segunda-feira, 25 de julho de 2011

A maioria tem razão? (III)

Quando escrevi que ia concluir esta série de entradas com a discussão das alternativas, estava a pensar muito principalmente em termos de política interna e das escolhas que o eleitorado fez nas últimas eleições. Como tenho dito, essencialmente sim ou não em relação ao acordo com a “troika”. Todavia, não se esqueça que a divisão interna também tem muito a ver com a posição em relação à política europeia. Mas alguém se lembra de ter havido alguma discussão sobre a política europeia e sobre a política portuguesa na arena europeia que tivesse influenciado minimamente a tal “maioria que tem razão”?
Ia só dar algum relevo muito marginal a este tema, mas ele hoje avulta, no contexto de uma vertiginosa, acrobática e surrealista mudança a que se tem assistido ultimamente, culminando na cimeira da última semana. Por isto, ainda antes do encerramento, um imprevisto capítulo - e, desculpem, forçosamente longo - sobre o voto da maioria no contexto europeu.
“A maioria tem sempre razão”, logo os partidos que conquistaram essa maioria têm “obviamente” razão. Insisto: democraticamente, têm razão para aplicarem a política sufragada pela maioria, mas isto não quer dizer que ela seja a política acertada e que o critério de certo ou errado, cientificamente, seja o da maioria de votos. Até, se fosse assim, nem era preciso haver campeonato de futebol. Votava-se no princípio e o clube vencedor da eleição, com mais simpatizantes, era campeão.
Em Junho, nas eleições, os eleitores confrontaram-se com a posição minoritária do “não”, que rejeitaram por larga maioria, e a posição “oficial” de troika interna às ordens da externa: temos de pagar as dívidas como pessoas de bem; somos todos responsáveis e ninguém discute o que é “dívida odiosa”; o que será de nós sem os nossos bancos; vamos pagar juros altos, agiotas, porque nos portámos mal e os contribuintes alemães não têm a culpa; se não cumprirmos, os mercados nervosos e as agências de “rating” caem-nos em cima (mas quando a Moody’s nos caiu em cima, estritamente segundo essas tais regras que a maioria aceita, foi um coro “patriótico” só comparável ao caso de o Mourinho se naturalizar espanhol).
Todo este discurso tinha como base a “certeza” de que a UE tinha definido um conjunto de regras inflexíveis, um dogma, que condicionava a “ajuda” (!) aos periféricos mal comportados. Era uma autêntica filosofia político-económica da UE, religiosamente acatada, mas que já muita gente considerava irrealista e mesmo anunciadamente suicida para o euro: juros castigadores, para servirem de exemplo a esses mal comportados do lixo (oh gente, quem nos acha lixo são mesmo os alemães e amigos!); empréstimos do BCE só com garantia de “colaterais” bem cotados pelas agências de “rating”; impossibilidade de emissão de dívida europeia trans-nacional ou mutualizada (“eurobonds”); proibição de o fundo de resgate (FEEF) comprar dívida dos países em dificuldades; inimaginabilidade de taxas sobre os movimentos de capitais (ou taxa Tobin, quando envolvendo câmbio); poupar absolutamente os bancos credores a riscos, antes os apoiar e recapitalizar; inaceitabilidade de qualquer forma, mesmo que muito atenuada, de incumprimento da dívida; etc.
Alguém votou nas trindades, interna e externa, pensando ou sendo alertado para que estes pressupostos podiam não ser assim tão definitivos e que, portanto, a obrigação "patriótica" de nos vergarmos ao acordo podia ter muita flexibilidade? Que então talvez não houvesse assim tanta abismal diferença entre o “sim” e o “não”? Que a horrorosa reestruturação até podia vir a ser relativamente aceitável pela senhora prussiana? A maioria tem sempre razão, mesmo quando é assim tão descaradamente condicionada e desinformada? E, afinal, foi isto que se viu começar-se a passar, uma mudança considerável do contexto, embora o governo mantenha que nada mudou na obrigação de sermos atentos, veneradores e obrigados.
A crónica das piruetas das últimos dois meses é extensíssima. Vou tentar apenas fazer um resumo.
Já é admitido pelos economistas e políticos mais ortodoxos (até ouvi João Duque em Portugal) que a Grécia está mais afogada em dívida e em impossibilidade de cumprimento ao fim de um ano de ”ajuda” do que antes. Como nos vai acontecer (ah, mas Portugal não é a Grécia! De certeza?). Apesar de a Grécia não estar a ir ao mercado primário, o mercado secundário continua a aumentar aceleradamente os juros. Já está hoje a mais de 40% (!) para as maturidades a 2 anos, nós a 25% (na nossa idade média, um judeu era enforcado por usura com juros a metade disto). É evidente que a Grécia não pode ir ao mercado no fim do resgate e que este tem de ser prolongado. 

A pressão dos mercados é igualmente forte sobre Portugal e a Irlanda. Mais recentemente, sobre a Espanha e principalmente a Itália. Efeito dominó, mesmo que a Espanha diga que não é Portugal, que a França venha a dizer que não é a Espanha e finalmente a Alemanha a dizer que não é a França, e, a rirem-se, os ingleses com a sua libra esterlina! O euro está em risco, a Europa rica modera a sua arrogância porque os seus bancos começam a tremer. Os credores começam a pensar que mais vale conseguirem 50% do que 0%. Os governantes-governados começam a curvar-se.
Dia 29.5 - O governo grego e a oposição não chegam a acordo, o que era a exigência da “troika” para fornecer a fatia seguinte do empréstimo.
31.5 - Pela primeira vez, pela voz de J. C. Juncker, presidente do Eurogrupo, põe-se a hipótese de participação dos credores no resgate das dívidas, especificamente da grega. Mais surpreendentemente, fala na aceitabilidade de uma “reestruturação suave” (?) ao nível menos drástico, o da dilatação dos prazos de maturidade (“reprofiling”). Começam as divergências e o edifício neoliberal europeu a abrir rachas: o BCE declara-se frontalmente contra qualquer coisa que pareça reestruturação e considera um “conto de fadas” a participação dos credores. Consta que vários governos apoiam Juncker - ou ele falou por eles - e começam a preparar essa hipótese, falando-se principalmente do grupo alemão (Alemanha, Holanda, Áustria, Finlândia).
1.6 - O Ecofin discute a participação dos privados, estimando-a em 10-15 mM€ (mil milhões de euros) e fala-se num “espírito” da iniciativa de Viena, de 2009, que apoiou a banca dos países de leste. Volta a discutir-se o reescalonamento das maturidades e a renegociação da renovação de contratos.
2.6 - Trichet e Constâncio admitem que o euro será uma construção frágil sem governo económico europeu e propõem a criação de um ministro europeu das Finanças.
4.6 - Greve geral e grandes manifestações na Grécia.
4.6 - O governo grego vê aprovado um novo plano de maior austeridade e de privatizações. Prevê-se um corte de 6400 mM€, a agravar os já 20% de redução dos salários no último ano e o crescimento galopante do desemprego. Com isto, a “troika” descongela a fatia em falta do empréstimo.
11.6 - O parlamento alemão exige que os títulos gregos a vencer (80-90 mM€ até 2014) tenham de ser trocados por títulos a 7 anos. É a primeira afirmação oficial de reescalonamento, até então um tabu.
13.6 - É transferida para a Grécia a fatia de 12 mM€ sem a qual o país entrava em incumprimento imediato.
13.6 - O comissário Rehn alerta para a fragilidade da banca europeia como possível coparticipante dos resgates.
14.6 - A Standard&Poor’s prevê o incumprimento pela Grécia e baixa a notação para 1 nível só acima da falência.
14.6 - Os governos do grupo alemão e o BCE divergem publicamente em relação ao envolvimento dos credores nos resgates, defendidos pelos governos como forma de satisfazerem o eleitorado, cada vez mais egoísta e xenófobo, mostrando-lhes que não são só os contribuintes a pagarem as “culpas” dos periféricos. O que não dizem é que tanto contribuintes como credores lucraram muito com a dívida dos mal comportados.
18.6 - J. C. Juncker alerta para o forte risco de contágio da Itália e da Bélgica.
11.7 - Paul de Grawe, economista reputado, acusa o BCE de ser o maior fator de instabilidade dos mercados e considera que, se o plano para a Grécia não incluir a emissão de títulos europeus (“eurobonds”), o euro está condenado. Por esses dias, a crise do euro é discutida de forma convergente por grandes financeiros como Soros, economistas como Krugman, Galbraith ou Stiglitz, editorialistas do Finantial Times ou do The Economist. Com Roubini, o “profeta” da crise, todos defendem a “reestruturação ordenada” da dívida grega (e já começam a falar de Portugal).
13.7 - Notícias diversas acerca de pressões de governos europeus sobre o governo grego para que este reestruture a dívida (diriam os nossos eleitores maioritários: que seja caloteiro!).
13.7 - Sobem consideravelmente os juros das dívidas italiana e espanhola e a Europa treme com a ameaça a grandes economias irresgatáveis, não pequenos países periféricos. Portugal vai a 20% de juros na dívida a 3 anos. A Moody’s desce as notações das dívidas de Portugal e da Irlanda para Ba2 e Ba1, “lixo” (claro que um país não é lixo, não tem notação, a sua dívida é que tem).
14.7 - O BCE, representado cada vez mais a ortodoxia financeira europeia, até contra alguns sinais de flexibilização dos governos, considera que a participação dos credores será “uma explosão de crise bancária na Europa”. As agências de "rating" dizem que equipararão isso a incumprimento.
18.7 - Kohl declara que “ela [Merkel] está a destruir a minha Europa”.
20.7 - Obama pressiona Merkel para que esta se esforce para a resolução da crise do euro, que ameaça uma crise mundial. Merkel e Sarkozy reúnem-se em privado, na véspera da cimeira.
20.7 - O BCE atenua subitamente a sua posição rígida, na véspera da cimeira. O seu economista chefe defende que o FEEF possa ir aos mercados comprar dívida grega.
21.7 - Antes da cimeira, os bancos, que nos dias anteriores se tinham reunido - com destaque para os bancos franceses e alemães - fazem saber da sua disponibilidade para suportar perdas ”razoáveis”. Segundo o Spiegel, tal podia chegar a 50% de perda do valor da dívida.
21.7 - O BCE cede mais e anuncia que não continuará a exigir títulos de notação máxima como “colaterais” para empréstimos aos bancos.
21.7 - A cimeira concede à Grécia um novo empréstimo, de 109 mM€, a que se somam 37 mM€ de contribuição da banca, baixa a taxa de juro para 3,5% (a do FMI), maturidade de 15 anos (o dobro da atual) e aceita que o FEEF compre dívida - por agora só grega - no mercado primário e secundário e que financie a recapitalização de bancos. Reorienta os fundos europeus para o crescimento, a competitividade, formação e criação de emprego. Mas, aspeto crítico, continua excluída a emissão de “eurobonds” e nada se avança para o reforço orçamental e o governo económico, a não ser a intenção de voltar a discutir em 2012. A decisão quanto aos credores é um compromisso: o BCE cede na sua rejeição total dessa medida, a Alemanha cede aceitando que seja uma participação voluntária.
21.7 - No fim da cimeira, Sarkozy declara que as medidas (exceto a redução dos juros) só se aplicam à Grécia e que Portugal e a Irlanda garantiram que não reestruturarão as suas dívidas.
Tudo isto mostra uma coisa muito simples. O euro é vital para os países ricos europeus, que tudo farão para o salvar, mesmo tendo de engolir todas as juras e dogmas arrogantemente impostos aos mais fracos, mesmo sabendo que, quanto às tais garantias de Portugal e da Irlanda, logo se verá. Se ficarmos à beira da falência, são os ricos que nos vêm pedir para reestruturar, para sermos “caloteiros”. Nessa altura, os 80% vão mesmo sentir-se postumamente enganados por aqueles em quem votaram agora. Os gregos mostraram agora que vale a pena dizer não, encher a Sintagma e as avenidas de Atenas e sem o governo pôr excesso de zelo no já gravíssimo cumprimento do seu acordo com a "troika". 
E depois disto tudo, o que mudou em Portugal? Governo, imprensa, opinadores, compreensivelmente o homem da rua, a maioria de 80%, continuam a esquecer ou a fingir esquecer que a política de austeridade que nos impõem só é irremediável enquanto quisermos, que o quadro europeu em que nos submetemos à santa trindade está a mudar e tem brechas pelas quais podemos penetrar, principalmente se conseguirmos uma aliança eficaz com os outros periféricos, claro que com a Espanha e mesmo a Itália ou a Bélgica. A “Europa connosco” já começou a ver que o euro que os faz ricos precisa de todos, também de nós importadores e em boa parte por isso devedores. Quando (não é “se”!) chegarmos à situação grega atual, não nos podem deixar cair. 
O que será triste é, nessa altura, provavelmente se ver muita gente a fazer vénias de agradecimento por tanta generosidade.  Descontando algum exagero da comparação com este caso, “… também dos Portugueses / Alguns tredores houve algumas vezes.” (L., canto IV, 33).
NOTA - Todas as informações são de notícias de jornais do dia, mais frequentemente do Público. Podem ser consultadas na edição do dia respetivo, mas vou tentar colocar ligações, o mais brevemente possível.

P. S., 26-7 - E até Fernando Ulrich, CEO do BPI, vem hoje dizer que o esquema da "troika" em relação aos bancos se baseia numa "crença, numa fé", mas que "é caminho para problemas maiores". O navio, o naufrágio e os ratos...

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