terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Revendo erros

Quando aqui publiquei a minha (com José M. Tengarrinha) proposta de Declaração de princípios do MDP/CDE renovado, em 1992, escrevi (imodestamente) que me parecia um documento importante por, infelizmente, ainda ser muito actual. Por outro lado, o partido estava adiantado na percepção de grandes mudanças sociais com impacto político, que passavam a léguas de distância dos discursos partidários. Apenas no meio académico se começava por essa época a analisá-las, como no livro de Boaventura Sousa Santos, “Pela Mão de Alice”, publicado com muito sucesso um pouco depois (1994).

Não obstante, e como nem tudo podia ser previsível, há coisas nesse texto que hoje não subscreveria. Dou alguns exemplos mais importantes, não para me desculpar mas para mostrar – passe a lapalissada – como é preciso estarmos sempre abertos à mudança, a questionar construções mentais aparentemente muito sólidas.

1. O PS

Caímos numa certa expectativa ingénua em relação às perspectivas de diálogo com o PS (hoje diz-se convergência…). Desejávamos que fosse um contributo do MDP/CDE para o desenquistamento das relações entre o PCP e o PS (não havia ainda o BE), que limitavam a acção popular contra a direita (a maioria cavaquista). Devo também admitir honestamente que podia haver em muitos companheiros do MDP/CDE algum ressentimento contra o PCP, por erros sectários do maior partido da coligação APU. Era natural um certo subjectivismo na consequente atitude de expectativa em relação a uma diferença de relações com o PS, reforçado pelas críticas ao PCP por ex-comunistas que, em 1987, viram no MDP/CDE renovado uma oportunidade de viver o que não tinham encontrado no PCP.

Leia-se, como exemplo dessa atitude em relação ao PS: “O PS, por seu lado, é visto pragmaticamente por muitas pessoas independentes de Esquerda como a alternativa eleitoral conjuntural mais viável. Mas continua a sofrer de vícios internos de funcionamento e de uma imagem de cedências no passado que não permitem a adesão fácil de muitos sectores de Esquerda actualmente não organizados, não obstante apreciáveis alterações introduzidas pela sua Direcção dos últimos anos.”

Por um lado, a Declaração não punha sequer em causa a caracterização do PS como partido de esquerda. Estava ainda presente uma geração de socialistas com passado antifascista (o que, em boa verdade, não significava obrigatoriamente esquerda) e havia a ilusão de ver concretizada a aliança com um PS “verdadeiro partido de esquerda”, apoiado por muitos militantes que beneficiavam dessa visão de fora, distinguindo-os de dirigentes “com cedências”. Por outro lado, esses foram, conjunturalmente, anos de expectativa na mudança, como escrevemos – “Direcção dos últimos anos”. Como se lembrarão, estava então bem viva a experiência promissora da candidatura comum à câmara de Lisboa, encabeçada por Jorge Sampaio, então secretário-geral do PS.

Em segundo lugar, ainda não era então tão manifesta a deriva do PS, e ainda mais de outros partidos da Internacional Socialista, para posições de social-liberalismo, quando não de uma terceira via blairiana que assimilava o essencial da ideologia neoliberal, apenas expurgada das formulações mais escandalosamente lesivas do emblemático papel do estado social.

Mais ainda, a já aparente ofensiva neoliberal com aprisionamento dos partidos socialistas/sociais-democratas não tinha ainda a gravidade de hoje, em que se imbricou com a crise económica e financeira para impor uma doutrina única de austeridade.

Por tudo isto, em minha opinião – como tantas vezes tenho manifestado neste blogue – algum idealismo “convergencionista” hoje reinante à esquerda precisa de ser ponderado. Como agora estou a autocriticar-me por posições de há 22 anos, creio que não falo com ligeireza e só agora pensando nisto.

2. O salto dialéctico
"A rigidez ideológica de quase um século era tranquilizadora, na medida em que gerava um sistema de tensão estável com fácil identificação e arrumação esquemática de ideias e propostas políticas. Todas as questões se colocavam em função de antinomias estabelecidas: a dicotomia capital-trabalho a nível nacional, a dicotomia leste-oeste a nível mundial. A guerra fria, com o seu espectro de cataclismo nuclear, consolidava todas as visões bipolares e desculpabilizava as atitudes redutoras. Esta construção ruíu definitivamente. Estamos agora num momento de reexame de todas as ideias, numa época de análise que precede forçosamente uma futura época de novas sínteses. Nestas condições, a seriedade de qualquer proposta política só se pode medir pela flexibilidade com que procurar ajustar-se a este quadro de mudança e reavaliação, não por certezas falsamente tranquilizantes que são hoje um logro histórico e conduzem a becos teóricos sem saída."
No essencial, continuo a concordar com esta apreciação. Creio que aumentou mesmo o grau de complexidade da vida política e económica; que não pode haver lugar para visões reducionistas ou mecanicistas e que a dialéctica da história actual não se compadece inteiramente com as antigas antinomias. 
Mas escrevo “não (…) inteiramente”. Por um lado, o colapso do mundo do “socialismo real” não conduziu a nenhum fim da história e criou novas contradições, as menores das quais não serão a inesperada entrada no sistema mundial capitalista da Rússia e da China, com potencial económico e demográfico a afectar todo o quadro da economia mundial. Também, com esses países, o peso dos outros emergentes. Tudo isto num quadro de globalização e hegemonismo unipolar, a acentuar a importância do conflito Norte-Sul, a que talvez não tenhamos dado o devido relevo da Declaração.

Agora o que mais essencialmente me parece errado, a posteriori, é a afirmação de que a dicotomia capital-trabalho poderia estar a colocar-se de forma nova. É verdade que se estava a viver um mito de “capitalismo popular” e um certo emburguesamento de concepções e valores de camadas populares em ascensão sócio-económica. Nos dez anos que se seguiram, aumentou a parte do trabalho no rendimento nacional e criaram-se novos hábitos de consumo e padrões de ostentação. 

Esta osmose social foi ilusória, porque, de facto, como então já tínhamos falado de “sociedades de dois terços”, a última década, principalmente depois da crise, ficou marcada por novo fosso entre as “cem famílias” e os trabalhadores, com queda de alguma classe média para níveis de carência económica de que aparentemente já tinham saído. Por outro lado, com a atracção servil em relação ao grande capital de camadas importantes de quadros, mesmo jovens, e de agentes da hegemonia cultural e ideológica. A contradição capital-trabalho não se atenuou. A crise actual mostra bem como ela se agravou. No caso europeu, basta ver o que significa a “desvalorização interna”, a favor da manutenção ou reforço dos rendimentos do capital, confundidos com o interesse nacional.

3. Crise do capitalismo?
“O capitalismo está longe de uma qualquer crise final, e tem-se mostrado ainda capaz de dar suporte a adaptações técnicas, sociais e económicas. O actual sistema de sociedade industrial tem conseguido ajustar-se a novas condições de ordem técnica e económica, de que avultam o custo da energia e as possibilidades de fontes alternativas, os efeitos da electrónica, da informática, da automação, da produção científica. A mundialização do mercado e das interdependências económicas, bem como a facilidade das comunicações, são também, obviamente, factores determinantes na evolução do capitalismo moderno. Da mesma forma, observam-se já alterações na organização e funcionamento empresarial que conduzirão provavelmente a alterações significativas do sistema económico: a normalização está a dar lugar á diversidade, a especialização laboral à polivalência integradora, a concentração à descentralização empresarial e à relativa autonomização das unidades sectoriais, o gigantismo convive mais racionalmente com a valorização das pequenas e médias empresas modernas e competitivas.”
Parece-me haver alguma tecno-utopia nesta análise. Era a época das perspectivas futuristas de revolução tecnológica do trabalho, à moda de Toffler e da sua Terceira Vaga (não a de Blair/Giddens). A organização e lógica de funcionamento das empresas influenciadas pelas novas tecnologias mantiveram-se excepcionais e, num país de desenvolvimento de nível não superior, se assim podemos dizer de Portugal, só é assinalável em pequeno número de empresas, quase nunca de pequena e média dimensão. 

Para a grande maioria dos trabalhadores o trabalho manteve-se penoso e desinteressante, agravado pelo seu carácter precário. E que “admirável mundo novo” do trabalho é esse em que boa proporção dos jovens saídos da universidade só consegue trabalhar como caixa de supermercado ou coisa semelhante?

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