Julgo que o manifesto dos 70, “Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente”, merece a maior atenção, apesar das suas limitações e ambiguidades, como veremos adiante. Tem-se escrito muito e desde há muito tempo, como neste blogue e outros, defendendo que uma imprescindível política contracíclica de crescimento, emprego e aumento da procura interna exige recursos que são impossíveis se continuarmos presos a tão desmesurada dívida (129% do PIB) e ao seu serviço. Quem o tem defendido, por exemplo em blogues, deve regozijar-se por ver aparecer este manifesto, desde logo marcante e surpreendente pelo leque de subscritores.
Não é a primeira vez que se fala de reestruturação. Muita gente o tem feito, individualmente, propondo formas mais ou menos avançadas de reestruturação, assim como a reestruturação está patente em propostas partidárias, mais incisivamente do PCP. Até o próprio governo já fez, com a troika, uma reestruturação suave, prolongando as maturidades e reduzindo as taxas de juro do empréstimo. Não fez qualquer alarde disso para não desmentir o seu dogma de que tudo era uma maravilha com o cumprimento escrupuloso do memorando.
O que é a primeira vez é ver a reestruturação defendida por tão variado leque de pessoas respeitadas e com impacto público. Não se pode subvalorizar a assinatura de notáveis dos partidos do governo, incluindo uma ex-presidente do PSD e um conselheiro de Estado do CDS. Nem a reacção forte de discordância do governo, desdobrada por Passos e por Maduro, até com o labéu moral de traição. Quando vejo que uma acção atinge fortemente o meu inimigo, tendo, em princípio, a apreciá-la.
Neste caso há mais, há o conteúdo do manifesto. Discordo ou duvido de muita coisa, mas há aspectos essenciais que podem ser um caminho para entendimentos práticos, até mais do que as posições partidárias irreconciliáveis à esquerda do governo – sim (PCP e BE) ou não (PS) a uma verdadeira reestruturação – que, a meu ver e como tanto escrevi aqui, aqui, aqui ou aqui, impedem a convergência compreensivamente tão desejada por muita gente de esquerda.
O manifesto contém posições de princípio que subscrevo, como, por exemplo: “Nenhuma estratégia de combate à crise poderá ter êxito se não conciliar a resposta à questão da dívida com a efectivação de um robusto processo de crescimento económico e de emprego num quadro de coesão e efectiva solidariedade nacional. Todos estes aspectos têm de estar presentes e actuantes em estreita sinergia. A reestruturação da dívida é condição sine qua non para o alcance desses objectivos. (…) A resolução da questão da dívida pública não só se impõe pelas suas finalidades directas, como pela ajuda que pode dar à criação de condições favoráveis à resolução dos problemas específicos do endividamento externo e do sector empresarial, que são igualmente graves. A dívida pública tornar-se-á insustentável na ausência de crescimento duradouro significativo: seriam necessários saldos orçamentais primários verdadeiramente excepcionais, insusceptíveis de imposição prolongada.”
Um aspecto formal mas importante é o uso sem ambiguidade da palavra reestruturação. Entre nós, por puro tacticismo eleitoralista, tem-se jogado com os termos renegociação e reestruturação. Como modificação dos três parâmetros da dívida – maturidades (isto é, prazos), taxas de juro e montante – os termos são equivalentes. No entanto, muita gente tem a ideia de que renegociação é o que defende o PS (e até há tempos o BE), só afectando maturidades e juros, mas negando a hipótese de cortes no montante (“hair cut” ou corte de cabelo).
O PCP, por exemplo, também usa mais frequentemente o termo renegociação, mas incluindo claramente a revisão dos montantes e até a preparação da saída do euro, se necessário. O BE tem vindo a ser mais incisivo do que era, defendendo a reestruturação e eventualmente uma moratória do serviço da dívida. A Iniciativa para a Auditoria Cidadã da Dívida fala de renegociação com o significado inequívoco de reestruturação, mas porque esta deve ser precedida de renegociação. Deixo de fora o Livre, que não diz coisa nem coisa, defendendo uma “revalorização” que só eles compreendem.
Resultando do compromisso entre pessoas tão díspares, o manifesto não podia deixar de conter muitas ambiguidades (paradoxalmente, em contraste com coisas excessivamente pormenorizadas e por natureza imprevisíveis antes das negociações). Também, em minha opinião, propostas que ficam aquém do mínimo necessário e do muito que já tem sido proposto. Mas é melhor do que nada, melhor do que o que defende o "arco central". Mesmo assim, até me surpreende que possa ter sido subscrito por tão variada gente. Quase que apetece pensar que ou não estou a ler bem na entrelinhas ou alguns subscritores assinaram sem grande reflexão e exigência. Quero crer que seja, essencialmente, espírito de diálogo.
Concordo com muita coisa. Que o primeiro plano de discussão deve ser o europeu (desde que não se fique preso a ele) e privilegiando a negociação (mas sem rendição à perspectiva dos credores). Que “sem a reestruturação da dívida pública não será possível libertar e canalizar recursos minimamente suficientes a favor do crescimento”. Que “sem reestruturação da dívida, (…) subsistirá o desemprego a níveis inaceitáveis, agravar-se-á a precariedade do trabalho, desvitalizar-se-á o país em consequência da emigração de jovens qualificados, crescerão os elevados custos humanos da crise, multiplicar-se-ão as desigualdades”. Que uma provável reacção alemã de contra-gosto não significa necessariamente um veto, porque a reestruturação pode ser o mal menor para a Alemanha.
Mas já tenho muitas dúvidas em relação às propostas concretas de reestruturação. Desde logo, que ela seja feita “através de processos inseridos no quadro institucional europeu de conjugação entre solidariedade e responsabilidade”. E, para não haver dúvidas, diz-se que deve ser uma “reestruturação responsável”.
Ora a fracção da dívida oficial é de cerca de 40%, sendo o resto detido por privados estrangeiros e portugueses. Não terá de haver outros envolvidos, como o clube de Paris, ou novos mecanismos, como uma reedição do plano Brady, desde que livre dos favorecimentos aos credores? Ou um quadro multilateral, não institucional, como dos acordos de Londres, bem descritos no manifesto? Em suma, a reestruturação cingida ao quadro institucional europeu parece-me o ponto mais fraco deste manifesto, espartilhando Portugal e, na prática, continuando, de outra forma, a sua vassalagem aos poderes europeus. Mesmo que se julgue haver razões para optimismo (eu não julgo) esta proposta é um plano A sem plano B.
Também tenho dúvidas em relação à visão optimista do manifesto quanto a uma nova política europeia de solidariedade e de prevenção de incumprimentos, para defesa do euro. A experiência dos últimos anos mostra que, apesar de uma ou outra acção pontual de alívio da Grécia, a perspectiva ordoliberal e punitiva a que obedece a Alemanha a faz incorrer – e à Europa que ela domina – em riscos suicidas. Por isto, não me parece evidente que seja mais fácil começar a reestruturação pelo sector oficial da dívida. Parece-me uma questão delicada, de contornos imprevisíveis, a deixar para as negociações.
A terminar, dois efeitos políticos importantes deste manifesto. Em primeiro lugar, veio desfazer a construção feita à volta de Cavaco Silva, com os prefácios publicados pelo Expresso. Os dados são os mesmos, a dificuldade ou impossibilidade de pagar a dívida. Mas, enquanto que para o Presidente a conclusão inevitável era a de continuação da austeridade, vêm os autores do manifesto propor a alternativa de solução do problema pelo lado da própria dívida.
Depois, o manifesto é uma bomba para o PS, a dois meses das europeias. O PS estava a ter o escape de recusar uma reestruturação na perspectiva da esquerda, “irresponsável”. Com isso, enrolava a opinião pública numa vaga renegociação que em nada diferia do que foi feito pelo governo, pela calada, e que, aliviando um pouco o serviço da dívida, não resolve o verdadeiro problema do montante da dívida.
Os eleitores vêem agora que há uma alternativa (mesmo que não seja a que muita gente como eu defende) dita “responsável” e que o PS rejeita. Perguntar-se-ão: mas afinal o que quer o PS? Em que difere do PSD a sua proposta política para a crise? E é realista continuar a bater na tecla da convergência com o PS “que a esquerda radical é que não quer”, quando, neste caso crucial da reestruturação, as posições da esquerda consequente são facilmente debatíveis com os subscritores do manifesto (de esquerda e de direita) mas não com o PS, por sua auto-exclusão?
Sem comentários:
Enviar um comentário
Obrigado pelo seu comentário. Os comentários de leitores não identificáveis não serão publicados.