A comunicação de hoje de Passos Coelho foi, a meu ver, o maior exemplo a que assisti por parte de governantes, depois do 25 de abril, de falta de valores e de cultura democrática, de desconhecimento primário do que são as regras básicas de um estado de direito, a começar pela separação dos poderes. Montesquieu deu uma volta no túmulo.
Fazer do Tribunal Constitucional (TC) bode expiatório dos erros do governo, incluindo a natureza provocatória das medidas propostas, sobre as quais já tinha havido antes um aviso do Tribunal, é muita coisa, demasiada coisa. A forma insistente como Passos Coelho atacou o TC não me parece que tenha paralelo em violência e desonestidade (exceto, talvez, o discurso assassino de Cavaco contra o governo Sócrates na sua segunda tomada de posse). Passar aos eleitores a mensagem de que tudo o que de mau se vier a passar por causa da decisão do TC é partir do princípio de que o TC podia ter decidido de forma diferente, politicamente. Isto é, é dizer que o TC não é apenas, e não foi apenas neste caso, um órgão judicial, é dizer que tem uma agenda política.
A atitude de Passos Coelho também é cobarde, na medida em que sabe muito bem que nunca um tribunal pode discutir em público as suas decisões e, portanto, as acusações de Passos Coelho não podem ser adequadamente rebatidas.
Inaudita é também a tese de que as responsabilidades assumidas no plano internacional pelo Estado português (e que responsabilidades? De um tratado? De um contrato? De um simples memorando de entendimento?) vinculam todos os órgãos de soberania, em conjunto e solidariamente. Novamente, Montesquieu. Se não fosse assunto tão sério, o disparate de Passos Coelho dava para uma boa gargalhada.
Não fica por aqui a ameaça latente à nossa democracia e a manifestação de uma cultura política sem grandeza, sem ideais, sem valores, antes uma incultura ao serviço de carreirismo partidário, de falta de princípios, de promiscuidade entre a política, os negócios e a manipulação da comunicação.
Falo da tese que ganha força entre essa gente (e no mundo dos fazedores de opinião que são os seus cortesãos) de que em época de crise, há que “flexibilizar” os preceitos constitucionais. E vai-se mais longe em cinismo: tal é necessário para defender os valores essenciais da própria Constituição, porque “sem dinheiro não há direitos”. Nova versão da célebre máxima do expoente do neoliberalismo, Milton Friedman, “não há almoços grátis”.
Não se pode admitir qualquer limitação à Constituição que nela não esteja expressamente prevista (estado de sítio, de guerra, de emergência). E ninguém pode interpretar a Constituição (como fez hoje Passos Coelho discordando do TC) a não ser quem expressamente a Constituição designa como competente para tal, o TC. A Constituição não é brinquedo nas mãos de uns espertinhos feitos em escolas da grande banca internacional. Além do mais, isso constitui crime. Se fôssemos corajosos e cultos civicamente como os islandeses, Passos, Gaspares, Moedinhas e quejandos lembrar-se-iam, em termos de responsabilidade política, do Sr. Geir Haarde, ex-primeiro ministro.
Entretanto, o Presidente apoia o governo e assobia para o lado sobre a gravidade de todas estas afirmações de Passos Coelho. Não se diga que não tem poderes para o repreender. O Presidente pode sempre manifestar-se publicamente, mesmo que com algum recato e sem entrar no estilo agressivo do governo e pode ainda – e julgo que se justificava – atribuir à sua opinião maior importância pública, com significado de pedagogia política, usando do seu poder de se dirigir à Assembleia da República.
Finalmente, a declaração explícita de que a compensação da perda de receitas decorrente da decisão do TC se vai fazer por redução da despesa, taxativamente, porque mais significativa, na educação, na saúde, na segurança social e nas empresas públicas (esqueçamos estas, já residuais). Novamente o cinismo de Passos Coelho, ao dizer angelicamente que assim se garante a sustentabilidade do estado social, quando exatamente se vai cortar nos três pilares chave do estado social.
É o programa neoliberal, ou ultracapitalista, em todo o seu esplendor ideológico. Não nos enganemos. Estes fanáticos não representam apenas uma escola de economia política. São os apóstolos de toda uma nova religião, de um retrocesso de conquistas civilizacionais. São gente que é insensível a dramas de pessoas de outras classes, ao desemprego, à fome, à exclusão social.
E não nos espantemos que, à Tea Party ou à “neocons”, a seguir venha a destruição de outras conquistas culturais e sociais, como a liberdade de imprensa, o direito de manifestação, a expansão da educação superior ou conquistas modernas, como a legalização do aborto ou o casamento homossexual.
P. S. Como na foto, era bom que Passos Coelho saísse de cena.
P. S. Como na foto, era bom que Passos Coelho saísse de cena.
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