quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Recordando o MDP/CDE (2)

Como prometido, começo a publicação de alguns documentos do MDP/CDE. Não vou seguir a ordem cronológica, preferindo começar por esta declaração de princípios de 1992, que consagra de forma muito sólida as elaborações ideológicas e políticas do MDP/CDE desde a reafirmação da sua identidade própria, em 1987, e documentos e estudos que irei publicando, nomeadamente as posições aprovadas no VI Congresso, em 1990. A declaração é também um retrato que considero muito original para a época das grandes mudanças sociais, culturais e dos sistemas de trabalho que estavam a desafiar uma esquerda a deixar-se cristalizar.

Julgo que o essencial do que se segue permanece actual. Talvez houvesse era que considerar hoje com mais cuidado algumas questões que então não se punham tão agudamente, como a hegemonia do neoliberalismo e das políticas de austeridade (embora em pleno reagan-thatcherismo), a financeirização da economia, a mediocridade carreirista da nossa nova “classe política”, a deriva direitista acentuada da social-democracia (embora já se desenhasse a terceira via blairista). Por outro lado, assumia grande importância a recente implosão do sistema soviético, a reflectir-se na área comunista portuguesa. Ambos os factores contribuíram para marcar muito esta moção, no que se refere à análise da situação política e perspectivas de actuação. Sendo mais rigoroso, algumas referências ambíguas a socialismo democrático e alguma demasiada condescendência para com o "centro-esquerda" ou o socialismo personificado pela PS não teriam hoje a minha total concordância.

Declaração de Princípios do VII Congresso do MDP/CDE

PARA A RENOVAÇÃO DA ESQUERDA

O MDP/CDE tem sido portador de um projecto político e de um ideário que não só não foram postos em causa pelas convulsões políticas e ideológicas dos últimos anos como até anteciparam muitas das ideias e valores que a Esquerda está hoje a reelaborar.

O projecto de sociedade que o MDP/CDE defende assenta, na sua essência, em princípios básicos hoje com crescente aceitação:
  • O respeito pela democracia e pela liberdade como valores absolutos.
  • A valorização dos interesses e aspirações individuais.
  • A defesa abrangente dos Direitos do Homem, com defesa efectiva do “direito à diferença”, dos direitos das mulheres, das minorias étnicas, religiosas, filosóficas e sexuais.
  • A valorização da cidadania plena e da democracia participada, que não se esgotam nos mecanismos da democracia formal e representativa.
  • A valorização do conteúdo ético e cultural da vida social e política.
  • A solidariedade social, a distribuição socialmente justa da riqueza nacional, a igualdade de oportunidades, a independência do poder político em relação ao poder económico.
  • O respeito pela propriedade e o estímulo da iniciativa, no quadro de um planeamento democrático das estratégias económicas e sociais, deixando ao mercado a regulação da oferta e dos preços em tudo o que transcenda esses limites estratégicos.
  • A defesa dos trabalhadores, num quadro alargado de solidariedade e cooperação de forças sociais, correspondente à actual diversidade e complexidade do mundo laboral.

A força destes princípios e do ideário do MDP/CDE não se traduz, porém, na força do MDP/CDE como partido. Por razões tanto próprias como alheias, o MDP/CDE foi-se reduzindo em capacidade de intervenção e em significado eleitoral, a um ponto que já prejudica a imagem e impacto do próprio projecto político. Como um partido é sempre um meio e não um fim político em si, o prosseguimento e aprofundamento, em outros moldes, da luta pelo ideário que o MDP/CDE partilha com muitas pessoas de progresso e de Esquerda exigem hoje novas formas de intervenção e de organização, mais eficazes e mais adequadas à realidade do MDP/CDE e da vida política portuguesa.

A reconversão do partido, que pode ir até à sua substituição “de facto” por uma nova forma de organização, não é sinal de derrota ou desânimo. É uma atitude de coragem política de quem preza mais os princípios e os valores por que luta que o espírito e fidelidade partidários.

Um novo quadro de pensamento e acção da esquerda

Designamos o nosso conjunto de princípios e objectivos políticos como democracia socialista, embora conscientes de que a designação socialista se presta hoje a equívocos. Não podemos hoje entender o socialismo como um sistema socio-económico predefinido e decorrente logicamente de um sistema ideológico bem delimitado. Não está no horizonte visível a precisão dos mecanismos de um novo sistema económico. É inegável, por exemplo, que, desacreditado o modelo baseado na propriedade estatal, no planeamento central e na fixação administrativa de preços e objectivos de produção, não se vê ainda alternativa para o lucro como motor da economia, nem alternativa para o mercado como mecanismo regulador da produção e dos preços e como factor da satisfação das necessidades de consumo.

Os objectivos históricos socialistas são referenciais para a luta continuada por profundas transformações sociais libertadoras, luta que mescla e ultrapassa as compartimentações ideológicas tradicionais ou as formulações de sistemas. Na nossa época, converge para esta luta um largo leque de forças e movimentações sociais que não se reconhecem obrigatoriamente nos quadros de referência tradicionais. Entendemos este largo e difuso movimento como a Esquerda de hoje, envolvendo sectores tão diversos (mas também hoje tão próximos) como socialistas de várias tendências, ecologistas, progressistas de inspiração cristã.

As principais formulações ideológicas que chegaram até nós são a herança de um período social e histórico já ultrapassado pelas aceleradas mutações sociais que o mundo sofreu no último meio século. As coordenadas de referência do pensamento social e político sofreram deslocações que ainda não estão sistematizadas. Por isso, muitas pessoas sentem a contradição entre o carácter pontual das suas reacções espontâneas a uma rápida dinâmica social e o desejo natural de referenciais estáveis, ainda não adquiridos. Sentindo o desajustamento dos quadros teóricos tradicionais, as pessoas mobilizam-se crescentemente em torno de novos problemas abrangentes, como a defesa dos direitos humanos, da paz, do ambiente e da natureza, do património cultural, de interesses comunitários, problemas estes que, por serem transversais às categorias históricas e sociais tradicionais, permitem compensar, no dia a dia, a insatisfação perante a política tradicional.

A rigidez ideológica de quase um século era tranquilizadora, na medida em que gerava um sistema de tensão estável com fácil identificação e arrumação esquemática de ideias e propostas políticas. Todas as questões se colocavam em função de antinomias estabelecidas: a dicotomia capital-trabalho a nível nacional, a dicotomia leste-oeste a nível mundial. A guerra fria, com o seu espectro de cataclismo nuclear, consolidava todas as visões bipolares e desculpabilizava as atitudes redutoras. Esta construção ruíu definitivamente. Estamos agora num momento de reexame de todas as ideias, numa época de análise que precede forçosamente uma futura época de novas sínteses. Nestas condições, a seriedade de qualquer proposta política só se pode medir pela flexibilidade com que procurar ajustar-se a este quadro de mudança e reavaliação, não por certezas falsamente tranquilizantes que são hoje um logro histórico e conduzem a becos teóricos sem saída.

Por estas razões, um novo projecto de Esquerda não pode ultrapassar os limites precisos das contradições visíveis entre o sistema vigente e os princípios básicos por que combatemos. Por isso também, os princípios não podem ser formulados como um ideal utópico longínquo, mas sim como objectivos realizáveis, mediante lutas viáveis em tempos concretos. É na luta pela realização desses objectivos que se irá desenhando progressivamente o esboço da sociedade do futuro, esboço esse a corrigir constantemente pela imprevisível mutação social.

O capitalismo está longe de uma qualquer crise final, e tem-se mostrado ainda capaz de dar suporte a adaptações técnicas, sociais e económicas. O actual sistema de sociedade industrial tem conseguido ajustar-se a novas condições de ordem técnica e económica, de que avultam o custo da energia e as possibilidades de fontes alternativas, os efeitos da electrónica, da informática, da automação, da produção científica. A mundialização do mercado e das interdependências económicas, bem como a facilidade das comunicações, são também, obviamente, factores determinantes na evolução do capitalismo moderno. Da mesma forma, observam-se já alterações na organização e funcionamento empresarial que conduzirão provavelmente a alterações significativas do sistema económico: a normalização está a dar lugar á diversidade, a especialização laboral à polivalência integradora, a concentração à descentralização empresarial e à relativa autonomização das unidades sectoriais, o gigantismo convive mais racionalmente com a valorização das pequenas e médias empresas modernas e competitivas.

O sistema económico dominante tem, portanto, demonstrado uma apreciável capacidade de adaptação e, nos países mais desenvolvidos, pode continuar a garantir uma certa estabilidade política. Fa-lo-á, por um lado, pela tendência para as “sociedades de dois terços”, em que a maioria recolhe benefícios consideráveis do sistema à custa do estrato inferior (em que se incluem os imigrantes) conduzido para o indiferentismo e a abstenção. Fa-lo-á, por outro lado, aumentando a exploração do Terceiro Mundo, viciando a sua produção no sentido da monocultura e da exploração intensiva dos seus recursos naturais, para fazer funcionar por retorno a economia dos países desenvolvidos, e assim descaracterizando cultural e socialmente os povos do Terceiro Mundo. Apesar de toda a evolução registada no sistema vigente, o seu sucesso continua a ser baseado na exclusão de camadas e grupos das populações, embora já não obrigatoriamente em termos do conflito de classes e de exploração proletária característicos do capitalismo inicial.

Neste sentido, a luta política de Esquerda continua a ser, no fundamental, a luta contra a discriminação das camadas sociais marginalizadas e excluídas, a luta contra a distribuição desigual da riqueza, a luta contra a exploração e atraso forçado da maioria dos povos, a luta contra o obscurantismo e a alienação, a luta contra a competição selvagem.

Mas mesmo nos extractos sociais que hoje beneficiam da riqueza das sociedades industriais desenvolvidas emerge um novo tipo de problemas sociais que ainda não tiveram reflexo claro no pensamento de Esquerda e para os quais mesmo as formas mais avançadas da social-democracia não encontram solução.

As profundas mutações sofridas pelas sociedades industriais desenvolvidas, com importantes reflexos nas sociedades intermédias e sub-desenvolvidas, acumularam novos factores de crise. Criou-se riqueza, possibilitou-se um alto padrão de consumo, subiu o nível médio de educação e mundializou-se a comunicação e a informação. Mas diluiu-se a cidadania, enfraqueceu a privacidade, intensificaram-se em abstracto as interdependências sociais com perda das relações gregárias tradicionais (inclusivamente dos laços familiares).

A vida individual é mais autista, decorrendo entre o trabalho muitas vezes desinteressante e pouco criativo, a habitação em ambiente residencial descaracterizado e os lazeres massificados. A menor disponibilidade de tempo e atenção psicológica para a família isolam e vulnerabilizam os jovens. Os ritmos de vida acelerados e a competitividade agressiva geram crescente “stress” individual e social, com reflexos na expansão da criminalidade e na evasão alienante por via das drogas, do alcoolismo ou da adesão a múltiplos irracionalismos e seitas. O egoísmo, a competição e a insegurança conduzem, com outros factores, ao preocupante crescimento do racismo e da xenofobia.

A satisfação crescente das necessidades materiais não é acompanhada por um sentimento paralelo de felicidade humana e de alegria de vida, e essa “tristeza” de uma sociedade sem fraternidade e sem idealismo reflecte-se politicamente naquilo a que já se chamou de “melancolia da democracia”.

Portugal é um país com uma situação intermédia ou mista nesta tendência de evolução das sociedades. Vastas zonas do País e consideráveis camadas da população mesmo das zonas mais desenvolvidas vivem em atraso económico e cultural tal que os novos problemas sociais ainda não exigem uma revisão radical das linhas tradicionais de acção da Esquerda.

Mas ao mesmo tempo, e de forma mais evidente no eixo litoral, enxertou-se sobre este atraso uma formação social fortemente terciarizada, com acentuadas alterações de composição social, valores e aspirações, às quais é necessário que a Esquerda tente dar uma resposta actualizada.

O repetido sucesso eleitoral do actual Governo é em boa parte devido a uma política que tem procurado ir ao encontro destas alterações na sociedade portuguesa. A rápida transição de filhos de trabalhadores dos sectores tradicionais para novas actividades, principalmente de serviços, com melhores perspectivas, bem como as tensões e insatisfações causadas pela convivência, em meios urbanos apertados, das “duas sociedades”, geram permeabilidade ao “populismo do sucesso” em que assenta a actual política de direita. O eleitorado sensível às propostas mais tradicionais da Esquerda e a uma perspectiva clássica da defesa dos trabalhadores tem sofrido recentemente deslocações significativas que em grande parte ultrapassam a alternativa de Esquerda que o PS quer representar. Parte deste eleitorado mantém-se fiel às propostas comunistas mas outra parte tem ido engrossar directamente um eleitorado de direita que já não pode ser visto como um conjunto social coerente e homogéneo.

Ao contrário da tendência tradicional para interpretar redutoramente as motivações de voto em termos de interesses económicos e sociais, é necessário ter em conta factores psico-sociológicos complexos e dificilmente racionalizáveis. A osmose social e a convivência mediática com padrões de maior riqueza criaram aspirações e mitos que constituem fortes motivações para uma simpatia primária por um discurso de sucesso e crescimento económico. Por outro lado, a insegurança de vida e a complexidade e mobilidade da situação social arrastam as pessoas para o desejo de estabilidade e para a satisfação pessoal de se sentirem ligadas aos vencedores ou a figuras tutelares. Estes fenómenos verificam-se especialmente em situações de alguma estabilidade económica, em que os valores estabelecidos estão equilibrados. Este quadro pode alterar-se significativamente numa situação previsível, a curto prazo, de dificuldades económicas, como as que resultarão do impacto do Mercado Interno e da política de austeridade exigida pela convergência económica inerente à União Económica e Monetária.

O aparecimento de uma mentalidade nova-rica, culturalmente medíocre, egoísta e agressiva, e desligada do sentido da solidariedade é factor de suporte, no plano político, da arrogância e falta de diálogo democrático, do comportamento de partido único, da menorização da cidadania efectiva.

A resposta a dar a esta situação não pode ficar-se pela luta economicista tradicional. Tem que combater o esquema de valores que se está a instilar, com perversão da consciência social.

Nos países que mais agudamente sofrem os novos problemas do pseudo-desenvolvimento, e mesmo entre nós, começa a emergir, em franjas mais conscientes, o embrião de uma nova atitude de insatisfação e protesto. Deseja-se maior flexibilidade e variabilidade na vida individual, nos gostos e prazeres. Valoriza-se o contacto com a natureza, o ambiente saudável, as actividades criativas, o artesanato e a cultura tradicional não massificada. Deseja-se o efectivo controlo e participação nas tomadas de decisão, desde o campo profissional ao comunitário, ao da política de Estado. Aspira-se a maior “sentido da vida”, com reintegração harmónica das suas parcelas atomizadas (o estudo, o trabalho, a família, o lazer, a actividade cívica e política). Vislumbra-se um novo valor do “eu”, em harmonia com a sociedade, uma nova síntese da contradição entre o individual e o colectivo. No conjunto, estas atitudes visionam uma sociedade já não unidimensional mas desdobrada em múltiplas dimensões individuais.

No centro desta nova atitude social — e também no centro da luta contra o sistema — está a revisão da noção de progresso e de desenvolvimento. A concepção economicista do desenvolvimento, centrada no crescimento económico, na industrialização e na urbanização intensiva, é cada vez mais contestada e objectivamente posta em causa pela limitação dos recursos naturais e pelos danos ao ambiente.

O verdadeiro desenvolvimento é um desenvolvimento socio-económico e cultural integrado, visando um bem-estar individual e social avaliado tanto em termos de riqueza material como de qualidade de vida. É um desenvolvimento que não acentue, antes diminua, as clivagens sociais, que aproxime a cidade e o campo, que valorize os recursos endógenos.

A afirmação de um novo modelo de desenvolvimento é coincidente com a luta pela valorização do espírito comunitário, pela solidariedade, pela intervenção cívica efectiva, pela cidadania plena. É em torno destes objectivos e de uma visão humanista renovada da vida social e do desenvolvimento que cada vez mais convergem sectores diferenciados de Esquerda com pontos de partida diferentes.

A formulação de um novo projecto de Esquerda não pode também esquecer a teia crescente de interdependências, em particular as que decorrem da construção europeia. A viabilidade de novos projectos é decisivamente condicionada em cada país, e particularmente nos países economicamente mais frágeis, pela dinâmica global do progresso social europeu. Contra a via que, até agora, tem baseado a unidade europeia fundamentalmente nos interesses económicos e mercantis, reunem-se forças nos diversos países para uma alternativa que privilegie a dimensão social, cultural, ecológica e de cidadania europeia. A luta por uma sociedade mais democrática e progressista em Portugal é indissociável da participação da Esquerda portuguesa nesse esforço conjunto de renovação do projecto de união europeia.

Parte considerável das preocupações e acções políticas dirigem-se agora também para as grandes questões planetárias transversais aos sistemas económico-sociais, como a segurança, a paz e o desarmamento, a defesa da natureza, a gestão perdulária de recursos naturais esgotáveis, a desertificação e fome em largas faixas do globo, a droga e outros flagelos sociais, os problemas éticos postos pelos avanços técnicos. A importância acrescida que é dada a estes problemas vem chocar-se com a incapacidade de resposta dos partidos tradicionais a este novo quadro de pensamento e acção e reforçam o sentimento de falta de representação partidária por parte de grandes sectores das populações.

Caminhos para a renovação da esquerda

Perante este novo quadro de interrogações e perplexidades, mas também de novas e fecundas motivações, sente-se a necessidade de inovadoras formas orgânicas e funcionais de reforço da Esquerda. Conjugadas estas razões subjectivas com os evidentes factores objectivos de mudança social, pode mesmo dizer-se que a reformulação da Esquerda é uma “necessidade histórica”.

A reconversão do MDP/CDE tem sentido positivo se vier ao encontro dessa movimentação.

A renovação da Esquerda comporta, idealmente, a revisão da concepção, funcionamento e propostas políticas dos actuais partidos da Esquerda mas não pode ficar exclusivamente dependente dessa evolução. Passará provavelmente pela construção de uma nova organização de Esquerda, na qual convirjam as aspirações de renovação da Esquerda, e que será ela própria também factor de estímulo e desafio à reorientação dos actuais partidos.

A situação da Esquerda está relativamente bloqueada pela compreensível irredutibilidade de princípios entre os dois principais partidos. Este bloqueio enfraquece a capacidade mobilizadora da Esquerda, no seu conjunto, em contraste com a convergência da Direita.

O PCP defende um projecto de sociedade e tem um comportamento sistemático que são rejeitados pela maioria dos homens de Esquerda. Apesar disto, o PCP cristaliza um eleitorado considerável que não vê ainda alternativa para a defesa dos seus interesses imediatos ou que está fixado por um saudosismo romântico. É também um eleitorado que corre o risco desmobilizador de cada vez mais votar pela negativa, com um voto que é mais um voto de oposição do que um voto por uma alternativa de governo.

O PS, por seu lado, é visto pragmaticamente por muitas pessoas independentes de Esquerda como a alternativa eleitoral conjuntural mais viável. Mas continua a sofrer de vícios internos de funcionamento e de uma imagem de cedências no passado que não permitem a adesão fácil de muitos sectores de Esquerda actualmente não organizados, não obstante apreciáveis alterações introduzidas pela sua Direcção dos últimos anos.

A abstenção crescente à Esquerda é em grande parte sinal deste bloqueio. Só por si, ela já justifica a necessidade de uma nova opção de Esquerda.

Só é fácil a uniformidade na conservação dos interesses estabelecidos. Ela não é desejável nem possível nas propostas de futuro, na visão de Esquerda. A Esquerda enriquece-se com a diversidade. A verdadeira estabilidade política é uma estabilidade dinâmica, feita de consensos e aproximações entre perspectivas plurais, entre múltiplas opiniões organizadas.

O MDP/CDE não quer nem pode condicionar o perfil e conteúdo político de uma eventual nova organização de Esquerda, que resultarão da vontade de todos os interessados, em pé de igualdade. Consideramos, todavia, que é oportuno e útil avançar desde já algumas ideias para esse debate.

Em princípio, somos mais favoráveis, numa fase inicial, à constituição de um movimento político que de um partido. Em primeiro lugar, porque o impacto de um novo partido na opinião pública exige um mínimo de resultados da reflexão ainda por fazer e de propostas políticas coerentes, que melhor se irão desenvolvendo no âmbito de um movimento mais flexível e mais experimental e no decorrer da sua intervenção política e social.

Em segundo lugar, porque pensamos que o enriquecimento e desbloqueamento do actual quadro partidário e da cultura política portuguesa exige a criação de um partido com características do que tem sido designado como “partidos alternativos”, o que, segundo a experiência já adquirida, melhor se processa pela consagração partidária, em tempo próprio, de uma experiência movimentista. Os novos “partidos alternativos” que têm aparecido na Europa e noutros continentes têm correspondido a preocupações com grande eco na sociedade e, pela sua permeabilidade a novas experiências e aspirações sociais, têm permitido a emergência de ideias e perspectivas inovadoras. Embora tenham aparecido inicialmente como orientados para problemas sectoriais, têm vindo progressivamente a integrar essas preocupações parcelares num projecto, ainda em elaboração, de modificação radical do sistema social. Agarrando, para o questionar, um aspecto particular da realidade social (e podendo fazê-lo, embora, de forma redutora), acabam por questionar a sociedade no seu conjunto.

A noção de partido alternativo é todavia ainda ambígua e imprecisa. Há no entanto um conjunto de caracterizações parcelares da “alternatividade”, hoje marcantes para a reflexão sobre a construção de um partido moderno: a) ênfase na democracia participada, na vida comunitária, na discussão e tratamento dos problemas locais; b) empenho nos movimentos sociais; c) privilégio a um largo e difuso campo de acções de resposta a “novos problemas”, tais como a defesa de minorias, do ambiente, a luta anti-militarista, ou algumas formas de lutas feministas; d) maior flexibilidade na abordagem dos problemas políticos, mais liberta de rigidez e preconceitos ideológicos; e) um discurso centrado no quotidiano e na sociedade civil e menos na gestão do Estado; f) características organizativas de flexibilidade, com recusa de demasiada hierarquização e com negação da forma como os partidos tradicionais reproduzem no seu interior os vícios do aparelho do poder.

Ao defendermos, numa fase inicial, um movimento e não um partido, não estamos a pensar numa simples associação tradicional, mero forum de reflexão. Pensamos num movimento que, para além disto, seja principalmente um instrumento de eficaz intervenção cívica e política quotidiana.

Proporemos aos demais interessados que o movimento privilegie os campos de intervenção em que as novas realidades sociais mais desafiam a renovação da Esquerda. Por um lado, abordando com especial atenção as grandes questões estratégicas, nomeadamente as respeitantes à integração europeia e seus impactos, ou ao modelo de desenvolvimento. Por outro lado, dando ênfase à descentralização da acção política, em domínios como, por exemplo, os problemas locais (de associativismo comunitário, de desenvolvimento auto-sustentado, de defesa do ambiente e do património cultural), a intervenção social, sindical e educacional, a promoção da participação política das populações.

1992.01.12

Proponentes: João Vasconcelos Costa e José Manuel Tengarrinha
Aprovada por unanimidade e aclamação

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