terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Em resposta a "Eu quero ser alemã?"

Resumo:
Como isto é longo, tentarei resumir. Ao contrário do projeto de União Europeia, as confederações, mormente as que se solidificaram de forma a evoluirem facilmente para estados federais, nunca foram utopias ou projetos políticos vanguardistas. Singraram porque se fizeram em luta contra opressões. 
Foram essencialmente processos de construção política de identidade comum, coletiva. A União Europeia, pelo contrário, tem sido feita numa lógica dos negócios, ao arrepio da construção de uma cidadania comum, solidária, que tem tido algum papel, reconheça-se, mas diminuto. 
Há quem veja como razões da atual crise financeira, do euro, e vêem bem, o irrealismo de uma construção tipicamente federal quando a Europa não é uma federação. Mas caem na armadilha de, por ser essa a falha, tentar resolvê-la com um salto para o abismo, no sentido de uma federalização que é só juntar crise política à crise económica e financeira. Quando não só nunca houve condições históricas, mas agora muito menos nestes tempos de enclausuramento nacionalista e egoista, para uma união centralizada dos povos europeus. 
Certamente muita gente - espero bem - vai rejeitar o tratado que se prepara. No entanto, alguns rejeitarão porque ele não será o conto de fadas da Europa com que sonham. Eu rejeito-o sem qualquer esperança frustrada; considero-o o reflexo inevitável da Europa imutável que temos e que teremos ainda durante um longo período histórico. 

Continuando a entrada de há dias e em resposta à minha amiga, aqui vão algumas considerações mais “secas”, certamente com menor impacto comunicacional que o seu texto, mas complementares. De quem aprecia a tal carta que recebi, por eu reconhecer que tendo mais para uma visão mais “cínica” da história.
A sua pergunta final é sobre a possibilidade de uma federação ser feita em condições de grande desigualdade. A história mostra que sim, no que toca a todas as atuais grandes federações bem sucedidas, Estados Unidos, Suíça, Brasil. Todavia, são casos muito particulares, embora com características comuns que nos permitem vislumbrar condições necessárias (mas não suficientes, porque nada é suficiente em História). Tudo depende da força do elemento aglutinador e das condições históricas em que surgiu a federação.
Se nos centrarmos naqueles exemplos, parece-me óbvio que o que as distingue radicalmente da União Europeia é que a sua união original foi de luta contra qualquer coisa, não um projeto desenhado em gabinetes de políticos. Também há os casos especiais de desbravamento de novos territórios, conjugando essa especificidade com uma origem comum, como na Austrália e no Canadá. Também muito especial a África do Sul, em que a forma mais recente da federalização foi um instrumento da superação do poder branco e do compromisso entre as duas grandes nações negras.

Mas ainda antes, e em linguagem de cultura geral porque não sou jurista nem muito menos constitucionalista, tenha-se em conta que a UE não é uma federação, como as que referi. Os membros de uma confederação, de que está mais próxima a UE, mantêm grau elevado de soberania, enquanto que os estados federados deixam de ter poderes estruturais do conceito de soberania: relações internacionais (embora, bizarramente, algumas repúblicas soviéticas fossem membros da ONU), forças armadas, emissão de moeda. Por isto, para melhor comparação com a UE atual, pensemos nas outras uniões enquanto ainda confederações.
Como disse, creio que o elemento fundador essencial é o de defesa comum ou de revolta. Estas uniões fizeram-se sempre contra qualquer coisa. Tendo vivido na Suíça, interessei-me pela sua história. Ao fazer feriado no 1º de Agosto, ao menos tinha de saber porquê. Em 1291, foi o pacto fundador de uma confederação. Durou até aos tempos napoleónicos, em que a Suíça se transformou numa república quase unitária, de que só mais tarde emerge uma verdadeira federação, consagrada, até hoje, pela reforma de 1848.
Os seus cantões de montanha fundadores da confederação, Schwiz, Uri e Unterwald, coisas minúsculas, viviam uma forma bizarra de feudalismo. O senhor estava longínquo, o Habsburg. Não se contava com ele para alguma defesa dos vassalos mais ricos e o seu representante, o bailio, era um tirano a dobrar, cobrando para o senhor mas também para ele. Tudo isto foi inscrito na lenda do Guilherme Tell. Depois, eram comunidades alpinas com fácil resistência militar, quase que de guerrilha. Aos poucos, foram servindo de polo de atração e de ajuda para outras pequenas comunidades também em luta, mas convindo tanto aos já confederados como aos novos manterem boa delimitação e garantia dos seus poderes cantonais.  Importante, construiram estradas ligando-os a comunidades das planícies. Mais tarde, o caso especial de Genebra, refúgio de Calvino. Também, nos tempos napoleónicos, os outros cantões francófonos, mas num contexto de quase guerra civil, a revolução de 1798. Importante é que a confederação nasce de uma rebelião e se faz sempre atrator de outras comunidades em rebelião. Até que os laços ficam tão fortes que permitem facilmente o passo seguinte, para uma federação.
No caso americano, são sobejamente conhecidos os fatores de união dos “wasp”: língua, costumes, respeito pela lei comum e pelos direitos tradicionais, minorias religiosas mal toleradas na metrópole. A luta contra o dominador inglês foi comum e essa luta comum cimentou a união. Novamente, a união faz-se “contra”, sempre o inimigo comum e de fora, quando se sente que isso é mais importante do que os provincianismos. Depois, mau grado o drama da secessão, a conquista do imenso território também foi comum. E a assimilação de muitos milhões de imigrantes fez-se num quadro bem vincado de “americanismo”.
Na história brasileira, salvo erro, o mesmo. Durante séculos, pouco unia as capitanias ou as entidades territoriais que lhes sucederam. A ida da corte para o Brasil e a criação do Reino do Brasil começa a unificação, mas creio que ela só se efetiva, e com dificuldades, mais uma vez “contra”, neste caso a seguir a 1820-22 e à sobranceria das cortes constituintes de Lisboa.
Não há nenhum “contra” forte, sentido unificadoramente pelos povos, na construção da UE. Ainda por cima, povos que se degladiaram durante séculos, como nunca suíços, americanos (fora a secessão) e brasileiros entre si. É verdade que há um “contra” na criação da CEE e, depois, da UE - exatamente esse risco de guerra permanente e a união como forma de a evitar. Não é por acaso que a primeira “comunitarização” é dos grandes fatores de guerra, o carvão e o aço, bem como da emergente energia nuclear. 
Mas esta coisa de um projeto europeu como limitativo do risco de nova guerra nunca foi sentido pelos povos que, aliás, sempre marcharam alegremente para as guerras europeias. Este artificialismo da criação da CEE como tampão contra a guerra explica bem como desde sempre (De Gaule / Adenauer) foi decisivo, na “real politik”, o eixo franco-alemão. Não se pense que é coisa só de Merkozy. Com exceção da Guerra dos cem anos, todos os conflitos europeus tiveram sempre origem nessa divisão terrível para a Europa que é o Reno.
Os povos europeus são tão diferentes como as cartas de um baralho, com a maior diversidade de histórias, formas de construção do seu estado vestefaliano e depois do seu estado moderno, mais ou menos direitos individuais e comunitários conquistados em períodos particulares de revolução, babel de línguas, templo barulhento de religiões com tendência para manu militari, que confusão. Só mesmo um “grande atrator” os unirá. Os ventos de leste?...
Uma eventual ameaça ou a perceção de um caminho conjunto para evitar a decadência civilizacional começará a unir as elites, os dirigentes sociais, políticos, económicos e culturais. Muito mais dificilmente os povos, que não se revêm em nenhuma verdadeira entidade europeia, política, social ou cultural. Nunca precisaram de arvorar uma bandeira europeia ou um cantar um hino comum para combater um inimigo externo a ameaçá-los a todos. Historicamente, o inimigo foi sempre interno.
A Europa tem disfarçado a sua falta de coesão política e de políticas comuns solidárias com coisas menores, embrulhadas em enorme burocracia. Mesmo algumas que tanto elogiamos, como o financiamento comunitário da investigação, só mesmo à escala da nossa pobreza, porque, para os países ricos, é uma pequena fração do seu investimento.  A nível daquilo que mais exprime o poder político, a projeção nos assuntos internacionais e o poder militar, nem se fala.
De facto, a União Europeia sempre foi apenas uma construção política ao serviço dos negócios e, crescentemente, de uma visão unificadora neoliberal. É a Europa da PAC e da destruição da agricultura dos seus países menos industrializados, como a Grécia e Portugal. Idem para as pescas. É a Europa do mercado único sem regulação dos movimentos nos mercados financeiros. Finalmente, acabou na Europa do euro, uma sobrevalorização das moedas dos países periféricos, que entraram num ciclo de perda de competitividade, défice da balança de pagamentos e, consequentemente, de dívida pública - e, pior, muito mais privada. Mais importante, a banca aproveitou o espaço económico europeu único mas, de facto, ao contrário de qualquer grande banco americano, tem uma perspetiva, foco de interesses, âmbito de relações de poder e estrutura social tipicamente nacionais.
Para muita gente, e lamentavelmente, a meu ver, alguns setores de esquerda que insistem no euro-entusiasmo, diria até euro-messianismo (talvez porque tivesse sido diferença neobatismal em relação ao seu passado), continua a dizer-se que "esta Europa é má mas a luta essencial é fazê-la boa". Homeopaticamente, o envenenamento trata-se com mais veneno. Mais, o remédio é um passo em frente para o abismo: “esta Europa intergovernamental está limitada, é preciso avançar para a federação, os Estados Unidos da Europa”.
Insisto: as confederações falharam sempre quando lhes faltava o essencial de uma federação, que discuti atrás. O que foi a Liga Hanseática? O Sacro Império? A Confederação germânica de 1820? Bismarck é que soube. E em tempos de que me lembro, a Federação Árabe, a República Árabe Unida, os Estados Árabes Unidos, a Federação das Repúblicas Árabes. Houve exceções de federações com muito artificialismo, mas com origens históricas muito particulares, como a URSS e a atual Alemanha Federal. 
Quando as confederações tiveram bases sólidas, de interesse comum fortemente sentido pelos povos das entidades confederadas, facilmente se avançou para a federalização. A língua comum ajudou muito, ou, como na Suíça, o frequente bilinguismo. Também, nos Estados Unidos, a conquista do Oeste ter sido feita por gente de todas as antigas colónias. Em regra, a federalização foi um processo natural, de reforço indiscutível dos laços de solidariedade entretanto adquiridos. Principalmente, houve o desenvolvimento de uma identidade nacional e, ligado a isto, a aceitação fácil, quase o desejo, de um forte poder central controlador dos egoismos regionais. Mas isto não se decreta.
Na Europa, os euro-entusiastas proclamam o desejo de avanço para o federalismo sem nada disto cumprido na prática. Muitos parecem dizer que é a limitação do caráter confederal reforçado (uma “coisa” que se chama vagamente de construção pelo método comunitário) que explica a crise atual e a paralisia cerebral do euro. Em parte, é alibi para atirar para outro terreno de luta o que na casa não se consegue fazer. Por outro lado, é sonho, mormente de políticos que com tal projeto político almejam figurar nos livros da história, como se esta fosse um jogo de xadrez ao invés da dinâmica social e da vontade/resistência dos povos.
A Europa está em crise económica e financeira e os eurofanáticos querem resolver a situação juntando crise à crise, isto é, agravando os conflitos que estamos a viver com um avanço voluntarista para a federalização, certamente gerador de uma crise política. Juntando crise política à crise financeira.
É que não é só não estar cumprido o caminho prévio que leva naturalmente do confederalismo ao federalismo. Pior, não só não cumprido como até antagonizado. Vivemos tempos preocupantes de xenofobia, de egoismos nacionais. Os governos, condicionados pelo eleitoralismo, condescendem com essa atitude e até a alimentam. O discurso hegemónico da “economia moral” cava fossos entre os povos europeus e contradiz as declarações piedosas sobre o grande projeto europeu. A imigração do terceiro mundo desperta racismos que são semente daninha que facilmente desabrocha em atitudes de antagonismo cultural, comparações étnicas - um dia destes genéticas, ainda vão ver - mesmo entre europeus. Nestas condições, não há condições subjetivas mínimas para avanços no sentido de uma utópica federação europeia.
Não me importo de pensar numa federação europeia se eu tiver a certeza de que um alemão me olha da mesma forma fraterna como um paulista olha para um cearense. Se eu tiver a certeza de que um holandês aceita que os seus impostos possam ajudar um grego como sei que um californiano tem isto como elementar em relação a um “midwest”. Se eu tiver a certeza de que tenho um banco central que, como a Reserva Federal, emite moeda a pensar no crescimento e não só na obsessão do controlo da inflação, coisa que os alemães ainda recordam de Weimar (a seguir votaram no Hitler), um banco central que é o “último emprestador” e que não está acima da vontade democrática dos povos.
Admito que paradoxalmente (eu acho que não), uma federação que tem como lema o respeito pelos direitos de estados iguais - grandes ou pequenos, ricos ou pobres - é também, inevitavelmente, um forte poder central, porque a união económica e financeira, a moeda comum, um tesouro comum a garantir esta moeda, a solidariedade e transferências orçamentais entre os estados, a fiscalidade harmónica, a dívida pública emitida e garantida em comum, tudo isto exige um poder central forte.
Obviamente, um poder central democrático. Quais são as propostas dos euro-entusiastas e quais são as perspetivas do seu sucesso no quadro desta “euroglobalização” burocrática, de hegemonia do pensamento neoliberal, ao mesmo tempo com cada vez maior preponderância de visões políticas medíocres, de eleitoralismo rasteiro? Julgam que Sócrates ou Passos Coelho destoam dos seus colegas? Ou que Barroso é pior candidato a primeiro-ministro europeu do que qualquer dos originários dos outros 26?
Qualquer americano ou brasileiro, por muito que sinta a sua comunidade local e o seu estado, dá a maior importância à vida política federal. Nós, europeus, não estamos em condições culturais e políticas para isto. Não se vislumbra que vamos votar num presidente, com o entusiasmo com que se votou em Obama ou em Lula. Ou claro que sim, em Rompuy!... Não se propõe que vamos ter senadores, os mais importantes agentes políticos dos estados federais. O Parlamento Europeu não é e não vai ser uma verdadeira câmara de deputados de toda a “nação”, com os poderes que têm os seus equivalentes federais. Não vai haver partidos europeus a fazerem campanha em todos os estados (não falo desse artifício de arranjos pós-eleitorais em Estrasburgo). Nunca, a médio prazo, vai haver um exército europeu.
Entretanto, o que nos vai sair em breve como novo tratado é uma importante limitação de soberania, no plano orçamental, até com penalizações, e sem nada em troca. E tudo decidido a nível intergovernamental, obviamente a toque de tambor alemão e de pífaro francês. 
É isto que queremos? Claro que a nossa corrente eurofantasista diz que não, que vai lutar contra isto, mas porque querem a tal outra federação que é um Godot que não sei quando virá. 
Mal por mal, comecemos por pensar na União da Europa Meridional. Porque não - até porque, como disse acima, a união faz-se "contra"? Claro que hoje não é possível, mas é discussão para a próxima vez.

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