos aceitar a execução de um pobre ladrão com a família a pagar a bala, quando há já século e meio alguém na Europa escreveu um imenso romance sobre um ladrão de um pão, um pobre mas magnífico Jean Valgean? 

Querem continuar a discutir o Terreiro do Paço, ignorando que quem manda é uma sargenta qualquer que pode ter da vida e da história uma conceção imperial à chinesa? Que nunca leu Hugo? Nem sequer o seu Goethe? Obviamente muito menos Eça ou Ramalho, que nos vão deliciando na retro-projeção psicológica da nossa grandeza.
A propósito, o suplemento Ypsilon (13.1.2012) do Público traz um grande artigo sobre os maoismo em Portugal. O que é verdadeiro dá vontade de rir, tantos anos depois. Há coisas de que já nem me lembrava. Por exemplo, do Eduino, da AOC e do castelo de Guimarães! O que não é verdadeiro, e é muita coisa, inquieta, em termos de desconhecimento jornalístico de um passado afinal não tão distante. Por exemplo, expoente da extrema esquerda maoista, o Veiga de Oliveira! E outra coisa omissa neste trabalho e em que ainda ninguém pegou de forma sistemática e elaborada: quais as motivações políticas, ideológicas, sociais, psicológicas, para que toda uma data de gente tenha passado diretamente do maoismo para o PSD (Barroso, Pacheco Pereira e tantos mais), sem transição sequer pelo PS (como Lamego, M. João Rodrigues, Ana Gomes e poucos mais)? Não me digam que a minha pergunta é ingénua. Eu sei bem a resposta, estou só a provocar.
Ainda uma nota final, a roçar o ridículo. O tal suplemento fala só de maoistas portugueses e de relações com a China. Não é verdade, houve os pós-maoistas. A partir de certa altura, já depois do 25 de Abril, confundida com a maluqueira do circo dos grupos de extrema esquerda, a China fechou a torneira. Desconfio de que também havia nisto alguma coisa ligada às ex-colónias, com quem a China só se prejudicaria, em relações de todo o tipo, mostrando relações com o folclore português. O resultado é que, como se devem lembrar, a referência ideológica do único grupo que se manteve (fora o caso especial do MRPP, porventura sustentado por outros lados opostos), a UDP, era… a Albânia. Até um hoje conhecidíssimo político atual me chegou a oferecer um folheto panegírico do Enver Hoja, quando lhe sugeri um BE imaginado 10 anos antes do tempo devido.

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