Mariana Avelãs lançou no passado dia 24, na sua página do Facebook, uma discussão bem interessante, a partir desta pequena introdução: “ ‘a direita une-se, a esquerda não’; ‘a extrema-direita cresce porque a esquerda não se une’. Para além de nenhuma das duas afirmações ser verdade, excluem-se mutuamente. Temos um problema - as ideias da extrema-direita têm apoio popular -, podemos olhar para ele racional e estrategicamente?”
O “post” vem na sequência dos resultados eleitorais franceses, mas reconhece-se facilmente a relação com a situação portuguesa, onde aquelas duas afirmações – substitua-se extrema direita por governo actual – são correntes no discurso político de muita gente de esquerda bem intencionada mas, a meu ver, vítima de uma visão romântica da política (sem ofensa). A nota de Mariana Avelãs é acutilante e merece reflexão. Não havia condições para o fazer no Facebook e transfiro-a para aqui.
Nas eleições municipais do último domingo, a esquerda apresentou-se dividida, com resultados bem diferentes: a Frente de Esquerda (constituída principalmente pelo PCF e pelo Partido de Esquerda, dissidente do PS) aguentou-se; a votação nos socialistas foi um desastre. A direita tradicional também subiu um pouco mas não tão espetacularmente como a Frente Nacional (FN). Já se ouve por toda a parte criticar a desunião da esquerda, responsabilizando-a por uma eventual vitória da FN, mesmo que relativa, e já se começa a fazer a extrapolação para a situação portuguesa, nesta estafada querela sobre a convergência.
A meu ver, as duas situações são incomparáveis. Na França, trata-se de eleições autárquicas, não decisivas para a conquista do poder. É certo que marcam uma dinâmica política e têm consequências, porque em política tudo está ligado numa rede de factores dinâmicos. No entanto, aliás como cá, há determinantes locais que influenciam fortemente estas eleições e que retiram legitimidade à comparação com as legislativas. Veja-se, cá, o fenómeno recente das listas não partidárias. A haver lugar para alguma comparação, mais facilmente será entre legislativas e europeias, principalmente quando, como agora, os problemas estão tão interligados.
Também me parece abusivo comparar a utilidade da união de esquerda no caso francês de eleições uninominais em duas voltas e de eleições com proporcionalidade e a uma volta, como as nossas legislativas. É indubitável que, no primeiro caso, a candidatura comum na primeira volta e, principalmente na segunda volta contra o candidato e direita, tem grande efeito político. A analogia, em Portugal, seria com a vitória de Mário Soares contra Freitas do Amaral.
Já nas legislativas, o efeito positivo directo é marginal, apenas em resultado de benefício pelo método de Hondt. É certo que há efeitos indirectos, de empenho e confiança política, de mobilização e de combate à abstenção; mas é preciso analisar isto na perspectiva de custos/benefícios, como veremos mais tarde.
Passo às posições de Mariana Avelãs, com que concordo e, desde logo, sobre a falsidade de “a direita une-se, a esquerda não”. É fácil de ver que isto é uma generalização de uma apreciação da situação portuguesa, já por si controversa (por exemplo, tem havido muitas formas de convergência prática entre o PCP e o BE). Quem afirma tal coisa são sistematicamente os que querem à viva força meter no mesmo saco quem claramente não quer ser lá metido. Procedem como os escuteiros da conhecida anedota da velhinha que não quer atravessar a rua.
De facto, não há nenhuma situação comparável à portuguesa, mesmo que se considerem como equivalentes – o que não é correcto – extrema direita fascista (Grécia) ou semifascista (França) e direita troikista onde não há partidos fascistas com significado (Portugal, Espanha, Itália), para já não falar dos partidos xenófobos de países sem uma esquerda expressiva (como os nórdicos). Para também não falar do fenómeno único que é o populismo à Beppe Grilo, embora já se vislumbrem cá alguns sinais, na campanha abusivamente generalizante contra os políticos e as suas benesses.
Veja-se, por exemplo, que há uma forte união de esquerdas na Espanha (Esquerda Unida) e na França (Frente de Esquerda), assim como, na Grécia, o Syriza é uma união política, embora sem a participação do PC (KKE). Veja-se também que a Frente de Esquerda francesa resiste ao crescimento da FN. Não há, portanto, dois casos iguais. A única coisa em comum é que, em plena crise que faz tudo mais claro e que deixa à mostra todos os gatos escondidos, os PS – por sua inteira decisão – ficam à margem, quando não se colocam inequivocamente no outro campo (Grécia).
A segunda tese que Mariana Avelãs desmente é “a extrema-direita cresce porque a esquerda não se une”. Novamente de acordo. Digo mais: parece-me coisa disparatada, sem fundamento racional, e coisa de “wishful thinking”. Os resultados franceses e as previsões na Grécia mostram a falácia, quando se repara que só uma “esquerda” (PSF, Pasok) é que desce em relação inversa com o crescimento da extrema-direita. Há uma movimentação de um eleitorado que se sente mais atraído pelas posições de extrema-direita do que pelos partidos socialistas, mas não por estes não fazerem unidade de esquerda, coisa que nunca fizeram. Esse eleitorado está-se nas tintas para unidades de jogo partidário e vê é que os seus problemas de pauperização e desemprego, em competição com os imigrantes, são preocupação demagógica dos partidos anti-sistema. Pelo contrário, os eleitores de esquerda mais conscientes continuam a dar o seu voto à esquerda consequente. A desunião não penaliza a totalidade da esquerda!
Por isto, a pergunta de Mariana Avelãs – “temos um problema - as ideias da extrema-direita têm apoio popular -, podemos olhar para ele racional e estrategicamente?” – é crucial. Já era nos antigos fascismos. Lembremo-nos de que, com excepção da Espanha, até atingiram o poder por via legal, e invocando o “socialismo”, ou o passado socialista do líder, como Mussolini.
Antes do mais, parece-me necessário não limitar a questão ao plano das ideias. Como certamente a autora pretende dizer, o apoio popular tem base socioeconómica sem cuja análise racional e estratégica não vamos a lado nenhum. Desde logo, distinguir o novo fascismo do fascismo da terceira década do século passado. Vivia-se então a grande depressão e muitas sequelas da guerra, as migrações eram insignificantes e o poder dos partidos de esquerda e dos sindicatos era muito grande, com graves riscos, para o capital, de explosões sociais e revolucionárias (com uma Revolução de Outubro ainda bem viva). Assim, segundo a tradição da perspectiva marxista, os fascismos foram uma expressão política antidemocrática de repressão da capacidade de luta das classes trabalhadoras, um passo em frente no reforço da exploração capitalista. Note-se que, nessas condições, o componente xenófobo foi relativamente secundário, ou mais manifesto na exacerbação do mito nacional. O caso do anti-semitismo nazi é secundário à essência dos fascismos.
Actualmente, a situação social e económica em que se move a extrema-direita e em que tem sucesso, é muito diferente. Os problemas são os mesmos, como consequência da crise, mas misturados com outros de forma a que muitos eleitores ficam confusos e são facilmente manipulados. O sucesso das posições de extrema-direita vem da sua associação clara ou disfarçada a problemas reais dos eleitores. A xenofobia é a hostilidade ao imigrante que compete no trabalho, com salários mais baixos. O nacionalismo, idem mais o apelo ao nostalgismo em relação a mitos de passado glorioso de um país agora secundário num mundo unipolar. O antieuropeísmo e a antiglobalização idem e ainda a forma de combater as consequências da impossibilidade de políticas proteccionistas ou os efeitos no emprego das deslocalizações. A segurança pela violência liga-se à ideia da lumpenização de muitos sectores pauperizados, à marginalizarão dos imigrantes, à disrupção social, das comunidades, dos modos de viver, dos equipamentos.
No entanto, é preciso ter-se em conta, a meu ver, que a extrema-direita tem hoje menos importância do que antes como instrumento do capitalismo. Infelizmente, ele não está em perigo, atravessando apenas uma crise de desenvolvimento. A hegemonia é total, em todos os planos: político-institucional, cultural, ideológico, informativo, moral. É muito mais eficaz usar meios "suaves" no quadro da "ordem natural" do que atiçar a brutalidade do neofascismo. Este fica de reserva, porque há sempre oportunidades convenientes, como na Ucrânia.
Na perspectiva próxima das eleições europeias, a situação é particularmente difícil de abordar porque a demagogia de extrema-direita faz suas posições até recentemente de esquerda, como a luta contra a agenda oculta da globalização, a denúncia do euro ou a defesa de medidas proteccionistas, contra a utilização imperialista dos instrumentos reguladores do comércio mundial. A extrema-direita apossou-se de bandeiras tradicionais da esquerda não por desunião desta mas porque parte da esquerda deixou abaterem-se essas bandeiras.
Interessantíssimo debate, sem dúvida.
ResponderEliminarMas estarei equivocado se referir que não é exacto dizer-se que "...com excepção da Espanha, (os fascismos) até atingiram o poder por via legal"?
Em Portugal não o foi, seguramente, mesmo que se considere a inventiva votação referendária da Constituição de 1933. E o caso alemão, embora formalmente "legal", também é muito "especial".
Penso que se referia apenas aos fascismos alemão, italiano e espanhol.
Caro JL, estava mesmo a incluir o fascismo português, embora admita que com alguma imprecisão. Considerei só a sua implantação plebiscitária, mas concordo que foi progressiva. O que me parece que não foi é por golpe, no 28 de maio. Ainda se passou muita coisa até ao poder de Salazar e, como sabe, na Ditadura militar havia de tudo, mesmo republicanos d endireita e maçons.
ResponderEliminarEstou basicamente de acordo, embora os 7 anos de distância entre o 28 de Maio e a Constituição de 33 não me pareça terem sido tempo de legitimação acepção que aqui releva. O poder de legislar em que assentou a ascensão e triunfo do fascismo em Portugal emergiu de um golpe que foi metodicamente empalmado. O salazarismo apenas precisou de um simulacro de plebiscito para se instalar por 41 anos.
ResponderEliminarNa minha opinião, pois e salvo o devido respeito, não se poderia falar em via "legal", senão na perspectiva do direito fascista, mormente do ordinalismo concreto, que vê o direito público como uma emanação da comunidade tal como declarada pelo chefe, sejam o führer, o duce, o presidente do conselho ou o generalíssimo, que interpretam aquela em única ou última instância.
Estamos de acordo. O que quis dizer, certamente com impropriedade jurídica, foi que o salazarismo não foi instaurado imediatamente na decorrência de um acto violento. O 28 de Maio não lhe abriu logo o caminho. Também concordo que nos casos alemão e italiano são complicados. Foram formalmente legais, mas com pressões de facto, da marcha sobre Roma e da nomeação por Hindenburg. Indiscutível como conquista violenta foi o franquismo.
ResponderEliminar