No fortíssimo e uníssono coro de protesto contra a recente avaliação das unidades de investigação pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), tem destoado, como defensor, António Coutinho. É um investigador com reputação internacional, mas um dos que, chegando a uma fase de competição internacional difícil, regressou a Portugal, como sempre muito mais aureolado do que os que por cá, dificilmente, foram fazendo as bases da nossa actual ciência. Outros, mesmo assim, fizeram o seu caminho cá com respeito pelos que cá estavam. Coutinho comprou ao desbarato um instituto, o Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), com despedimento colectivo do seu pessoal. É feio, entre colegas.
Com a sua experiência internacional, não percebo como é que António Coutinho pode escrever coisas como o artigo no Expresso deste sábado (9.8.2014). “Dever” do seu cargo de presidente do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia? Amizade com o presidente da FCT, Miguel Seabra, que ele trouxe para o IGC?
Deixo de lado, por agora, o simplismo do argumento de António Coutinho: “Fazer investigação com dinheiro público não é um direito natural. Sendo manifestamente incomportável financiar todas as UI que livremente se constituem (particularmente quando o país abriu falência), só há duas alternativas: ou se distribui um pouco por todas em prejuízo das que mais e melhor trabalham e do país, que certamente perderia os seus melhores investigadores; ou se permite a sobrevivência das melhores UI, deixando de fora as menos competitivas”.
Há um mundo de questões mais subtis por detrás deste simplismo, questões bem conhecidas de quem sabe um pouco de política científica. Mais e melhor trabalhar avalia-se pelo mérito científico propriamente dito, pelo impacto directo na economia ou pelo resultado na formação de novos cientistas? Podem as UI de alto méritos progredir sem o alimento de base de outras menos salientes? Tudo é branco ou preto ou a rede científica é complexa, cheia de interacções e “feedbacks”? Etc.
Mais surpreendente é outra afirmação de António Coutinho, a desvalorizar a importância desta questão, nas universidades. “O ensino superior em países dos mais competitivos é maioritariamente feito em instituições e por professores que não fazem investigação. Ser docente-investigador mediano ou medíocre não é melhor do que ser “apenas” um excelente docente”.
Isto é rotundamente falso. Não querendo imputar a António Coutinho desonestidade intelectual, tenho de pensar em ignorância. Ou então nessa coisa bem portuguesa, uma forma de esquizofrenia em que o cérebro funciona muito bem na profissão mas completamente desparafusado na análise do que nos rodeia.
Desde o nascimento da ciência moderna, mas mais marcadamente depois da reforma das universidades alemãs por Humboldt, é paradigma da ideia de universidade a de instituição que providencia educação superior de alta qualidade partindo do princípio de que ela só é possível quando os professores também são investigadores, quando o meio universitário está indissociavelmente imbuído da ciência, quando os alunos estudam em ambiente de investigação e quando há um equilíbrio forte entre ensino de graduação e ensino de pós-graduação.
A par desta noção dominante de universidades de investigação (“research universities”), apareceram na segunda metade do século XX as chamadas universidades de ensino (“teaching universities”), algumas das quais bem conhecidas, como a Universidade do Estado da Califórnioa, a Dartmouth ou a Notre Dame. Mas, 1. são a minoria; 2. os seus professores são investigadores; 3. não conferem graus de pós-graduação.
1. São a minoria. Basta ver os principais “rankings” de universidades para se verificar que a grande maioria das universidades tem investigação própria, “intramuros” e que ela valorizada em alto grau.
2. Não tendo essas universidades os seus próprios centros de investigação, têm contratos com centros exteriores, pera apoio à investigação dos seus docentes e à disponibilidade de um ambiente de investigação ao ensino dos seus alunos. Em Portugal, a alteração da lei dos graus, pelo DL 115/2013, permitiu que a avaliação dos cursos tivesse em conta a qualidade científica dos docentes aferida também pela sua actividade científica extra-muros. Foi um enorme presente às universidades privadas, feito por um ministro que, enganosamente, sempre tentou transmitir a imagem de rigor.
3. Não tendo investigação própria, as universidades de ensino formam apenas licenciados (BSc), não podendo pretender atribuir graus, como o mestrado e o doutoramento, que pressupõem uma boa formação científica, em exercício. Não é o que se passa cá. A lei exige que uma universidade faculte, pelo menos, seis mestrados e três doutoramentos, cada um deles com um corpo docente qualificado. Mas, como a qualificação pode ser no exterior, as universidades privadas podem conferir doutoramentos e não ter qualquer investigação, sendo apenas liceus de nível superior.
Sei do que falo. Quando fui contratado para desenvolver a investigação na universidade, fiz propostas que me foram sempre recusadas, até porque o herdeiro do patrão não abdicava desse pelouro. Que estupidez a minha, pensar que, pelo apoio que tinha de muitos colegas que viam em mim alguma força de mudança, não ter percebido no que estava metido.
NOTA – Isto faz-me lembrar o que me disse há dias um velho amigo, sobre a firma em que trabalha: “gosto do velho, que já está fora disto tudo. Foi um homem que veio de baixo, teve um sonho, foi sempre honesto e sabia o que era a vida dura. Os filhos, criados como meninos do papá e que hoje governam isto é que são execráveis”.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Obrigado pelo seu comentário. Os comentários de leitores não identificáveis não serão publicados.