Faltam-me credenciais para falar do caso Reinhart-Rogoff do ponto de vista económico mas não do ponto de vista científico ou político. A história está bem descrita num artigo simples mas elucidativo publicado anteontem por Mike Koncsal no blogue do Instituto Roosevelt, “Next New Deal” e noutro artigo de Chris Cook no Finantial Times de ontem.
Muito resumidamente, R-R são autores de um trabalho, “Growth in a Time of Debt” muito utilizado como texto cientificamente fundamentador de políticas austeritárias. A conclusão é de que a dívida pública igual ou superior a 90% leva à queda do crescimento económico. Daí o objetivo político primordial de redução da dívida. Agora, outros três economistas americanos, professores da Univ. Massachusetts, T. Herndon, M. Ash e R. Pollin, dissecam o trabalho, recorrendo aos dados originais não publicados e mostram erros clamorosos de análise e de provas estatísticas.
R-R reponderam mas não posso discutir tecnicamente em que termos. Destaco apenas uma das suas afirmações essenciais: “we were only arguing association, not causality” (“estávamos só a discutir associação, não causalidade”). De facto, mesmo que a análise dos dados tivesse sido correta, mostrando correlação positiva, nunca se podia dizer que A era causa de B ou se B era causa de A.
Por coincidência, ainda hoje conversava com os meus alunos sobre a situação epistemológica das chamadas ciências sociais (CS). Para alguém, como eu, educado nas ciências experimentais, as ciências sociais cumprem os requisitos para serem ciências? O recurso a métodos matemáticos, com relevo para a estatística, é suficiente? Idem quanto ao rigor mental de análise? E são sujeitáveis a falsificação (no sentido de Popper)? Tudo isto extravasa esta nota mas tenho de focar dois aspetos.
Uma característica patente de muitas ou todas as CS é a constituição de escolas, com correspondente teoria, muitas vezes com fraca base de evidência empírica, quando não é a teoria que vem primeiro e a procura de dados é “confirmativa”. Está-se frequentemente perante ideologias e não ciências. É fácil ouvirmos as pessoas ficarem perplexas quando são bombardeadas com debates, comentários televisivos, etc., em que economistas apresentados com credenciais do mesmo nível se digladiam com opiniões contrárias, invocando teorias ou modelos “científicos” opostos. As pessoas sabem que têm alta probabilidade de dois médicos lhes diagnosticarem e tratarem da mesma forma a sua doença e não percebem porque é que os “médicos da doença económica” não acertam.
No entanto, não se estabelece com clareza a distinção e o trabalho académico acaba por ser instrumentalizado pela política, a priori ou a posteriori. Esta e os seus agentes precisam de uma legitimação que, estando todos nós reféns da pós-democracia, já não lhes é dada só politicamente, por via democrática, mas antes facultada pela aparência ou renome bem ou mal feito de qualidade académica, científica ou técnica, de Gaspares e outros, afinal tecnocratas sem cultura democrática.
A reduzida certeza (certeza, claro, no sentido relativo em que deve ser tida a “certeza” científica a cada momento) das CS e a sua apropriação pelos poderes, político e outros, está também relacionada com a frequente falta de deontologia e de responsabilidade social de alguns domínios das CS muito próximos do poder, das suas benesses. Mesmo à nossa pequena escala, os casos são mais do que muitos e todos conhecemos a corte dos economistas e analistas de serviço, de braço dado também com a comunicação social.
Um bom exemplo, cínico, da cumplicidade entre “cientistas” e políticos, mesmo que encoberta, é a frase de R-R que reproduzi acima. Talvez seja verdade que não estavam de serviço. Mas alguém pode acreditar que eles desconheciam que são largamente usados pelos governos e troikas deste mundo ultraliberal como fundamentos da política austeritária? Alguma vez chamaram a atenção para o erro (para fim político) de falar em causalidade em vez de associação?
Um bom exemplo, cínico, da cumplicidade entre “cientistas” e políticos, mesmo que encoberta, é a frase de R-R que reproduzi acima. Talvez seja verdade que não estavam de serviço. Mas alguém pode acreditar que eles desconheciam que são largamente usados pelos governos e troikas deste mundo ultraliberal como fundamentos da política austeritária? Alguma vez chamaram a atenção para o erro (para fim político) de falar em causalidade em vez de associação?
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