Numa entrada anterior, em que se discutia um processo de construção de uma aliança de esquerda, de um centro “núcleo duro” para um orbital de “forças fracas”, concluíu-se que, para muitos milhares de desiludidos, isto não bastaria sem ser acompanhado por novas perspectivas de prática política, de ética republicana-democrática, de perspectiva de um socialismo moderno, humanístico.
Não basta a junção das vontades e dos votos dos que se situam na verdadeira esquerda. São só 20% do eleitorado. Da zona esquerda do PS pouco virá. Há que contar mais com desiludidos, votantes em branco e principalmente abstencionistas ou cada vez mais cativados pelos populismos. Mas o que pode motivar uma inflexão para a esquerda desses desiludidos? E quem são eles?
É banal termos de considerar que a estrutura social (de classes) se complexizou. Nos tempos de Marx, a enorme massa de proletários tinha na sua margem apenas uma fracção de camponeses seus potenciais aliados e uma pequena fracção de pequeno-burgueses (comerciantes e empresários pior conta própria, artesãos, funcionários). Hoje, o operariado, incluindo o agrícola, está em retracção, aumenta enormemente o pessoal dos serviços e há grande osmose social, com influência e partilha de características ideológicas entre camadas sociais diferentes.
Isto significa que: 1. as bandeiras socialistas tradicionais e revolucionárias têm menor impacto. 2. a luta deve ser apelativa a largas camadas sociais não proletárias. 3. mas deve ser conduzida com o objectivo final revolucionário do anticapitalismo e do socialismo, sem o que deriva facilmente para conciliações com o capitalismo hoje em ofensiva, sob a forma de neoliberalismo.
Isto coloca grandes desafios à definição de uma política de unidade, a começar pelas crispações muitas vezes defensivas, por partidos e outras organizações não conseguirem alargamento do seu espaço, faltando-lhes novas propostas de sociedade.
Mantém-se o problema central, de definição da linha separadora entre a coerência e o oportunismo. Para simplificar, e indo logo ao objectivo histórico e estratégico, o critério para uma aliança estratégica (mas não necessariamente para uma aliança táctica) é, sem muita discussão, o da recusa de conciliação com o capitalismo, de terceiras vias, de edificação de uma sociedade socialista. Mas mesmo aqui já entramos em discussão, entre os que defendem uma via revolucionária em duas etapas ou os que querem queimar a etapa intermédia.
Mas entre a coerência contra o oportunismo, por um lado, e o sectarismo e a rigidez ideológica a margem é muitas vezes estreita. Já aqui escrevi sobre o sectarismo à esquerda e sobre o fanatismo de muitos militantes mais papistas do que o papa. É tristemente impressionante que no PCP, por exemplo, se esteja a afirmar uma corrente revisionista da condenação do estalinismo, no XX Congresso do PCUS. É pena que desconheçam o que foi o reconhecimento pelo PCP da justeza do relatório Khruschov, agora até chamado, pasme-se, de agente da CIA.
É legítimo que o PCP invoque a sua fundamentação marxista-leninista, que outros se revejam em Trotsky, outros na teologia da libertação, outros considerem a obra de Marx como guia ainda adequado para enquadramento geral de ideias e de método de análise e síntese, mas sem ser um sistema fechado e acabado. Simplesmente, o mundo, a economia, a sociedade mudaram muito e todos devem ter a humildade de reconhecer que, sozinhos, não têm a solução única e milagrosa.
Mais aguda, em termos de princípios condicionadores , é a questão nova da necessidade de uma “alternatividade” (o que é mais do que uma alternativa, porque é uma visão e não só um programa de acção) correspondendo às mudanças sociais que já vêm do pós-guerra.
Quando a esquerda à esquerda do PS avança com oscilações e em pequenos passos, menos até do que 2%, não só é miragem a sua conquista eleitoral do poder como é necessário analisar o que há de conjuntural, em cada momento, nos avanços eleitorais, em vez de progressiva conquista de eleitorado convencido.
Pelo menos dois factores parecem relevantes para a compreensão desta dificuldade da esquerda radical em se aproximar do poder e disso dar perspectivas motivadoras a parte do eleitorado agora perplexa e desanimada. O primeiro é que a valorização de um partido, mais do que por programas ou propostas que não são lidas, se faz muito pela ideia de que a sociedade que ele enformará no governo pode ser vista antecipadamente pelo seu funcionamento interno, o seu estilo (muitas vezes filtrado pelos media), as suas referências estrangeiras. O segundo factor é a falta de resposta a novas características sociais, a questões transversais, a novas formas de pensar e de estar, em virtude da massificação e da osmose social.
Por muito que o PCP seja respeitado pelo seu passado, pela sua firmeza de luta e pela dedicação dos seus militantes, não consegue libertar-se, muitas vezes por culpa própria, da imagem – ou da memória até já muitas vezes indirecta da imagem – de um partido sectário, monolítico, arrogante, coisas que as pessoas não querem ver nos seus governantes.
O BE não conseguiu abrir caminho por essa falha na geologia do PCP. No entanto, convém ter em conta outras experiências, como as do Partido Comunista Grego (KKE) ou do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que pagam algum dogmatismo com o aproveitamento eleitoral de outros partidos, mais moderados ou eventualmente em deriva social-democrata, respectivamente o Syriza e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
Passando para o segundo factor, o da alteração social, é imperioso dar-lhe resposta adequada, saindo dos arquétipos das propostas políticas tradicionais. Comece-se por notar uma coisa: onde se vê, à esquerda, discutir-se, sem chavões, coisas elementares como: porque cresce a abstenção? quem são socialmente os abstencionistas? porque saem à rua meio milhão de pessoas (muitos dos quais jovens) em 15 de Setembro e depois desmobilizam? porque tem relativo sucesso uma partido como o Livre, simpático mas que de inovador só teve uma proposta à moda de método eleitoral interno? como se pode evitar que o descrédito dos partidos instalados conduza a soluções populistas? etc.
A agudização do conflito capital-trabalho, nesta fase de neoliberalismo e, reconheça-se objectivamente, de alguma retracção do poder operário, nomeadamente dos sindicatos, não invalida muitos ensinamentos do passado. Mas aparece numa situação social, económica, cultural e tecnológica (com especial destaque para as tecnologias da informação e a internet) radicalmente diferente.
Como dito antes,
“As profundas mutações sofridas pelas sociedades industriais desenvolvidas, com importantes reflexos nas sociedades intermédias e sub-desenvolvidas, acumularam novos factores de crise. Criou-se riqueza, possibilitou-se um alto padrão de consumo, subiu o nível médio de educação e mundializou-se a comunicação e a informação. Mas diluiu-se a cidadania, enfraqueceu a privacidade, intensificaram-se em abstracto as interdependências sociais com perda das relações gregárias tradicionais (inclusivamente dos laços familiares).A vida individual é mais autista, decorrendo entre o trabalho muitas vezes desinteressante e pouco criativo, a habitação em ambiente residencial descaracterizado e os lazeres massificados. A menor disponibilidade de tempo e atenção psicológica para a família isolam e vulnerabilizam os jovens. Os ritmos de vida acelerados e a competitividade agressiva geram crescente “stress” individual e social, com reflexos na expansão da criminalidade e na evasão alienante por via das drogas, do alcoolismo ou da adesão a múltiplos irracionalismos e seitas. O egoísmo, a competição e a insegurança conduzem, com outros factores, ao preocupante crescimento do racismo e da xenofobia, com “Estado fortaleza”.(…) Cresce o desemprego jovem e, quando há emprego, é frequentemente subqualificado em relação às habilitações. A visão ultraliberal incentiva os governos de direita a destruir pilares do Estado social, como a segurança social, o ensino público e o serviço nacional de saúde. O sector primário foi devastado.A satisfação crescente das necessidades materiais não é acompanhada por um sentimento paralelo de felicidade humana e de alegria de vida, e essa “tristeza” de uma sociedade sem fraternidade e sem idealismo reflecte-se politicamente naquilo a que já se chamou de “melancolia da democracia”, com instituições democráticas desacreditadas ainda não ultrapassadas por uma democracia participativa.A rigidez ideológica de quase um século era tranquilizadora, na medida em que gerava um sistema de tensão estável com fácil identificação e arrumação esquemática de ideias e propostas políticas. Todas as questões se colocavam em função de antinomias estabelecidas: a dicotomia capital-trabalho a nível nacional, a dicotomia leste-oeste a nível mundial. A guerra fria, com o seu espectro de cataclismo nuclear, consolidava todas as visões bipolares e desculpabilizava as atitudes redutoras. Esta construção ruíu definitivamente. Estamos agora num momento de reexame de todas as ideias, numa época de análise que precede forçosamente uma futura época de novas sínteses. Nestas condições, a seriedade de qualquer proposta política só se pode medir pela flexibilidade com que procurar ajustar-se a este quadro de mudança e reavaliação, não por certezas falsamente tranquilizantes que são hoje um logro histórico e conduzem a becos teóricos sem saída.”Continua amanhã, com algumas propostas para o futuro próximo, para a programação de uma União de Esquerda.
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