terça-feira, 30 de setembro de 2014

O país entrou “primariamente” em desvario

Acabou-se a saga das primárias do PS que, durante semanas, transformou a vida política num combate fratricida, sem substância, reduzido à política-espectáculo que cada vez mais envolve em jogo medíocre, políticos, comentadores e jornalistas. E que pretendeu transformar as primárias numa indiscutível inovação, um contributo para uma nova democracia.
Não quis falar muito sobre isso. Não me interessava por aí além nem era assunto que dissesse respeito à “minha” esquerda. No entanto, não o considerei irrelevante. Não sei se foram publicados os números de simpatizantes ou se há alguma ideia do seu posicionamento político. Também importante seria saber qual a percentagem de simpatizantes votantes em Costa. Isto porque casos desses que conheço (aceito que sem valor estatístico) indicam uma atitude menos partidária e mais táctica, querendo essas pessoas reforçar, por via de Costa, as possibilidades de vitória do PS nas próximas legislativas. Outros também afirmam terem usado estas primárias para facilitar, novamente por via de Costa, a unidade de esquerda, obviamente a mirífica unidade defendida pelos “convergencistas”. Pelo menos por uma vez puderam satisfazer o seu eterno desejo de votar num PS limpo e verdadeiramente socialista…
Não é que as pessoas tenham esquecido as cumplicidades do PS com a direita. E também os votantes em Costa sabem que ele não se comprometeu com nada, que não disse uma palavra que garanta uma governação radicalmente diferente. A questão está nisto, “radicalmente”. As pessoas estão descrentes que uma vaga esperança, nada de radical, já é alguma coisa. E também tão desesperadas que não podem esperar pela demora de uma verdadeira mudança de esquerda, neste momento limitada por uma votação ainda reduzida a cerca de 20%. Claro que não contam só os votos, numa perspectiva dinâmica da democracia.
Como bem escreveu Joana Lopes no seu blogue, “há só uma coisa que me entristece: ver tantos amigos cujos velhos ideais parecem estar reduzidos ao entusiasmo pelo mal menor. Não deve ser gente feliz.”.
Dito isto, há aspectos das primárias que merecem discussão. Note-se que não discuto a eleição do líder em directas, como fazem o PS, o PSD e o CDS, ou em eleição em congresso, como faziam antes esses partidos e julgo que ainda faz o BE, ou a eleição do secretário geral pelo comité central eleito em congresso, como faz o PCP. Ninguém tem questionado o grau de democraticidade destes processos. O que se discute agora é a inovação das primárias abertas, em que podem ser eleitores não militantes do partido. Teoricamente, até os candidatos podem não ser militantes.
Prós e contras?
Os apologistas das primárias e que as apregoam como grande inovação democrática, defendem que elas aproximam os eleitores e os eleitos; que quebram as relações de poder dos directórios partidários em relação aos candidatos; que já são prática corrente em outros países. Os opositores Lembram que as primárias pressupõem condições diferentes das nossas, nomeadamente círculos uninominais; que favorecem a personalização e o debate programático e de ideias; que dão azo a coisas de bastidores, nomeadamente no que toca a financiamento.
1. As primárias aproximam os eleitos dos eleitores? Não vejo qualquer prova. Só vejo um pouco isto nos sistemas anglo-saxónicos, mas por outras razões mais importantes: os deputados são eleitos em círculos uninominais (e eu, pessoalmente, não quero qualquer redução da proporcionalidade) e dispõem de um apoio técnico importante (gabinete, assessores, secretariado, orçamento). Por outro lado, estou a lembrar-me de um saudoso amigo, José Medeiros Ferreira que, no nosso sistema, enquanto deputado, passava um dia por semana nos Açores a receber quem o quisesse procurar.
2. As primárias favorecem a personalização e o populismo? Sem dúvida, como vimos nestas do PS. Personalização levada ao máximo, à luta de galos, ao escamoteamento de ideias programáticas, à demagogia populista de propostas desonestas. No entanto, isso é alguma coisa de novo? Nos partidos do centrão, há quanto tempo a política não se faz por programas, antes por técnica de agências de imagem e comunicação?
Há quantos anos que a política é um espectáculo? Não me aquece nem arrefece que as primárias venham ainda mais contribuir para isto. É há uma via de sentido obrigatório, na degradação da política, da democracia e do valor dos ideais de esquerda (no sentido lato em que muitos ainda acreditam).
E isto passou-se só agora no PS? Não é verdade que ninguém imaginasse que nas primárias directas do muito neo-democrático Livre, Rui Tavares não ficasse destacadamente em primeiro lugar, sem qualquer moção ou posição política, com legitimidade reforçada? E não será certamente o mesmo com o novo partido de Marinho (e) Pinto?
3. As primárias fora do sistema americano são incongruentes? Estou convencido de que sim. Ao contrário da realidade e tradição europeia, os partidos americanos não têm militantes com obrigações e direitos e a posição política do partido é pragmática, definida pela interacção entre as posições dos candidatos e o apoio dos seus eleitores. Não há um programa democrático ou republicano, mas sim aquilo que, em cada momento, o grupo de senadores ou representantes defende, atendendo aos seus interesses eleitorais e sentido de voto dos eleitores. Veja-se, notoriamente, que não há um líder de cada partido.
No entanto, há grande identificação entre eleitores e partido, nas primárias. Os candidatos, apresentados livremente (mas com necessidade de enormes financiamento!), são obrigatoriamente de um dos partidos e os eleitores, excepto em alguns estados que permitem o voto livre, só podem votar num dos partidos principais.
Note-se também, do que disse, que este modelo só funciona bem num sistema bipartidário. É o que queremos, com prática extinção dos partidos minoritários?
4. Ao que as primárias reduzem os militantes? Há pessoas que pagam quotas, que participam em reuniões, que trabalham nas campanhas. Nos momentos decisivos, são equiparados em direito de voto a inscritos de última hora, muitos por razões que ultrapassam o âmbito estritamente partidário, porque querem influir na escolha partidária em termos de efeitos na política geral. É correcto? Não me pronuncio, cabe a esses militantes.
NOTA 1 – Desculpem uma brejeirice. Eu detesto ver expressões de sobrancelhas em acento circunflexo. Dá-me a impressão de pessoas a fazer um grande esforço para controlar os esfíncteres. Vou deixar de ver assim o líder do PS.
NOTA 2 – Rui Tavares foi sempre um estrénuo defensor das primárias e quase fez disso bandeira nas entrevistas em que apresentou o Livre. Publica hoje no Público uma crónica serena sobre este processo. E ninguém lhe pode levar a mal que puxe pelos galres, lembrando que o primeiro caso foi o do Livre, não o do PS.

1 comentário:

  1. Quem é Joana Lopes para se pronunciar sobre a vida dos outros e as suas opções?'' Por muitas iguais é que deixei de militar em radicalismos e comecei a fazer o caminho de independência de lógicas infalíveis...

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