sexta-feira, 28 de março de 2014

Contra a direita, a unidade da esquerda?

Continuo a entrada anterior, mas agora na perspectiva da política portuguesa. Como diz Mariana Avelãsnão é melhor passarmos a coisas práticas e estratégicas? Que fazer? Tenho só uma pequena biblioteca e sei pouco de finanças, mas estamos em tempos de todos darem o que puderem. Senão, daqui a pouco, “serão tempos de peste, em que os loucos vão conduzir os cegos” (se é que ainda não é assim). E como ensino aos meus alunos, vamos tentar discutir cartesianamente, parte a parte, com simplicidade mas com rigor. Ou, como costuma dizer René Lavand ao mostrar os seus truques de cartas, “no se puede hacer más lento”. 

Desde logo, para não enredar a discussão – embora não ache rigoroso – vou falar de uma esquerda, em geral, representada partidariamente pelo PS, PCP (mais PEV), BE e, agora, Livre. Para simplificar, falarei do PS e, como costuma dizer um amigo meu, a “esquerda à esquerda do PS” (EsPS). Também não direi una palavra sobre culpas na desunião. Não adianta chorar pelo leite derramado, embora coisas a mudar rapidamente para sucesso eleitoral próximo tenham ainda muito a ver com memórias ou preconceitos antigos das pessoas (que me interessam muito mais do que os agentes partidários).

Primeira pergunta: para que serve a unidade de esquerda?

A política não é um jogo infantil de sonhadores, mas às vezes até parece. Há respostas ridículas, que traduzem ingenuidade política ou oportunismo. Pretender que se consiga – ainda por cima por acção de um por ora pequeno partido – uma ancoragem do PS à esquerda é imaginar que se desamarra um partido como o PS de todos os compromissos nacionais e internacionais estabelecidos. A fórmula, em si, é inutilmente vaga, se não se disser o que significa essa ancoragem, em concreto, em posições programáticas. Como com todos os partidos, que confiança se pode ter em “ancoragens” que são promessas logo depois negadas? E que importância tem essa ancoragem no quadro dos factores que a direcção do PS põe na balança para as suas decisões políticas, se essa ancoragem não condisser com, por exemplo, as previsões de voto?

Mais ridículo ainda é justificar a união com o risco de o PS preferir governar com a direita. Mas que esquerda é essa que pode admitir entender-se tendo dentro de si a ameaça negocial de uma aliança adversária? Pior ainda, como ameaça sempre Rui Tavares: “não se queixem depois de o PS fazer logo uma revisão constitucional com o PSD”. Sem palavras!

Mas serve para algumas coisas: 1. travar os excessos nefastos da política da direita; 2. repor os esbulhos destes últimos três anos, praticar uma política de emprego e desenvolvimento, mesmo que baseada num consenso mínimo possível (não se admirem, lá irei); 3. dar aos eleitores uma perspectiva de alternativa a uma inevitabilidde de austeridade com que foram “informativamente” massacrados; 4. motivar para a mobilização de intervenientes políticos activos. Admito a importância dos pontos 3 e 4. Os anteriores, discutirei adiante.

Segunda pergunta: a unidade de esquerda é desejada?

Infelizmente, estou convencido de que é desejada muito menos do que se julga, e faço-o como quem tem esta pergunta por muito importante e procura sondar muitas pessoas que conhece. A unidade é desejada por muitos que a vêem no espaço limitado dos seus desejos bem intencionados, como se eles fossem a realidade. Estou convencido de que a maior parte dos eleitores, em particular os do PS, não dão um tostão por essa unidade. Mais, que o que eventualmente o PS ganharia eleitoralmente, vindo da abstenção ou do voto branco, seria largamente perdido, no seu centro ou na sua direita por eleitores que nem querem ouvir falar da esquerda à esquerda do PS. Cinicamente, concordaria com o PS, quando se recusa a fazer alianças à esquerda (a propósito, não se esqueça que foi sempre o PS que se recusou a fazê-las. Dizer o contrário é facciosismo).

Portanto, não são os poucos milhares de apoiastes do Livre ou de manifestos repetitivamente unitários, com nomes soantes a saltarem de um para outro, que têm autoridade prática – sem prejuízo da autoridade moral – para exigir a unidade de esquerda ao PCP e ao BE, geralmente deixando esquecido o PS. Ou então, apresentando propostas recuadíssimas ou vagas, por saberem que de outra forma teriam a recusa liminar do PS.

O que os defensores da unidade mítica devem fazer é contribuir para resolver o problema que enunciei: como fazer os eleitores do PS serem atraídos pela unidade? Não o fazendo, não se devem limitar a falar de unidade para os eleitores do PCP e do BE, que não precisam que se lhes fale disso. Outra coisa é falarem para os aparelhos partidários, que bem precisam, mas, aí, só é mais eficaz a defender a unidade quem a queira, prioritariamente, na área da esquerda consequente. A convergência mais ampla, a exigir compromissos mais difíceis, será coisa bem mais complicada e a precisar de forças de influência muito para além de manifestos de dezenas de pessoas.

Terceira pergunta: a unidade de esquerda é possível?

Creio já ter respondido parcialmente. Não tenho dúvidas de que será extremamente difícil ou só até um ponto sem consequências. Para além de factores mais circunstanciais, como as posições em relação ao combate à crise e em relação à ideologia única neoliberal, há coisas antigas e profundas que também s repercutem na opinião pública e que assim, por eleitoralismo, condicionam os partidos. Não se pense que está esquecida, para uma geração ainda viva e votante, a responsabilidade do PS no que uma boa parte da esquerda viu como traição ao 25 de Abril. Em contrapartida, para outros, o sectarismo e voluntarismo do PCP. Não querendo entrar agora nessa discussão (mas lá irei um dia), essa crispação ainda dificulta a unidade, tanto mais que estimula o espírito partidário, de fortaleza. Não quero dizer que este espírito existe tanto como se diz, mas vale aqui o “no creo en brumas, pero…”

De qualquer forma, como tantas vezes tenho defendido, creio que todo este lastro de vícios ou tiques partidários, juntamente com hábitos pouco exemplares, de carreirismo, oportunismo, promiscuidade com poderes económicos, etc., bem como, por outro lado, a crispação num sistema ideológico rígido, a falta de crítica profunda de transformações tão sísmicas como a implosão do sistema soviético, alguma falta de compreensão – que se veja – das grandes transformações sociais do último meio século; tudo isto só permite a unidade de esquerda no quadro de uma reconversão da própria esquerda. No caso de novos partidos, não mais do mesmo, ao sabor de pessoalismos, mas partidos alternativos, “partidos outros”.

Quarta pergunta: a unidade de esquerda é eficaz?

Admita-se que há resposta positiva para tudo o que se perguntou: a unidade de esquerda tem utilidade, é desejada, é possível. Creio que é admitir muito, por parte de alguém minimamente lúcido e realista. Mas será eficaz?

A pergunta não se deveria pôr se virmos a questão na perspectiva do combate ao inimigo principal, principalmente quanto ele é uma espécie de “inimigo mortal”. Neste caso, não é questão de a unidade poder ser eficaz; é de a unidade ter de ser eficaz, seja como for. Não era questão que se pusesse às resistências antinazis. Lutava-se, matava-se, morria-se também. O que seria absurdo é que estivesse na resistência quem não quisesse matar ou quem não estivesse disposto a morrer.

Passando o exagero da analogia, o nó górdio do problema actual da unidade é a solução da situação económica e financeira. O inimigo principal é este governo e as forças económicas que o suportam, bem como o aparelho político europeu. É preciso vencê-lo e seria bom que juntando forças, unitariamente. É claro que as posições do PCP e do BE são facilmente compatíveis, mau grado ainda formuladas tacticamente com muitos tons nebulosos. Mais ambíguas as do PS, mas sabendo-se, por exemplo, que estão presos ao seu voto favorável ao pacto orçamental e que recusam qualquer corte do montante da dívida.

Se a unidade se traduzir, como é desejável, numa acção comum de governo, seja de que forma institucional for, tem de assentar necessariamente num programa comum. Também é truísmo que esse programa tem de ser consensual e traduzindo compromissos de parte a parte. O problema está em saber-se quando uma cedência significa um compromisso razoável, mutuamente vantajoso, ou quando é um beijo mortal.

No caso actual, há consenso (afirmado) em que a superação da crise requer o crescimento da procura interna, a luta contra o desemprego, o investimento e o equilíbrio da balança externa. Também o equilíbrio das contas públicas, mas não como objectivo à custa daqueles objectivos prioritários. E, como se tem visto, é cada vez maior e significativo o número de pessoas influentes que entendem que esses objectivos exigem necessariamente a reestruturação da dívida, coisa que o PS recusa.

Em conclusão, pode tudo estar certo pergunta a pergunta – e, como tentei demonstrar, eu acho que não – e, mesmo assim, não faria sentido por nada chegar a mais do que um exercício gratuito, sem conteúdo político real. A política não se faz com sonhos ou no reino das fadas.

Quinta pergunta: então, finalmente, em que ficamos?

Recordo o que tenho como certo, coisas "elementares, meu caro Watson": 1. O PS tem mais interesse em aliar-se à direita do que à EePS, tanto pelas suas dependências internacionais como pela inclinação do seu eleitorado. 2. Mesmo assim, é exagerado e sectário considerar que o PS, seguindo sem dúvida uma política de compromisso com as normas ordoliberais europeias, o faria com a mesma brutalidade que o actual governo, porque tem que manter outra imagem junto do seu eleitorado. 3. Vai demorar um tempo longo até que a EePS tenha perspectiva de ascender eleitoralmente ao governo, precisando de muito mais do que os seus actuais 20% e mau grado a sua progressão continuada.

Assim, ninguém em perfeito juízo negará que se deve fazer o maior esforço por uma unidade da esquerda, sensu lato. Que a unidade exige sempre compromissos, senão não haveria razão para a existência de partidos diferentes com posições diferentes. A política é a arte do possível e isto não é obrigatoriamente oportunismo. A política é também a arte suprema de saber distinguir, mas interligando, a estratégia que exige firmeza e coerência e a táctica que exige flexibilidade.

Também parece de elementar bom senso entender que o compromisso não significa cedências estratégicas, que podem levar a descaracterizações mortais para a coerência da EePS, deixando todo o espaço livre para um pântano ideológico e político permeável às ofensivas da direita. Veja-se as consequências dramáticas para a esquerda italiana da crise e morte do PCI. Também é de elementar bom senso considerar-se que nem sempre há apenas a dialéctica entre estratégia e táctica. Há momentos, como agora, em que situações de crise abrem clivagens profundas dentro da esquerda.

Mas vivemos num paradoxo. Voltemos à resistência contra o inimigo comum. Se por vezes na história a unidade foi ofensiva, em geral ela é mais necessária como defesa contra esse inimigo comum. Mas como poderia ter havido resistência unida entre os partisans armados e grupos que preconizassem compromissos e entendimentos com o invasor? Neste momento, parece claro que a linha vermelha é a reestruturação da dívida. Já, por exemplo, a saída do euro, a meu ver, não devia ser impeditiva de um entendimento unitário. 

Julgo que vai ser milagre conseguir a unidade entre os que estão de um lado e outro dessa linha. E o problema é que, ao contrário de muitas questões quantitativas de política, em que se pode negociar ir mais longe ou menos longe, porque tudo é sempre ganho, neste caso, a questão é qualitativa. Não se pode semi-defender a reestruturação. Não se pode estar semi-grávida.

No entanto, mesmo sem se ir a esse aspecto essencial, há áreas possíveis de aproximação ideológica e cultural com efeitos políticos, em que é importante deixar a direita isolada e assim vista pelo eleitorado: os direitos humanos, a protecção das minorias, a solidariedade, as questões transversais societais, etc.

Na prática, esse nó górdio das divergências essenciais – diria que estruturais ou constitutivas – torna impolítica qualquer posição dogmática acerca da unidade. Mas não só daqueles, nomeadamentee os partidos da EePS, que são sempre acusados de sectarismo. Também os defensores da unidade a todo o preço são igualmente científicos e não-racionais politicamente. Muitos serão certamente generosos idealistas, mas não deixam de contribuir para o confucionismo político, para o fatalismo e, até, para o oportunismo messiânico de outros.

O que se pode fazer? Como simples independente de esquerda, não tenho a pretensão de poder influenciar os partidos, mormente o PS, que me olha como simpatizante da EePS (assim como esta desconfiaria de mim se eu fosse independente mas defensor do PS). Mesmo em posição modesta, não deixo de querer contribuir para um debate cada vez mais necessário.

1. A meu ver, o aspecto mais importante desse debate urgente – que também é uma contra-ofensiva ideológica contra o pensamento único – é dar meios aos eleitores efectivos ou potenciais de esquerda para eles poderem ajuizar das questões centrais e das diversas propostas: qual é o problema central que condiciona a solução da crise? Se é a dívida, a reestruturação é condição sine qua non para um programa unitário mínimo? Quais os prós e contras, analisados de um ponto de vista científico e não tecnológico?

2. Parece-me que é vão e inconsistente pretender-se qualquer avanço para uma unidade sem esta primeira fase, de proposição e de diálogo com os eleitores, estar minimamente desenvolvida. Nem seria de bom senso exigir isso a qualquer partido responsável, a menos que se embarque em fantasias de partidos envelopes ou partidos e-bay.

3. No entanto, em qualquer fase deste processo, o PS e a EePS devem já ter manifestado a sua disponibilidade para discussão das suas propostas para um governo alternativo, com base nas propostas fundamentadas que elaboraram, com forte componente de debate público e envolvendo a esquerda não partidária.

4. Era desejável que os partidos, na fase de discussão de formas possíveis de aliança ou de apoio mútuo e da plataforma programática de tal governo, se comprometessem à maior transparência possível desse processo.

5. Nada disto e a honestidade que lhe deve presidir fica prejudicado pelo que defendo como principal: que o processo unitário seja construído em dois andamentos, com dinâmicas, factores e coerências próprias. A discussão entre o PS e a EePS vai ser muito difícil, embora – repito – isto não justifique que desistamos de lutar por ela.  Pelo contrário, a unidade dentro da EePS – incluindo também movimentos, organizações, grupos informais – é mais fácil. Os seus efeitos são politicamente relevantes, mesmo que sem tradução a curto prazo no plano governamental. Fixa eleitorado à esquerda do PS e até simpatizante da ala esquerda do PS. Constrói alternativas abertas, de diálogo, a superar algum receio de pessoas de esquerda de se envolverem com os partidos. Conjuga influências em sectores políticos e sociais diferenciados. E, ligando à outra questão, reforça a capacidade negocial da EePS com o PS.

6. Assim, parece-me que, muito mais eficaz do que a luta inglória e prioritária pela convergência ampla da esquerda – que nunca se diz como se vai promover ou influenciar, seja com pequenos partidos ancoradouro seja com manifestos – seria a concentração prioritária de esforços para a constituição de uma forte frente unitária de forças políticas e sociais, partidária sou outras, mesmo de simples participação de pessoas singulares (para que servem os nossos meios na net?) para um programa comum de propostas e acções, a servir de contraponto às posições do PS num desejável processo negocial mais amplo.

Como me escreveu há dias um amigo a comentar uma entrada, “a primeira coisa que me parece certa é que não vai haver saídas fáceis. Teremos, sempre, sangue, suor e lágrimas… (…) Reconheço que é um caminho estreito e muito difícil, em que se tem que resistir tanto a cedências estratégicas como a hipotecas a uma cultura sectária que criámos.”

Como vamos suportar isso? Lutando, mas sem cair em coisas que acabem afinal é por fazer perder forças. Não será para amanhã, contra o desejo de quem quer a unidade já, seja como for e a qualquer preço. A impaciência não é uma virtude revolucionária.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Falácias sobre a expansão da extrema-direita

Mariana Avelãs lançou no passado dia 24, na sua página do Facebook, uma discussão bem interessante, a partir desta pequena introdução: “ ‘a direita une-se, a esquerda não’; ‘a extrema-direita cresce porque a esquerda não se une’. Para além de nenhuma das duas afirmações ser verdade, excluem-se mutuamente. Temos um problema - as ideias da extrema-direita têm apoio popular -, podemos olhar para ele racional e estrategicamente?”

O “post” vem na sequência dos resultados eleitorais franceses, mas reconhece-se facilmente a relação com a situação portuguesa, onde aquelas duas afirmações – substitua-se extrema direita por governo actual – são correntes no discurso político de muita gente de esquerda bem intencionada mas, a meu ver, vítima de uma visão romântica da política (sem ofensa). A nota de Mariana Avelãs é acutilante e merece reflexão. Não havia condições para o fazer no Facebook e transfiro-a para aqui.

Nas eleições municipais do último domingo, a esquerda apresentou-se dividida, com resultados bem diferentes: a Frente de Esquerda (constituída principalmente pelo PCF e pelo Partido de Esquerda, dissidente do PS) aguentou-se; a votação nos socialistas foi um desastre. A direita tradicional também subiu um pouco mas não tão espetacularmente como a Frente Nacional (FN). Já se ouve por toda a parte criticar a desunião da esquerda, responsabilizando-a por uma eventual vitória da FN, mesmo que relativa, e já se começa a fazer a extrapolação para a situação portuguesa, nesta estafada querela sobre a convergência.

A meu ver, as duas situações são incomparáveis. Na França, trata-se de eleições autárquicas, não decisivas para a conquista do poder. É certo que marcam uma dinâmica política e têm consequências, porque em política tudo está ligado numa rede de factores dinâmicos. No entanto, aliás como cá, há determinantes locais que influenciam fortemente estas eleições e que retiram legitimidade à comparação com as legislativas. Veja-se, cá, o fenómeno recente das listas não partidárias. A haver lugar para alguma comparação, mais facilmente será entre legislativas e europeias, principalmente quando, como agora, os problemas estão tão interligados.

Também me parece abusivo comparar a utilidade da união de esquerda no caso francês de eleições uninominais em duas voltas e de eleições com proporcionalidade e a uma volta, como as nossas legislativas. É indubitável que, no primeiro caso, a candidatura comum na primeira volta e, principalmente na segunda volta contra o candidato e direita, tem grande efeito político. A analogia, em Portugal, seria com a vitória de Mário Soares contra Freitas do Amaral.

Já nas legislativas, o efeito positivo directo é marginal, apenas em resultado de benefício pelo método de Hondt. É certo que há efeitos indirectos, de empenho e confiança política, de mobilização e de combate à abstenção; mas é preciso analisar isto na perspectiva de custos/benefícios, como veremos mais tarde.

Passo às posições de Mariana Avelãs, com que concordo e, desde logo, sobre a falsidade de “a direita une-se, a esquerda não”. É fácil de ver que isto é uma generalização de uma apreciação da situação portuguesa, já por si controversa (por exemplo, tem havido muitas formas de convergência prática entre o PCP e o BE). Quem afirma tal coisa são sistematicamente os que querem à viva força meter no mesmo saco quem claramente não quer ser lá metido. Procedem como os escuteiros da conhecida anedota da velhinha que não quer atravessar a rua.

De facto, não há nenhuma situação comparável à portuguesa, mesmo que se considerem como equivalentes – o que não é correcto – extrema direita fascista (Grécia) ou semifascista (França) e direita troikista onde não há partidos fascistas com significado (Portugal, Espanha, Itália), para já não falar dos partidos xenófobos de países sem uma esquerda expressiva (como os nórdicos). Para também não falar do fenómeno único que é o populismo à Beppe Grilo, embora já se vislumbrem cá alguns sinais, na campanha abusivamente generalizante contra os políticos e as suas benesses.

Veja-se, por exemplo, que há uma forte união de esquerdas na Espanha (Esquerda Unida) e na França (Frente de Esquerda), assim como, na Grécia, o Syriza é uma união política, embora sem a participação do PC (KKE). Veja-se também que a Frente de Esquerda francesa resiste ao crescimento da FN. Não há, portanto, dois casos iguais. A única coisa em comum é que, em plena crise que faz tudo mais claro e que deixa à mostra todos os gatos escondidos, os PS – por sua inteira decisão – ficam à margem, quando não se colocam inequivocamente no outro campo (Grécia).

A segunda tese que Mariana Avelãs desmente é “a extrema-direita cresce porque a esquerda não se une”. Novamente de acordo. Digo mais: parece-me coisa disparatada, sem fundamento racional, e coisa de “wishful thinking”. Os resultados franceses e as previsões na Grécia mostram a falácia, quando se repara que só uma “esquerda” (PSF, Pasok) é que desce em relação inversa com o crescimento da extrema-direita. Há uma movimentação de um eleitorado que se sente mais atraído pelas posições de extrema-direita do que pelos partidos socialistas, mas não por estes não fazerem unidade de esquerda, coisa que nunca fizeram. Esse eleitorado está-se nas tintas para unidades de jogo partidário e vê é que os seus problemas de pauperização e desemprego, em competição com os imigrantes, são preocupação demagógica dos partidos anti-sistema. Pelo contrário, os eleitores de esquerda mais conscientes continuam a dar o seu voto à esquerda consequente. A desunião não penaliza a totalidade da esquerda! 

Por isto, a pergunta de Mariana Avelãs – “temos um problema - as ideias da extrema-direita têm apoio popular -, podemos olhar para ele racional e estrategicamente?” – é crucial. Já era nos antigos fascismos. Lembremo-nos de que, com excepção da Espanha, até atingiram o poder por via legal, e invocando o “socialismo”, ou o passado socialista do líder, como Mussolini.

Antes do mais, parece-me necessário não limitar a questão ao plano das ideias. Como certamente a autora pretende dizer, o apoio popular tem base socioeconómica sem cuja análise racional e estratégica não vamos a lado nenhum. Desde logo, distinguir o novo fascismo do fascismo da terceira década do século passado. Vivia-se então a grande depressão e muitas sequelas da guerra, as migrações eram insignificantes e o poder dos partidos de esquerda e dos sindicatos era muito grande, com graves riscos, para o capital, de explosões sociais e revolucionárias (com uma Revolução de Outubro ainda bem viva). Assim, segundo a tradição da perspectiva marxista, os fascismos foram uma expressão política antidemocrática de repressão da capacidade de luta das classes trabalhadoras, um passo em frente no reforço da exploração capitalista. Note-se que, nessas condições, o componente xenófobo foi relativamente secundário, ou mais manifesto na exacerbação do mito nacional. O caso do anti-semitismo nazi é secundário à essência dos fascismos.

Actualmente, a situação social e económica em que se move a extrema-direita e em que tem sucesso, é muito diferente. Os problemas são os mesmos, como consequência da crise, mas misturados com outros de forma a que muitos eleitores ficam confusos e são facilmente manipulados. O sucesso das posições de extrema-direita vem da sua associação clara ou disfarçada a problemas reais dos eleitores. A xenofobia é a hostilidade ao imigrante que compete no trabalho, com salários mais baixos. O nacionalismo, idem mais o apelo ao nostalgismo em relação a mitos de passado glorioso de um país agora secundário num mundo unipolar. O antieuropeísmo e a antiglobalização idem e ainda a forma de combater as consequências da impossibilidade de políticas proteccionistas ou os efeitos no emprego das deslocalizações. A segurança pela violência liga-se à ideia da lumpenização de muitos sectores pauperizados, à marginalizarão dos imigrantes, à disrupção social, das comunidades, dos modos de viver, dos equipamentos.

No entanto, é preciso ter-se em conta, a meu ver, que a extrema-direita tem hoje menos importância do que antes como instrumento do capitalismo. Infelizmente, ele não está em perigo, atravessando apenas uma crise de desenvolvimento. A hegemonia é total, em todos os planos: político-institucional, cultural, ideológico, informativo, moral. É muito mais eficaz usar meios "suaves" no quadro da "ordem natural" do que atiçar a brutalidade do neofascismo. Este fica de reserva, porque há sempre oportunidades convenientes, como na Ucrânia.

Na perspectiva próxima das eleições europeias, a situação é particularmente difícil de abordar porque a demagogia de extrema-direita faz suas posições até recentemente de esquerda, como a luta contra a agenda oculta da globalização, a denúncia do euro ou a defesa de medidas proteccionistas, contra a utilização imperialista dos instrumentos reguladores do comércio mundial. A extrema-direita apossou-se de bandeiras tradicionais da esquerda não por desunião desta mas porque parte da esquerda deixou abaterem-se essas bandeiras.

Que lições para nós, portugueses? Lá irei na próxima entrada.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Notas leigas sobre economia


1. O aparelho oficial, do governo e sua corte, embandeira em arco com os últimos indicadores, referentes ao último semestre de 2013. Ficando-nos agora pelo PIB, é inegável algum progresso: aumento em cadeia de 1,7%; variação homóloga de -1,4%, quando tinha sido de -3,2% em 2012. Mas não me parece que a análise seja assim tão simples.

O fundamento da política oficial europeia de austeridade, de raiz ordo ou neoliberal, vem da arcaica lei de Say – agora celebrada por Hollande – que postula que o motor do crescimento económico é a oferta e não a procura. Para tornar competitiva a oferta, no caso das exportações, não podendo cada país europeu recorrer à desvalorização da moeda, procede-se à desvalorização interna, isto é, a redução do preço do trabalho. Só assim é que, segundo os austeritaristas, a sua política pode ser de “austeridade expansionista”, fornecendo em paralelo meios para a resolução do problema da dívida e do défice.

A ser assim, alguma coisa está mal na situação do último trimestre. Como se vê no gráfico, o que evoluiu favoravelmente e de forma muito significativa foi o peso da procura interna. A procura externa, a que, grosso modo, correspondem as exportações, estagnou. Como se explica o aumento da procura interna? Talvez haja mais razões, mas parece-me bem que é caso para dizer que a economia (e as pessoas que a vivem) têm razões para estarem gratos aos travões à austeridade, entre os quais o Tribunal Constitucional.

2. De que depende a sustentabilidade da dívida? Elementar. Sendo uma fracção, dívida como percentagem do PIB, este em denominador, o valor é tanto maior quanto o PIB for menor. Depois, depende do montante a pagar ao longo dos anos (maturidades), das taxas de juro a agravar o pagamento e do saldo orçamental primário, sem os juros, isto é, o que fica disponível para ir pagando a dívida e os juros (o serviço da dívida).

Não percebo muito bem como se fixa um critério para a sustentabilidade da dívida. Palpita-me que é um pouco arbitrário. O célebre critério de 90% do PIB derivado do estudo de Reinhart e Rogoff caíu em desgraça. Ficou o critério de Maastricht, mais restritivo, de 60%. Vamos admitir, porque o Tratado orçamental nos prende a ele, enquanto não quebrarmos essa prisão.

Para isso, há muitos cenários, mais ou menos irrealistas, para se chegar à conclusão de quantos anos serão necessários para, invertendo a tendência para subida da dívida, agora 129,4% do PIB, se chegar àquele limite. Por exemplo, o FMI calcula que será de 115% do PIB em 2019, desde que as taxas de juro andem por 3,5-4%, que o saldo primário vá de 1,9% em 2015 até 3,2% em 2019 e que o PIB nominal (PIB real mais inflação) cresça em média 1,5% ao ano. O que não leio no cenário do FMI é o prazo para se atingir o critério de Maastricht.

No último fim de semana, Cavaco Silva também fez contas, segundo as quais ficaríamos obrigados a mais austeridade e sacrifícios por a garantia da sustentabilidade da dívida só se atingir daqui a 21 anos, desde que se garanta um aumento anual de 4% (!) do PIB nominal e de 3% do saldo primário. Já para Passos Coelho e sua gente as coisas são muito mais simples: a dívida já é sustentável (só não se percebe é para quê, então, mais austeridade).

Será que os parâmetros do FMI são realistas? Não sou economista, mas julgo que tenho bom senso. Vou admitir que os mercados não tenham mais crises de nervos, como meninas histéricas, e que os juros fiquem pelos 3,8%. Quanto ao PIB nominal, considerando uma inflação de 0,8%, e que o crescimento médio foi de 2,4% antes da destruição troikana da economia, proponho, generosamente, um aumento anual de 2% (deflector mais metade da média de crescimento pré-crise). Para saldo primário não dou mais do que 1%, porque saldo primário é coisa que, ao que julgo saber, raramente tivemos na nossa história ( e nunca nos últimos 17 anos).

A Deloitte, com o Expresso, oferece uma página da net onde se pode fazer a simulação da sustentabilidade da dívida, em termos do número de anos necessário para se alcançar o limiar de Maastricht. Introduzi estes meus parâmetros. O resultado foi de 147 anos! Façam as vossas simulações.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Um passo para o entendimento

Julgo que o manifesto dos 70, “Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente”, merece a maior atenção, apesar das suas limitações e ambiguidades, como veremos adiante. Tem-se escrito muito e desde há muito tempo, como neste blogue e outros, defendendo que uma imprescindível política contracíclica de crescimento, emprego e aumento da procura interna exige recursos que são impossíveis se continuarmos presos a tão desmesurada dívida (129% do PIB) e ao seu serviço. Quem o tem defendido, por exemplo em blogues, deve regozijar-se por ver aparecer este manifesto, desde logo marcante e surpreendente pelo leque de subscritores.

Não é a primeira vez que se fala de reestruturação. Muita gente o tem feito, individualmente, propondo formas mais ou menos avançadas de reestruturação, assim como a reestruturação está patente em propostas partidárias, mais incisivamente do PCP. Até o próprio governo já fez, com a troika, uma reestruturação suave, prolongando as maturidades e reduzindo as taxas de juro do empréstimo. Não fez qualquer alarde disso para não desmentir o seu dogma de que tudo era uma maravilha com o cumprimento escrupuloso do memorando.

O que é a primeira vez é ver a reestruturação defendida por tão variado leque de pessoas respeitadas e com impacto público. Não se pode subvalorizar a assinatura de notáveis dos partidos do governo, incluindo uma ex-presidente do PSD e um conselheiro de Estado do CDS. Nem a reacção forte de discordância do governo, desdobrada por Passos e por Maduro, até com o labéu moral de traição. Quando vejo que uma acção atinge fortemente o meu inimigo, tendo, em princípio, a apreciá-la.

Neste caso há mais, há o conteúdo do manifesto. Discordo ou duvido de muita coisa, mas há aspectos essenciais que podem ser um caminho para entendimentos práticos, até mais do que as posições partidárias irreconciliáveis à esquerda do governo – sim (PCP e BE) ou não (PS) a uma verdadeira reestruturação – que, a meu ver e como tanto escrevi aqui, aqui, aqui ou aqui, impedem a convergência compreensivamente tão desejada por muita gente de esquerda.

O manifesto contém posições de princípio que subscrevo, como, por exemplo: “Nenhuma estratégia de combate à crise poderá ter êxito se não conciliar a resposta à questão da dívida com a efectivação de um robusto processo de crescimento económico e de emprego num quadro de coesão e efectiva solidariedade nacional. Todos estes aspectos têm de estar presentes e actuantes em estreita sinergia. A reestruturação da dívida é condição sine qua non para o alcance desses objectivos. (…) A resolução da questão da dívida pública não só se impõe pelas suas finalidades directas, como pela ajuda que pode dar à criação de condições favoráveis à resolução dos problemas específicos do endividamento externo e do sector empresarial, que são igualmente graves. A dívida pública tornar-se-á insustentável na ausência de crescimento duradouro significativo: seriam necessários saldos orçamentais primários verdadeiramente excepcionais, insusceptíveis de imposição prolongada.

Um aspecto formal mas importante é o uso sem ambiguidade da palavra reestruturação. Entre nós, por puro tacticismo eleitoralista, tem-se jogado com os termos renegociação e reestruturação. Como modificação dos três parâmetros da dívida – maturidades (isto é, prazos), taxas de juro e montante – os termos são equivalentes. No entanto, muita gente tem a ideia de que renegociação é o que defende o PS (e até há tempos o BE), só afectando maturidades e juros, mas negando a hipótese de cortes no montante (“hair cut” ou corte de cabelo). 

O PCP, por exemplo, também usa mais frequentemente o termo renegociação, mas incluindo claramente a revisão dos montantes e até a preparação da saída do euro, se necessário. O BE tem vindo a ser mais incisivo do que era, defendendo a reestruturação e eventualmente uma moratória do serviço da dívida. A Iniciativa para a Auditoria Cidadã da Dívida fala de renegociação com o significado inequívoco de reestruturação, mas porque esta deve ser precedida de renegociação. Deixo de fora o Livre, que não diz coisa nem coisa, defendendo uma “revalorização” que só eles compreendem.

Resultando do compromisso entre pessoas tão díspares, o manifesto não podia deixar de conter muitas ambiguidades (paradoxalmente, em contraste com coisas excessivamente pormenorizadas e por natureza imprevisíveis antes das negociações). Também, em minha opinião, propostas que ficam aquém do mínimo necessário e do muito que já tem sido proposto. Mas é melhor do que nada, melhor do que o que defende o "arco central". Mesmo assim, até me surpreende que possa ter sido subscrito por tão variada gente. Quase que apetece pensar que ou não estou a ler bem na entrelinhas ou alguns subscritores assinaram sem grande reflexão e exigência. Quero crer que seja, essencialmente, espírito de diálogo.

Concordo com muita coisa. Que o primeiro plano de discussão deve ser o europeu (desde que não se fique preso a ele) e privilegiando a negociação (mas sem rendição à perspectiva dos credores). Que “sem a reestruturação da dívida pública não será possível libertar e canalizar recursos minimamente suficientes a favor do crescimento”. Que “sem reestruturação da dívida, (…) subsistirá o desemprego a níveis inaceitáveis, agravar-se-á a precariedade do trabalho, desvitalizar-se-á o país em consequência da emigração de jovens qualificados, crescerão os elevados custos humanos da crise, multiplicar-se-ão as desigualdades”. Que uma provável reacção alemã de contra-gosto não significa necessariamente um veto, porque a reestruturação pode ser o mal menor para a Alemanha.

Mas já tenho muitas dúvidas em relação às propostas concretas de reestruturação. Desde logo, que ela seja feita “através de processos inseridos no quadro institucional europeu de conjugação entre solidariedade e responsabilidade”. E, para não haver dúvidas, diz-se que deve ser uma “reestruturação responsável”. 

Ora a fracção da dívida oficial é de cerca de 40%, sendo o resto detido por privados estrangeiros e portugueses. Não terá de haver outros envolvidos, como o clube de Paris, ou novos mecanismos, como uma reedição do plano Brady, desde que livre dos favorecimentos aos credores? Ou um quadro multilateral, não institucional, como dos acordos de Londres, bem descritos no manifesto? Em suma, a reestruturação cingida ao quadro institucional europeu parece-me o ponto mais fraco deste manifesto, espartilhando Portugal e, na prática, continuando, de outra forma, a sua vassalagem aos poderes europeus. Mesmo que se julgue haver razões para optimismo (eu não julgo) esta proposta é um plano A sem plano B.

Também tenho dúvidas em relação à visão optimista do manifesto quanto a uma nova política europeia de solidariedade e de prevenção de incumprimentos, para defesa do euro. A experiência dos últimos anos mostra que, apesar de uma ou outra acção pontual de alívio da Grécia, a perspectiva ordoliberal e punitiva a que obedece a Alemanha a faz incorrer – e à Europa que ela domina – em riscos suicidas. Por isto, não me parece evidente que seja mais fácil começar a reestruturação pelo sector oficial da dívida. Parece-me uma questão delicada, de contornos imprevisíveis, a deixar para as negociações.

A terminar, dois efeitos políticos importantes deste manifesto. Em primeiro lugar, veio desfazer a construção feita à volta de Cavaco Silva, com os prefácios publicados pelo Expresso. Os dados são os mesmos, a dificuldade ou impossibilidade de pagar a dívida. Mas, enquanto que para o Presidente a conclusão inevitável era a de continuação da austeridade, vêm os autores do manifesto propor a alternativa de solução do problema pelo lado da própria dívida.

Depois, o manifesto é uma bomba para o PS, a dois meses das europeias. O PS estava a ter o escape de recusar uma reestruturação na perspectiva da esquerda, “irresponsável”. Com isso, enrolava a opinião pública numa vaga renegociação que em nada diferia do que foi feito pelo governo, pela calada, e que, aliviando um pouco o serviço da dívida, não resolve o verdadeiro problema do montante da dívida. 

Os eleitores vêem agora que há uma alternativa (mesmo que não seja a que muita gente como eu defende) dita “responsável” e que o PS rejeita. Perguntar-se-ão: mas afinal o que quer o PS? Em que difere do PSD a sua proposta política para a crise? E é realista continuar a bater na tecla da convergência com o PS “que a esquerda radical é que não quer”, quando, neste caso crucial da reestruturação, as posições da esquerda consequente são facilmente debatíveis com os subscritores do manifesto (de esquerda e de direita) mas não com o PS, por sua auto-exclusão?

NOTA – Não faço depender a acção política de personalidades e da sua capacidade mediática, principalmente quando não é bem conhecido o seu pensamento globalmente estruturado. Mas seria infantilmente esquerdista se, como neste caso, eludisse a sua importância prática ocasional.

domingo, 9 de março de 2014

Notas soltas, a pensar em Maio

1. Neoliberalismo, a crise final do capitalismo?

Penso que, ao contrário do que por vezes leio, o capitalismo não está em crise, no sentido de uma crise final, a abrir a possibilidade da sua derrota por via revolucionária. A crise actual, como muitas outras por que tem passado o capitalismo, é uma crise de ajustamento a mudanças da estrutura produtiva, da evolução tecnológica e, agora, com relevo especial, à alteração do peso relativo do capital industrial e do capital financeiro.

Não creio que esteja já à vista o fim do capitalismo. De um ponto de vista gramsciano, ele ainda tem, para mim indiscutivelmente, a hegemonia, desde o controlo do aparelho político à formatação ideológica, à influência nos modos de vida e nas aspirações individuais e ao controlo da informação. Detém um eficaz sistema interactuante de instrumentos, incluindo as universidades (nas áreas de maior importância ideológica e política, nomeadamente o direito, a economia e outras ciências sociais).

Isto vem a propósito de uma entrevista recente do primeiro-ministro luxemburguês, Xavier Bettel em que, interrogado sobre “o que pensa sobre os problemas dos países sujeitos a programas, sobre a união bancária, ou sobre uma futura mutualização da dívida é exactamente o mesmo que a chanceler alemã?”, a sua resposta não podia ser mais cândida: “Sim”. Não há sombra de vergonha por este indecente seguidismo. Provavelmente, ele nem a sente, porque isso faz hoje parte do espírito reinante e assumido de “his master’s voice”.

Custa-me a crer que políticos deste nível possam ser estúpidos. Mas o que os torna tão incapazes de um pensamento próprio, de uma atitude crítica? Só pode ser uma devoção fanática, a formatação ideológica por dogmas religiosamente tidos por indiscutíveis. Enquanto assim for, a luta ideológica da esquerda é tanto ou mais determinante do que as lutas tradicionais pelas conquistas materiais.

A globalização enquadrada no neoliberalismo é também a uniformização política. Já não há o jogo das tensões entre interesses nacionais, as ideias e práticas dos grandes estadistas. Há um pensamento único ao serviço de um capital financeiro deificado, um pensamento único expresso politicamente por robôs burocratas e medíocres, nos governos e nas instâncias internacionais, e por executores tecnocratas na banca e nos órgãos de domínio económico-financeiro. E também um pensamento único instilado por todos os meios nos cidadãos. Tudo isto é a hegemonia. Acreditar que ela pode ser anulada jogando apenas nas suas instituições e com as forças políticas rendidas ao essencial do pensamento único, é ilusão perigosa.

2. A saída do resgate

Na mesma entrevista, diz X. Bettel que “Portugal tem de continuar a aplicar a austeridade, aceitando as condições europeias para o apoio à sua economia.” Que condições são estas, não diz explicitamente. A própria entrevistadora, Teresa de Sousa, habitualmente não muito distante da orientação europeia dominante, anota que “consequências sociais ou consequências económicas da aplicação do programa de ajustamento são coisas que lhe estão distantes.”

Entretanto, a natureza e grau da austeridade que nos querem impor ou que nos é apresentada, interna e externamente, como inevitável, é escamoteada na discussão sobre a alternativa “saída limpa” ou plano cautelar, discussão muito em foco neste fim de semana, com as posições de Cavaco transcritas pelo Expresso. O que é importante lembrar, e é a vantagem de afirmações brutais como a de Bettel, é que ambas as formas de conclusão do resgate actual têm alto preço. Veja-se, por exemplo, um bem elucidativo “post” de hoje de Ricardo Paes Mamede (Ladrões de Bicicletas).

O programa cautelar é uma coisa nebulosa, que nos é apresentado pelo governo e por Cavaco como um seguro, não um empréstimo. Mas o que não dizem é que está sujeito a condicionalidades, isto é, compromissos de políticas de austeridade, ainda desconhecidas. Por outro lado, a saída limpa coloca o país sob ameaça permanente das oscilações dos mercados e com juros porventura mais altos até do que os que temos pago à troika. E tanto um programa cautela como uma saída limpa nos sujeitam a uma tutela durante muitos anos, como compromisso aceite aquando da assinatura dos memorandos, e no quadro de uma soberania orçamental limitada pelos “packs” dois e seis e, principalmente, pelo tratado orçamental. Como cumprir esses compromissos a que o governo nos amarrou, com o voto pressuroso do PS, é que não se diz, quando o próprio FMI entende que o cumprimento exige um miraculoso crescimento anual de 3,6% do PIB nominal e um saldo orçamental primário de 3,2% (agora -1,6%).

Mas será esta discussão verdadeiramente relevante? A melhor resposta é dada por Passos Coelho, quando vai a Berlim, e não a Bruxelas, para ouvir a opinião sobre o pós-troika. É isto que conta, não uma “decisão” portuguesa. O sistema europeu quer mostrar que a política de austeridade e a receita ordoliberal alemã são a verdade absoluta e que a sua aplicação resulta, no caso português – e, espanto, até no grego, segundo Barroso – em sucessos indiscutíveis. Para isto, se necessário, até pagarão, embora dissimuladamente. Há dias, Marques Mendes foi transparente, e estou inteiramente de acordo:“o mais importante não vai ser o que nós queremos mas o que a Europa nos dá”.

3. Sondagens mistificadoras

Uma sondagem de há dias revela que 49,2% dos inquiridos prefere a “saída limpa” e 39,4% o programa cautelar (os restantes não sabem). Pergunto-me se não há efeitos da forma como a alternativa é posta: “regressar aos mercados pelo seu próprio pé para recuperar a soberania financeira” ou “ter a segurança de uma linha cautelar do BCE”. As opções são argumentativas e claramente manipuladoras, principalmente a primeira. 

É cada vez mais frequente lermos destacados economistas e analistas políticos, de um amplo espectro político, começarem a discutir a insustentabilidade da dívida, defendendo a necessidade da sua reestruturação e até, se necessário, a saída do euro. Ambas as coisas são liminarmente rejeitadas não só pelo governo mas também pelo PS. A referida sondagem mostra também que ainda se está longe de o eleitorado encarar, pelo menos como hipótese de reflexão, a libertação da prisão em que está perante esse bloco central do pensamento político-económico dominante. Apenas 6,3% consideram positiva a reestruturação, contra 71,8% que a acham má ou muito má, considerando-a razoável os restantes 15,4% dos que respondem.

Anote-se que, uma vez mais, a pergunta é mistificadora e, neste caso, incompreensivelmente (?) incompetente: “existe quem defenda que não se deveria pagar as dívidas às entidades internacionais mesmo que isso possa implicar a saída do euro”. Mas quem é que defende que não se pague aos credores oficiais?!

Sinal da perplexidade que por aí vai, a mesma sondagem mostra que larga maioria dos inquiridos, apesar de opostos à reestruturação da dívida, considera que a política de austeridade afunda económica e socialmente o país e que não vai diminuir com a saída da troika. No entanto, 43% acham que a austeridade foi uma inevitabilidade, consequência do endividamento. 

Esta confusão das pessoas também se traduz nas previsões eleitorais, segundo a sondagem. O PS continua em primeiro lugar, com 37,2% (margem de erro?) mas ligeiramente a perder terreno, enquanto que o PSD – por razões que certamente justificam estudo cuidadoso – progride constantemente  desde Outubro de 2013, alcançando 28,4%, o que, com os 8,7% do CDS, também estável, dá um empate técnico com o PS. Preocupante, para mim, é a situação da esquerda. Há descida da CDU, agora com 10,5% mas estando colocada cerca de 2,5% acima na sondagem de Outubro de 2013. Para o BE prevê-se 4,9%, resultado até inferior aos 5,2% das legislativas de 2011, em que o BE foi fortemente penalizado.

Nota final – Veio a calhar uma conversa, há minutos, com uma visita interessada politicamente e votante habitual na zona central. Considerando-se traído pelo PSD, também não estava virado para o PS, por este estar a ser demagógico: “não acha que é aldrabice estarem a prometer coisas quando a dívida não lhe permite terem recursos?”. Assim, não havia alternativa de voto, todos acabariam por ter de fazer a política de austeridade. Respondi-lhe que havia alternativa, a da reestruturação e outras medidas para a recuperação da soberania financeira, para uma política de crescimento e de emprego. A rejeição foi clara, por razões de “economia moral” e de resignação perante as imposições dos mais fortes. Vai ter de se trabalhar muito para ganhar a batalha do esclarecimento político.

terça-feira, 4 de março de 2014

Os novos cursos profissionais

Vou hoje centrar-me num tema político em que julgo ter reputação, o da política da educação superior. Vou discutir a decisão recente do Governo de criar um novo tipo de cursos sem concessão de grau, os Cursos Técnicos Superiores Profissionais (CTSP). Serão cursos de formação profissional, reconhecidos como de nível 5 do quadro europeu de aprendizagem (e do quadro português), com duração de dois anos (120 créditos) e leccionados exclusivamente em estabelecimentos de ensino politécnico.

Segundo o comunicado oficial, os CTSP vêm “colmatar uma necessidade dos estudantes», de terem uma formação de nível superior, mas mais curta que a licenciatura, que permita a formação de técnicos superiores, «muito necessários ao País hoje em dia”. Não é verdade. Já existem, há vários anos e por todo o país, os Cursos de Especialização Tecnológica (CET). Tanto uns como outros têm orientação profissional, são de nível 5 de qualificação, exigem o 12º ano. A principal diferença é que os CET são cursos de 60 créditos (um ano), podendo ir até 90. Assim, em termos de duração, os CET distinguem-se claramente das licenciaturas (3 anos), enquanto que os novos CTSP ficam a um passo da licenciatura. Vai ser uma grande confusão, com competição interna, com extinção de CET úteis e criação de CTSP duvidosos. Por isto, o Conselho coordenador dons institutos politécnicos já declarou que os institutos se recusam a leccionar os novos cursos.

Outra diferença explica muita coisa e mostra que pouco vale o tão propalado rigor e domínio técnico de Crato, afinal limitado a um superficial discurso demagógico de crítica a um pretenso “eduquês”. É que os CET, não sendo reconhecidos como de nível superior pela União Europeia, não beneficiam de financiamento, o que deixa de acontecer com os novos CTSP, já com 20 milhões de euros anuais.

Ao contrário das licenciaturas, em que a questão do mercado de trabalho é complexa, não me parece haver dúvidas no caso de cursos de formação profissional, que não podem formar para o desemprego. E aqui põem-se graves problemas com os CTSP, como posso exemplificar com o caso da escola que dirijo. Não temos ainda CET mas íamos propor quatro: aquariotecnia e terrariotecnia, tratadores de animais de laboratório, auxiliares de laboratório, operadores informáticos de dados estatísticos. Todos cursos para que se previa procura e perspectivas de emprego, de acordo com informação recolhida no trabalho. Com a extinção dos CET e sua substituição por cursos de dois anos, nenhuma dessas propostas faz sentido. Não vamos obrigar um jovem a gastar dois anos a aprender a esterilizar material de laboratório e saber pesar e preparar soluções, nem outro a saber introduzir correctamente dados em Excel, organizá-los e fazer análises rudimentares.

Também receio a desvirtuação das intenções de formação profissional. É verdade que a lei dos CTSP vai impor um limite máximo de 30% de créditos de natureza académico-científica, mas tudo se consegue fazer em área tão vaga e ambígua como a definição dessa natureza. Não se esqueça que os politécnicos fizeram uma “deriva académica” e, opostamente, as universidades uma “deriva profissionalizante” em áreas científicas tradicionais.

As universidades, que agora já podem criar escolas politécnicas integradas e que necessitam cada mais de alunos, podem sempre aproveitar este novo factor de oferta/procura. Em vez da dúvida que famílias possam ter em relação a um compromisso inicial com uma licenciatura, podem agora ir em dois passos, primeiro um CTSP a dar uma qualificação e, se possível, prosseguimento para uma licenciatura.

Como nota final, o que já ouvi sobre os CTSP, que corresponderiam ao modelo já longamente consagrado cos cursos dos “colleges” americanos, que conferem certificados ou diplomas, mas não graus académicos. De facto, em comum só têm ser cursos de dois anos a que se tem acesso com o ensino secundário completo. Tudo o mais é diferente. Em primeiro lugar, as licenciaturas nos EUA (BA, BSc) são de quatro anos, mais claramente separadas dos cursos de “college”. Em muitos casos, o curso do “college” é uma fase preliminar ao ingresso na universidade. Em segundo lugar, os cursos dos “colleges” têm muita procura porque as universidades são muito caras e os “colleges” são públicos e comunitários, ao passo que cá as propinas de CET/CTSP e licenciaturas não são consideravelmente diferentes. Depois, o mercado de trabalho americano é muito diferente, muito mais terciarizado,valorizando muito mais as competências básicas prolongadas com especialização em exercício. Mais, a oferta de cursos cobre praticamente todas as actividades, estando assimilado pelo mercado que um nível secundário de emprego exige um curso de “college”, senão vai-se para empregos indiferenciados.

Esta última é que é a semelhança connosco, a de os jovens terem alta probabilidade de só encontrarem emprego indiferenciado. Mas não é por não terem um CTSP. Que o digam os caixas de supermercado que não têm CTSP; têm é licenciatura e, um dia destes, doutoramento. Depois do último concurso de bolsas da FCT, não me admiraria.

Indirectamente, este problema chama à discussão o processo de Bolonha, o seu paradigma e o sistema de graus. Faz sentido que uma licenciatura exija três anos e um curso intermédio profissional dois, apenas um ano menos do que a licenciatura? Fica para a próxima.