Tenho defendido uma aliança da esquerda à esquerda do PS, como elemento de coesão antes de qualquer entendimento com o PS. Com isto, creio que não posso ser acusado de “anticomunista primário”, mas isto não quer dizer que não tenha muitas críticas a fazer ao PCP.
Quando eu tenho dúvidas sobre posições do PCP, o meu prezado Vítor Dias faz sempre o mesmo, remeter-me para documentos oficiais do partido. Devo admitir que, em regra e assim conduzido, encontro resposta, bem articulada, com a coerência e a solidez ideológica que habitualmente se reconhecem no “partido”. Mas não é isto que está em causa. Se eu preciso de ir ler coisas escondidas sobre a Coreia do Norte, a China, o colapso da URSS, eu que me julgo interessado e intelectualmente activo, o que se dirá do cidadão comum?
Vivemos numa época de descrédito dos partidos. Vendo bem, pode-se distinguir nela duas fases sucessivas. A actual corresponde a uma imagem de corrupção, carreirismo, clientelismo, falta de ética (particularmente a chamada ética republicana), promiscuidade entre a política e os negócios. Os partidos mais afectados são os do círculo do poder, do rotativismo, os que, como “casta”, mais estão em foco na emergência, com muitas ameaças, mas compreensivamente, dos movimentos populistas.
Os partidos de esquerda são partidos com muito idealismo, fora do sistema de benesses do sistema político e, em regra, escapam a acusações de beneficiários da degradação da democracia. Mas, particularmente no caso do PCP, estão queimados por imagens quase indestrutíveis, daquilo a que chamei a primeira fase do antipartidarismo. Quanto ao BE, fora coisas inconsistentes, como a acusação de esquerda caviar, não percebo bem a linha de ataque da comunicação social.
A atitude em relação ao PCP é de análise difícil e de solução ainda mais difícil, tanto quanto uma pessoa de fora a vê, como eu, por ir ao fundo da identidade partidária e da “defesa do forte”. Pior porque muitos críticos, dissidentes, cristalizaram uma atitude anticomunista, retribuída, que não facilita uma discussão amigável. Mais ainda, porque as dissidências reforçaram, nos que ficaram, posições ainda mais sectárias, para além de questões que nem se punham nas dissidências. É o caso, por exemplo, do neoestalinismo que, ao que sei, nunca dividiu do PCP os que saíram, porque não era posição do partido.
Para a generalidade das pessoas, o PCP é um partido de gente honesta, ainda de muitos vivos que sofreram atrocidades. É um partido de luta. Mas, pelo que toda a gente ouve, é um partido que não quer governar, que só protesta, que não quer alianças, que não considera que o PS é de esquerda. As pessoas, presas à TV, ouvem isto da manhã à noite.
Queira-se ou não, isto significa que o PCP está queimado, numa época em que o que conta não são os programas mas sim a imagem feita pelo aparelho da hegemonia ideológica e informativa.
O PCP é um partido que esteve ao serviço de Moscovo, diz-se. Que apoiou a descolonização com “esbulho” dos retornados, diz-se. Que apoiou “o louco do Vasco Gonçalves” que metia medo ao discursar, diz-se. Que saneou milhares de pessoas (só eu saneei dúzias!), diz-se. Que não quis dialogar com sectores moderados, diz-se.
Nada disto para mim é verdade, mas há muitas outras, importantes, que são. Ainda antes do 25 de Abril, a Checoslováquia, em 1968. Desculpem a personalização. Quando entrávamos no PCP, com idealismo e sentido do risco, defrontávamo-nos com a batalha da propaganda. A nossa informação oficial, o Avante e mais esporadicamente o Militante, eram insuficientes. Algumas coisas circulavam de boca em boca, por exemplo, em 1964, quando aderi, a total adesão do partido à crítica do estalinismo (por isto, tanto escrevo a manifestar a minha estranheza com o neoestalinismo que por aí vai). Mas, sensíveis a críticas que líamos a muita degradação burocrática do socialismo, muitos seguiram sofregamente o “socialismo de rosto humano” de Dubcek.
Apesar de o PCP, depois de um período ambíguo, ter apoiado a intervenção das forças do Pacto de Varsóvia, as posições gerais do PCP, quanto à sua proposta de revolução democrática e nacional, mereciam apoio e não configuravam um modelo soviético.
Mas muitos problemas houve depois do 25 de Abril.
Houve incompreensão, em vários momentos, das contradições do MFA, alguma obsessão em apresentar como ajustado o processo revolucionário inesperado à proposta de revolução democrática e nacional do PCP e ao levantamento nacional armado.
Houve voluntarismo e sobranceria – assim se vê a força do PC! – com recrutamento descontrolado de militantes, alguns dos quais inqualificáveis oportunistas (compreensivelmente, a saírem do PCP na sequência do 25 de Novembro).
Houve sectarismo, principalmente em relação ao PS. Houve pressões políticas irrealistas, como a unicidade sindical. Mas também muita gente se esquece de muita calúnia contra o PCP, como no caso República.
Houve pouco trabalho de reflexão social e ideológica, o que se compreende bem no calor da luta, mas que era importante.
Houve irrealismo em relação ao movimento popular, como se fosse natural que as dezenas de milhares que antes aplaudiam Caetano no Jamor de repente saíssem honestamente à rua no primeiro de Maio.
Cultivou-se, como imagem de marca do funcionamento partidário, o hierarquismo com relevo burocrático do funcionário político, muitas vezes tão atarefado que desligado de uma vida social normal, o tarefismo de dedicação quase total ao partido (cheguei a ter reuniões todas as noites, sem quase ver os meus filhos), o administrativismo, com reuniões infindáveis a discutir em colectivo coisas de minudência (quantos metros quadrados de pavilhão da Festa do Avante cabiam a cada célula do meu sector).
Mesmo a seguir ao 25 de Novembro, em que era absolutamente necessária uma profunda discussão política, a atitude foi apologética, tanto mais grave para quem, e não eram poucos, sabiam o que havia, e bem, de tentativas do PCP para se evitar o drama do 25 de Novembro e que estavam entalados entre a apreciação de uma situação política condenada, como a do V governo e da corrente de esquerda do MFA, nas vésperas de Tancos, e, por outro lado, o apoio popular não controlado pelo PCP ao estertor do gonçalvismo, como no comício de Almada. Pior quando depois tiveram de ter encontros frequentes com militares.
A certa altura, para muita gente que tinha tido uma experiência ou visão diferente do PCP, e na falta de uma autocrítica sobre comportamentos negativos do partido, ou pelo menos não controlados, pôs-se a questão do abandono, como atitude de coerência política e ideológica.
Tenho para mim, e por mim, que a questão se punha em termos simples: o PCP defendia, realmente, a sociedade democrática, aberta, progressista que se lia nos seus documentos, ou, se fosse governo, imporia uma sociedade fechada, burocratizada, regulada por um espírito estreitamente colectivista, afinal a dos países do mundo soviético, que a maioria das pessoas julga que ainda são o referencial do PCP? Isto não era imaginação, era o que víamos na Soeiro.
As propostas do PCP no domínio económico, da defesa dos trabalhadores, na luta contra a política troikiana, são claras e, a meu ver, merecem todo o apoio. Mas, quanto ao modelo de sociedade, à democracia participativa no concreto, ao exercício da cidadania, à humildade ética da vida política, ao rigor intelectual, há muito a esclarecer e a fazer ganhar apoio eleitoral.
Nos dois últimos parágrafos da sua reflexão, pelo menos, está resumido aquilo que torna insanável o conflito entre o Partido e nós - se me permite - que chegámos à definitiva conclusão que andávamos ali a alimentar uma ilusão - a ilusão de que o PCP rejeitasse realmente a ditadura "do proletariado". Primeiro, porque não seria do proletariado e sim dos dirigentes partidários; depois porque existe uma cultura de desprezo pela democracia formal, a pretexto de que a verdadeira democracia é outra coisa - sim, é outra coisa mas passa a ser coisa nenhuma quando não é também formal, isto é, quando confina "todo o poder aos sovietes", isto é, aos auto-proclamados representantes do povo.
ResponderEliminarAlgum dia o PCP terá uma direcção com lucidez e coragem para quebrar a teia em que a História a enredou e apresentar-se ao eleitorado de cara lavada? Para já, vão chamando publicamente "folhas secas" àqueles que não se contentam com a impotência política. E com esta cegueira
vão secando o terreno da confiança popular, arrogantemente esperando que o Povo compreenda as "suas" razões - é a noção que têm de "vanguarda do Povo". Um partido cujo discurso não ultrapassa o sindicalismo, não aspira a fazer vingar os interesses populares que proclama ao nível a que estes deveriam ser levados.