1. Neoliberalismo, a crise final do capitalismo?
Penso que, ao contrário do que por vezes leio, o capitalismo não está em crise, no sentido de uma crise final, a abrir a possibilidade da sua derrota por via revolucionária. A crise actual, como muitas outras por que tem passado o capitalismo, é uma crise de ajustamento a mudanças da estrutura produtiva, da evolução tecnológica e, agora, com relevo especial, à alteração do peso relativo do capital industrial e do capital financeiro.
Não creio que esteja já à vista o fim do capitalismo. De um ponto de vista gramsciano, ele ainda tem, para mim indiscutivelmente, a hegemonia, desde o controlo do aparelho político à formatação ideológica, à influência nos modos de vida e nas aspirações individuais e ao controlo da informação. Detém um eficaz sistema interactuante de instrumentos, incluindo as universidades (nas áreas de maior importância ideológica e política, nomeadamente o direito, a economia e outras ciências sociais).
Isto vem a propósito de uma entrevista recente do primeiro-ministro luxemburguês, Xavier Bettel em que, interrogado sobre “o que pensa sobre os problemas dos países sujeitos a programas, sobre a união bancária, ou sobre uma futura mutualização da dívida é exactamente o mesmo que a chanceler alemã?”, a sua resposta não podia ser mais cândida: “Sim”. Não há sombra de vergonha por este indecente seguidismo. Provavelmente, ele nem a sente, porque isso faz hoje parte do espírito reinante e assumido de “his master’s voice”.
Custa-me a crer que políticos deste nível possam ser estúpidos. Mas o que os torna tão incapazes de um pensamento próprio, de uma atitude crítica? Só pode ser uma devoção fanática, a formatação ideológica por dogmas religiosamente tidos por indiscutíveis. Enquanto assim for, a luta ideológica da esquerda é tanto ou mais determinante do que as lutas tradicionais pelas conquistas materiais.
A globalização enquadrada no neoliberalismo é também a uniformização política. Já não há o jogo das tensões entre interesses nacionais, as ideias e práticas dos grandes estadistas. Há um pensamento único ao serviço de um capital financeiro deificado, um pensamento único expresso politicamente por robôs burocratas e medíocres, nos governos e nas instâncias internacionais, e por executores tecnocratas na banca e nos órgãos de domínio económico-financeiro. E também um pensamento único instilado por todos os meios nos cidadãos. Tudo isto é a hegemonia. Acreditar que ela pode ser anulada jogando apenas nas suas instituições e com as forças políticas rendidas ao essencial do pensamento único, é ilusão perigosa.
2. A saída do resgate
Na mesma entrevista, diz X. Bettel que “Portugal tem de continuar a aplicar a austeridade, aceitando as condições europeias para o apoio à sua economia.” Que condições são estas, não diz explicitamente. A própria entrevistadora, Teresa de Sousa, habitualmente não muito distante da orientação europeia dominante, anota que “consequências sociais ou consequências económicas da aplicação do programa de ajustamento são coisas que lhe estão distantes.”
Entretanto, a natureza e grau da austeridade que nos querem impor ou que nos é apresentada, interna e externamente, como inevitável, é escamoteada na discussão sobre a alternativa “saída limpa” ou plano cautelar, discussão muito em foco neste fim de semana, com as posições de Cavaco transcritas pelo Expresso. O que é importante lembrar, e é a vantagem de afirmações brutais como a de Bettel, é que ambas as formas de conclusão do resgate actual têm alto preço. Veja-se, por exemplo, um bem elucidativo “post” de hoje de Ricardo Paes Mamede (Ladrões de Bicicletas).
O programa cautelar é uma coisa nebulosa, que nos é apresentado pelo governo e por Cavaco como um seguro, não um empréstimo. Mas o que não dizem é que está sujeito a condicionalidades, isto é, compromissos de políticas de austeridade, ainda desconhecidas. Por outro lado, a saída limpa coloca o país sob ameaça permanente das oscilações dos mercados e com juros porventura mais altos até do que os que temos pago à troika. E tanto um programa cautela como uma saída limpa nos sujeitam a uma tutela durante muitos anos, como compromisso aceite aquando da assinatura dos memorandos, e no quadro de uma soberania orçamental limitada pelos “packs” dois e seis e, principalmente, pelo tratado orçamental. Como cumprir esses compromissos a que o governo nos amarrou, com o voto pressuroso do PS, é que não se diz, quando o próprio FMI entende que o cumprimento exige um miraculoso crescimento anual de 3,6% do PIB nominal e um saldo orçamental primário de 3,2% (agora -1,6%).
Mas será esta discussão verdadeiramente relevante? A melhor resposta é dada por Passos Coelho, quando vai a Berlim, e não a Bruxelas, para ouvir a opinião sobre o pós-troika. É isto que conta, não uma “decisão” portuguesa. O sistema europeu quer mostrar que a política de austeridade e a receita ordoliberal alemã são a verdade absoluta e que a sua aplicação resulta, no caso português – e, espanto, até no grego, segundo Barroso – em sucessos indiscutíveis. Para isto, se necessário, até pagarão, embora dissimuladamente. Há dias, Marques Mendes foi transparente, e estou inteiramente de acordo:“o mais importante não vai ser o que nós queremos mas o que a Europa nos dá”.
3. Sondagens mistificadoras
Uma sondagem de há dias revela que 49,2% dos inquiridos prefere a “saída limpa” e 39,4% o programa cautelar (os restantes não sabem). Pergunto-me se não há efeitos da forma como a alternativa é posta: “regressar aos mercados pelo seu próprio pé para recuperar a soberania financeira” ou “ter a segurança de uma linha cautelar do BCE”. As opções são argumentativas e claramente manipuladoras, principalmente a primeira.
É cada vez mais frequente lermos destacados economistas e analistas políticos, de um amplo espectro político, começarem a discutir a insustentabilidade da dívida, defendendo a necessidade da sua reestruturação e até, se necessário, a saída do euro. Ambas as coisas são liminarmente rejeitadas não só pelo governo mas também pelo PS. A referida sondagem mostra também que ainda se está longe de o eleitorado encarar, pelo menos como hipótese de reflexão, a libertação da prisão em que está perante esse bloco central do pensamento político-económico dominante. Apenas 6,3% consideram positiva a reestruturação, contra 71,8% que a acham má ou muito má, considerando-a razoável os restantes 15,4% dos que respondem.
Anote-se que, uma vez mais, a pergunta é mistificadora e, neste caso, incompreensivelmente (?) incompetente: “existe quem defenda que não se deveria pagar as dívidas às entidades internacionais mesmo que isso possa implicar a saída do euro”. Mas quem é que defende que não se pague aos credores oficiais?!
Sinal da perplexidade que por aí vai, a mesma sondagem mostra que larga maioria dos inquiridos, apesar de opostos à reestruturação da dívida, considera que a política de austeridade afunda económica e socialmente o país e que não vai diminuir com a saída da troika. No entanto, 43% acham que a austeridade foi uma inevitabilidade, consequência do endividamento.
Esta confusão das pessoas também se traduz nas previsões eleitorais, segundo a sondagem. O PS continua em primeiro lugar, com 37,2% (margem de erro?) mas ligeiramente a perder terreno, enquanto que o PSD – por razões que certamente justificam estudo cuidadoso – progride constantemente desde Outubro de 2013, alcançando 28,4%, o que, com os 8,7% do CDS, também estável, dá um empate técnico com o PS. Preocupante, para mim, é a situação da esquerda. Há descida da CDU, agora com 10,5% mas estando colocada cerca de 2,5% acima na sondagem de Outubro de 2013. Para o BE prevê-se 4,9%, resultado até inferior aos 5,2% das legislativas de 2011, em que o BE foi fortemente penalizado.
Nota final – Veio a calhar uma conversa, há minutos, com uma visita interessada politicamente e votante habitual na zona central. Considerando-se traído pelo PSD, também não estava virado para o PS, por este estar a ser demagógico: “não acha que é aldrabice estarem a prometer coisas quando a dívida não lhe permite terem recursos?”. Assim, não havia alternativa de voto, todos acabariam por ter de fazer a política de austeridade. Respondi-lhe que havia alternativa, a da reestruturação e outras medidas para a recuperação da soberania financeira, para uma política de crescimento e de emprego. A rejeição foi clara, por razões de “economia moral” e de resignação perante as imposições dos mais fortes. Vai ter de se trabalhar muito para ganhar a batalha do esclarecimento político.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Obrigado pelo seu comentário. Os comentários de leitores não identificáveis não serão publicados.