sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Mais uma vez, sobre um novo partido

A questão de um novo partido não é de geografia partidária. Não se trata de qual o seu espaço no plano bidimensional dos partidos existentes, com quais se aproxima ou com quais se intersecta. Tem outras dimensões, noutro plano, e mede-se por poder dar mais esquerda à esquerda.

Muito tenho escrito sobre o que penso ser a necessidade de um novo partido de esquerda. Para não repetir citações, deixo só a última, que pode servir para irem às anteriores. Não estou sozinho nesta opinião, muito pelo contrário, mas receio que esta aparente concordância de muita gente encerre um equívoco.

Começo por um estrénuo defensor desta tese, Jorge Bateira, que ainda ontem voltou a ela, na sua coluna do ionline, “O trilema”. Não vou comentar a sua posição porque, tanto quanto a entendo e conforme muitas conversas pessoais, creio que estamos de acordo no que direi adiante. Aproveito só para chamar a atenção para a forma muito articulada como Jorge Bateira, nesse artigo, liga sem o dizer a questão do novo partido à do trilema, popularizado por Dani Rodrik, cujos vértices são a globalização (no nosso caso, a União Europeia e o euro), o estado-nação e a democracia, mas em que cada país só pode escolher dois dos vértices.

Jorge Bateira defende, como eu, “o binómio estado-nação - democracia, deixando cair a Zona Euro e protegendo-nos da globalização. É este o caminho de saída da crise que as esquerdas se têm recusado a assumir. Por isso é que continuamos sem luz ao fundo do túnel.” Creio que é aqui que entra a questão do novo partido, necessário ao sucesso desse binómio. Também a da crítica ao privilégio a outro dos binómios defendido quase religiosamente por euro-utopistas, “o binómio democracia - integração, neste caso deixando cair o estado-nação e transferindo para um nível superior os mecanismos da democracia representativa.”

Ambos os temas me fazem logo lembrar o último artigo de Rui Tavares (RT) no Público, “Por que estamos bloqueados?”. RT já tem  escrito sobre um novo partido, mas com alguma ambiguidade. Na sua grande actividade “manifestista”,  encabeçou um “Manifesto para uma esquerda livre” que advogava uma esquerda (novo partido?) que – palavras de RT – fosse livre, que não fosse nem de esquerda mole nem de esquerda inconsequente (em ambos os casos, uma esquerda não corajosa). Para quem tanto defende a unidade, não deixa de ser uma posição arrogante e até provocadora. É o que chamo a tese geográfica, o partido ao mesmo plano do PS e do PCP, num espaço ainda não demonstrado e promovendo a unidade entre eles.

Agora, volta outra vez à criação de um novo partido, polo de um outro dilema, para nos desbloquearmos e à esquerda (que esquerda, é coisa que RT nunca esclarece): “É hoje evidente que só há duas maneiras de os partidos mudarem: ou com um revolta interna dos seus militantes, que leve a uma profunda reforma democrática dos partidos, ou com criação de novos partidos que funcionem segundo regras diferentes, levando os partidos antigos a acompanhar a evolução para não ficarem para trás.” Parece ser um recuo de RT. Antes era um novo partido de esquerda, livre. Agora, novos partidos já são para mudarem os actuais, em geral, não se sabe quais, se moles, se inconsequentes, se até de direita.

Mas deixo agora RT e passo a outro assunto bem mais importante. Por comentários amigáveis que me chegam a escritos meus noutro sentido, parece-me que a visão “geográfica” de um novo partido tem impacto e merece ser discutida. Em resumo, significa o seguinte. 1. O PS  é um partido de esquerda, embora sempre tentado a condescender com a direita. 2. O PCP é um fóssil vivo que, apesar de se lhe reconhecer firmeza e coerência, nunca será poder. 3. O BE está em decadência. 4. O PCP tem como principal inimigo o PS. 5. Em conclusão, e daí em ter falado em geografia, há um espaço vazio entre PCP e PS, para promover a sua aliança. A meu ver, pouco disto faz sentido.

1. O PS só é partido de esquerda numa visão romântica e ultrapassada da história e da política. Aceito inteiramente que me digam que, na sequência do 25 de Abril, o PS devia ter sido estimulado a integrar uma grande frente antifascista e progressista, mas não obrigatoriamente identificada como esquerda, em vez de, também com a sua cumplicidade de vitimização (caso República, etc), ter sido alvo de muitas atitudes sectárias por parte do PCP, mas principalmente a nível dos fanáticos de última hora, mal enquadrados e mal controlados.

Depois, o socialismo na gaveta é esquerda? E o bloco central? E mais tarde todo o alinhamento com a social-democracia europeia pós-Blair quase tão neoliberal como a antecessora Sra. Thatcher? Podem dizer-me que um governo do PS não estaria a fazer agora as mesmas barbaridades que o actual governo, o que logo o marcaria como de esquerda. Será só um pouco menos de austeridade (e como a conseguir?) que define esquerda? É só questão de um pouco menos ou mais?

2. Que o PCP, apesar de crescer eleitoralmente num período ou noutro, não tem condições de apoio eleitoral e de confiança das pessoas para ser poder, é verdade óbvia. Por sua culpa, antiga e actual; por se manter a memória de comportamentos sectários e arrogantes de seus quadros e militantes; por continuar agarrado a estereótipos; por misturar críticas justas a que deve resposta reflectida e honesta e críticas preconceituosas e malévolas a que compreensivamente não pode responder; por nunca ter feito a autocrítica de atitudes duvidosas; por não ter reflexão teórica sobre os seus fundamentos ideológicos e mesmo sobre os grandes desenvolvimentos do pensamento marxista, continuando preso de uma cartilha marxista-leninista; o PCP ainda é, para muita gente, o partido contraditório, que serve para resistir e lutar mas que não se deseja que governe, porque se tem medo de ele não respeitar a democracia.

Reconheço sem dúvidas a contradição. As posições do PCP são consequentes, a sua capacidade de luta é reconhecida, mas não será governo pela via que respeitamos, a eleitoral. A questão de um novo partido não deve esquecer esta contradição. É errado querer ultrapassá-la pela obsessão do problema táctico, porventura oportunista, da ponte para o PS, para o que, segundo alguns, serviria um novo partido.

3. A decadência do BE pode corresponder só a uma fase transitória, conjuntural, como foi conjuntural o seu sucesso de 2009 que serve de termo de comparação e que se deveu a uma transferência de votos PS de esquerda anti-Sócrates mas que não quiseram ir para o PSD. De qualquer forma, este tipo de partido está com relativo sucesso na Europa em crise (Syriza, por exemplo) e corresponde a uma camada social crescentemente importante, a de intelectuais e trabalhadores qualificados oriundos da classe média. Com isto, diriam os teóricos tradicionais que sofre do radicalismo pequeno-burguês. Muitas vezes também com oportunismo e demagogia, como, por exemplo, na forma como tem usado o caso diplomático entre Portugal e Angola.

4. O PCP parece ter o PS como principal inimigo. Mas alguém duvida de que essa atitude é inteiramente correspondida? Antes de se defender, linearmente, que um novo partido iria ser a chave milagrosa para essa mirífica unidade de esquerda (?) não era bom estudar bem as causas, condicionantes, alianças estratégicas políticas, sociais e económicas, internas e externas, bases negociais possíveis? Seria um bom contributo teórico com impacto prático para um passo em frente.

5. Em conclusão, ao desejar a criação de um novo partido de esquerda, não defendo de forma alguma uma espécie de sua localização geográfica, na horizontal, entre o PCP e o PS, com um programa ajustado a esse posicionamento. Aliás, isto de posicionamento, coisa muito antidialéctica, daria muita discussão, que não cabe agora aqui.

A questão principal é que não faz sentido pensar-se, nesta época de crise e nos anos que se seguem, que será possível aproximar o PS, como “partido de esquerda”, da restante esquerda, consequente. Não estamos em época histórica de conquistas populares passo a passo, negociáveis entre as forças populares em ofensiva. Também não estamos em resistência antifascista (talvez não seja bem assim!). Estamos numa época de opções radicais. Voltando ao artigo de Jorge Bateira, há que escolher binómios do trilema, com toda a clareza. A posição do PS, apenas superficialmente distanciada no respeito pela política centro-europeia e da troika, é incompatível com a posição da esquerda radical. Não se pode misturar homogeneamente azeite e vinagre.

Dir-me-ão que chamar o PS à esquerda é melhor do que deixá-lo ficar preso à direita. Mas como é que um partido tem de ficar preso por uma maioria absoluta com a qual não tem de negociar nada nem consegue fazê-lo? É que o PS quer jogar simultaneamente em vários tabuleiros: na respeitabilidade perante a Europa; na confiança dos poderes sociais e económicos internos; na adesão de um eleitorado timorato que, afinal, está condicionado pelo dogma de que é preciso pagar.

Claro que não esqueço a questão eleitoral, porque a solução da crise, pelo menos a abertura a dinâmicas sociais que a equacionem de outra forma, passa pelo derrube deste governo. O PS pode recusar a sua política, fazer uma grande mudança e, no entanto, ter a perspectiva de ganhar eleições. Teria de ser o polo de atracção de eleitores moderados para uma frente de esquerda alternativa e patriótica, escolhendo que a salvação nacional se faz no movimento popular, dos trabalhadores, dos reformados, dos desempregados, dos jovens e não numa aliança de arco-íris conservador que tenta instrumentalizar muitas dessas pessoas.

O papel que vejo para um novo partido não é o de corredor entre PCP e PS, com ou sem BE. É o de portador de uma nova dinâmica de esquerda, mobilizadora, a inspirar confiança pelo seu espírito renovador. Respeitando as diferenças mas criticando lealmente, o que mostra às pessoas que não é mais um do mesmo. Ouvindo e negociando, mas sendo firme nas posições e esclarecendo as pessoas sobre o que está em jogo para a salvação do seu futuro e dos seus filhos, combatendo decididamente a manipulação ideológica e a desinformação, em vez de se envolver na pequena propaganda partidária convencional.

Não chamo a isto situar-se num determinado lugar na esquerda. Chamo dar mais esquerda à esquerda.

À MARGEM – RT termina o seu artigo com uma tirada para efeito, “é preciso ir buscar coragem à imaginação”. É coisa que cheira a 68, que o seu amigo Dany lhe deve ter contado, embora na altura fosse coisa com sentido diferente (“l’imagination au pouvoir!”). É que, lendo o tal manifesto, fiquei com a ideia de que RT entendia que “alternativas concretas e decisivas para romper com a austeridade e sair da crise” só podiam ser apresentadas por “uma esquerda corajosa”. Agora vejo que é o contrário, primeiro a imaginação, a coragem vem lá atrás. RT lá saberá. Embora sem perceber bem esta confusão toda e a literatice dessa tirada, mas entrando no jogo, prefiro a minha versão: “é preciso ir buscar imaginação à coragem”.

P. S. (2.11.2013) – São José Almeida, hoje, no Público, escreve, segundo a onda geral: “… a incapacidade de convergência que assola os três partidos da esquerda: PS, PCP e BE.” Ou eu sou muito sectário, ou muito ignorante, ou sem a capacidade de análise profunda das pessoas dessa tal onda, mas não consigo perceber o que é que hoje (porque o passado é passado) define o PS como esquerda – e o que é que define a social-democracia europeia como esquerda – do ponto de vista social; de ideologia; de aceitação dos fundamentos do ordoliberalismo, senão mesmo de um neoliberalismo envergonhado; de que compromissos internacionais; de posicionamento anticapitalista ou não; de propostas sobre economia política; de que tendências para diálogo privilegiado, cooperação e alianças entre partidos; etc., etc. Ou é de esquerda porque é de esquerda, é tudo e não se discute mais?

sábado, 26 de outubro de 2013

Com tristeza e preocupação (II)

Como disse há dias, compreendo a consideração, por cada força política e social, entre a convergência para a unidade comum e a defesa de interesses próprios, legítimos quando essenciais para a afirmação dos seus fins particulares. 

A meu ver, não é o que se está a ver em Portugal, no que respeita à mobilização popular contra a política de austeridade, contra os troikianos externos e internos.

Não vou falar dos institucionalistas, ou dos utópicos de uma esquerda fantasista, que obviamente em nada contribuem para essa luta popular efectiva, porque nela só participa uma pequena minoria honrosa do PS, à revelia da direcção do seu partido. E disse institucionalistas porque, geralmente, são pessoas que se movem estritamente no quadro formal da democracia parlamentar, muitas vezes até com horror à voz do povo na rua ou nos seus movimentos de base.

Assim, o meu apelo à unidade não é o que mais se vê por aí, a coisas entre cúpulas partidárias, onde talvez alguns se vejam já sentados à mesa. Proclamo outra coisa.

A unidade necessária, que talvez alguns carreiristas ambicionem para seu proveito, não é só entre partidos, mediada por uns independentes de serviço. É a unidade entre coisas diversas convergentes a vários níveis para a luta popular. 

É urgente que partidos da esquerda consequente, sindicatos, organizações não partidárias e movimentos inorgânicos apelem, com base programática apelativa, à adesão dos cidadãos a uma plataforma de alternativa popular e patriótica, com base num bloco social de revolta popular contra o golpe (não vêem que ditatorial?) que o novo fascismo, encapotado e sob a ideologia dominante neoliberal está a fazer. Depois, que para essa adesão se chamem todos os cidadãos motivados, e aqui é que cabe um lugar fraterno para os eleitores e simpatizantes do PS que não se revêem na política do seu partido.

Para isto, todos os promotores têm de dar o exemplo de abertura ao diálogo, de negação do sectarismo, de humildade revolucionária.

E que programa? Obviamente que não sou eu a ditá-lo, mas, para aderir com o entusiasmo que me resta no fim da minha década de 60s, gostava de ver coisas como:
  • Planificação democrática da economia, com respeito por um modelo de sustentabilidade social e ambiental, discutido com as organizações do sector.
  • Uma atitude firme do governo na afirmação da nossa soberania junto dos órgãos internacionais e de outros países.
  • Código rigoroso de ética dos agentes políticos.
  • O recurso sistemático aos meios de defesa dos cidadãos, a começar pelo Provedor de Justiça.
  • A resistência passiva, cidadã, contra a violência do governo, nomeadamente no que respeita às imposições fiscais.
  • A resistência passiva, cidadã, contra os roubos praticados pela banca.
  • O boicote à comunicação social desinformadora e manipuladora, diminuindo-lhe as audiências e, logo, as receitas de publicidade.
  • O reforço do acesso fácil e gratuito dos cidadãos aos procedimentos da administração pública.
  • Rejeição categórica do cheque de ensino.
  • Rejeição da dívida ilegítima, nomeadamente a resultante dos movimentos bancários de crédito barato e especulativo do centro para a periferia, durante a construção da euro-zona.
  • A denúncia do memorando com a troika e reestruturação da dívida, com estudo da eventual saída do euro e da suspensão do serviço da dívida.
  • Uma política contracíclica, a fomentar a procura interna por aumento dos salários, do emprego, dos investimentos públicos.
  • Um sistema fiscal justo, na relação entre trabalho e capital (embora me pergunte o que é aqui justo, porque sou anticapitalista).
  • Refundação do sistema bancário, condicionada pela perspectiva da sua inserção na economia nacional pública.
  • Defesa intransigente, custe o que custar em termos de dívida, do estado social.
  • Uma política de, pelo menos, igualdade no que se pede ao capital e ao trabalho como contribuições para solução da crise.
  • Na situação actual de dificuldades no crédito à habitação, mesmo aos já em curso, aprovar a dação em pagamento com efeitos retroactivos, a suspensão imediata dos despejos e a reconversão das hipotecas em alugueres sociais.
E mais não digo, que muito seria, porque não sou candidato a primeiro ministro.

Com tristeza e preocupação (I)

Neste fim de tarde de ida à rua, escrevo com desgosto. À boa maneira de uma velha atitude política, podia fazer como a avestruz, para não fazer o jogo do adversário, mas o dever de um revolucionário racionalista é o de encarar as coisas de frente e tirar lições.

Não comentei o semi-fracasso da manifestação da CGTP, há uma semana. Não me senti com domínio dos factos. Foi a confusão da proibição, o provável receio de insegurança, também a chuva? Honestamente, creio que não estariam mais de 10.000 manifestantes. Hoje a do “Que se lixe a troika” foi muito pior, em fracasso. Encheu o lado poente do Rossio, não mais do que 5000 pessoas. 

Ao contrário do que esperava, como escrevi há dias, não vi lá a “malta típica da CGTP”, apesar de ter visto Arménio Carlos e mais alguns seus camaradas da CGTP. Não vi quadros partidários conhecidos e até nem vi personagens mediáticas conhecidas, que tanto apelam “a la calle” nos seus blogues. Também desapareceram muitos dos manifestantes do 12 de Março (quantos do PSD então anti-socráticos e hoje acomodados conflitualmente entre a formatação ideológica e a sensação de serem roubados?). Também não os engraçados acampados do Rossio, que só o guru coimbrão levou a sério. 

O que se passa? O povo está anestesiado? Ou não tem confiança em quem lhe apela para sair à rua? Ou já não acredita em nada, nem em partidos nem em movimentos não partidários, nem na sua voz e no seu poder na rua?

Tenho escrito muitas vezes a defender a necessidade de um novo partido. Não é um partido a querer ocupar seja que espaço for, entre X e Y, mas um partido que seja diferente na igualdade (noutra entrada discutirei isto), que traga mais esquerda à esquerda. No entanto, infelizmente, e como vi hoje, é “wishful thinking” pensar que esse partido pode ser criado atempadamente.

A ideia da criação de um novo partido, pela minha parte, em nada significa a desvalorização dos actuais partidos da esquerda radical – expressão que escrevo com gosto – ao contrário do que leio de alguns, que pretendem “o verdadeiro partido de esquerda”. Não sei o que é isso, porque não sou iluminado, limito-me a saber o que quero, sem o impor. Considero o pluralismo uma riqueza, desde que abertamente debatidas as diferenças.

Parece-me que está a haver uma separação, porventura por razões instrumentais, entre quatro esferas da intervenção da esquerda: partidos, sindicatos, organizações não partidárias, movimentos. Não falo dos dois primeiros casos, bem conhecidos.

As organizações não partidárias têm sido relativamente fluidas, pouco eficazes e por vezes contaminadas de início, como é o caso da Intervenção Democrática, uma criação do PCP depois do Ipiranga do MDP, em que participei (bem como o partido dos Verdes, cuja história conheço bem e sobre a qual não me digno pronunciar-me).

Cronologicamente, vem a Renovação Comunista. É um simpático grupo de amigos, alguns da minha boa lista pessoal, mas não vale mais do que isso. Também os movimentos, se lhes podemos chamar assim, derivados das candidaturas de Manuel Alegre, reféns da falta de coragem política do candidato, afinal, lamentavelmente, o único político que, agora, reagiu contra as subvenções aos políticos “profissionais”. Da última candidatura resultou um movimento em que participei com interesse, a Convergência e Alternativa (C&A), que acabou por se auto-extinguir, ao que sei por a Renovação Comunista, seu forte componente, não se querer confundir com qualquer posição de defesa da criação de um novo partido.

Com isto, note-se que, na C&A, havia um conjunto significativo de pessoas que, não tendo ilusões quanto à unidade com um sector alegrista (?) do PS, estava aberto à criação de um novo partido e que, depois da crise e da política troikiana, assumiu posições de abertura à discussão da saída do euro, contra algum conservadorismo dos membros mais sensíveis a um entendimento com o PS.

Por outro lado, quanto a “movimentos de rua”, praticamente defunto o 12 de Março e com os seus principais protagonistas absorvidos por partidos (se já não o eram), resta hoje, e bem, o “Que se Lixe a Troika”. Ao lado, com outro perfil, os movimentos mais “convencionais”, de estudo e debate, em que sobressaem o Congresso Democrático das Alternativas e a Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida

Claro que falta aqui uma longa lista de associações de intervenção política (lembrando logo, simbolicamente, a Associação 25 de Abril) ou de defesa de interesses particulares, dos reformados, das mulheres, dos jovens, dos emigrantes, dos imigrantes (mesmo sem voto), das minorias sexuais, da defesa do ambiente, do desenvolvimento comunitário, etc

Dito tudo isto, entretanto, o que fazer? Como há leitores que não gostam de ler entradas muito extensas, continuo a seguir, ainda hoje, em entrada que, contra as regras da blogosfera, se segue a esta apesar de posterior. 

Robôs políticos

Numa entrada anterior, procurei alertar para as deficiências actuais de uma democracia muito vulnerável à falta de informação dos eleitores quanto a problemas económicos cada vez mais técnicos, bem como à sua vulnerabilidade em relação às máquinas mediáticas de construção/destruição de robôs políticos.

Esses fantoches, produtos medíocres desta lógica político-partidária, não podem deixar de ser medíocres, porque alguém que tenha ideias e grandeza intelectual e ética ameaça a lógica deste sistema e os interesses bem defendidos dos caciques partidários. Concorde-se ou não com eles, Guterres, Durão Barroso e até Santana Lopes e Sócrates, são o fim da geração anterior. Portas é caso à parte, sui generis. Passos Coelho e Seguro são irmãos numa tendência de banalização da mediocridade na política.

São papagaios que debitam coisas que lhes ditam, com postura, indumentária e expressão que lhes são maquilhadas logo de manhã pelos construtores de imagem. Ainda hoje, a boa crónica de Daniel Oliveira no Expresso, referindo uma intervenção do deputado Miguel Frasquilho, do PSD, é arrasadora, ao citar afirmações recentes de Seguro que Passos Coelho não enjeitaria.

Eu valorizo mais a posição colectiva de um partido, porque resulta mais significativamente de um balanço da relação de forças das correntes e influências internas. Mas considero, não é nenhuma descoberta, que a figura do líder é hoje eleitoralmente determinante. Estranho é que, em alguns casos, os partidos tenham uma atitude quase suicida nessa escolha, a não ser que, como disse, prevaleçam os interesses aparelhísticos.

Só assim compreendo que, antes das eleições de 2011, o PS não tenha escolhido outro líder (Costa?) a substituir um Sócrates completamente desgastado e a conduzir certamente o PS – e todos nós – para o desastre, como se viu.

Da mesma forma, com Seguro de triste figura, o PS só pode confiar em que as eleições sejam o mais tarde possível para beneficiar mais da política criminosa do governo, porque com Seguro não é seguro. Mas isto dá tempo para que uma ala esquerda de militantes influentes do PS – há? – se concentre na sua tarefa prioritária e urgente: mostrar aos militantes do PS que a sua “salvação” partidária passa obrigatoriamente pela regeneração da noção de liderança e pela escolha atempada de um novo líder. E, para quem noutra esquerda se interessa, e não pode deixar de ser, pelo que se passa no PS, apoiar este esforço é mais importante do que defender aproximações espúrias com a sua actual direcção.

NOTA – Esta semana, realizou-se a sessão habitual de abertura do ano lectivo da minha escola, em que há sempre um prelector de honra. Foi Carlos César, que todos conhecem como ex-presidente do governo regional dos Açores. O tema era o mar, de que falou muito bem, mas só durante metade do tempo. O resto foi para um importante discurso político, de grande amplitude.

Sabe-se que eu não sou um adepto da social-democracia, mas, nos tempos que correm da sua rendição ao neoliberalismo, ouvir um socialista dizer que a democracia está a ser aprisionada pela dívida, que a política está a ser feita à margem do povo, que o bloco político necessário é para a luta pelos direitos sociais, e até que é necessária a reestruturação da dívida e que se isto resultar em crise política, tanto melhor, ouvir tudo isto, dizia, surpreendeu-me. 

Ou muito me engano, ou foi um discurso de lançamento, como compreenderam os jornalistas que, no fim, longamente o entrevistaram. António Costa está preso à câmara de Lisboa, Carlos César está livre. Seguro que se cuide! 

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

O fim dos blogues?

Há dois ou três anos, os blogues apareceram como um instrumento privilegiado de intervenção. Como novidade, eram gratuitos, com uma interface muito amigável, não exigiam conhecimentos de programação em HTML. Amplificavam as mensagens de interventores televisivos conhecidos, como Pacheco Pereira e o seu pioneiro “Abrupto”. Também serviam para publicar livremente crónicas de jornal, provavelmente pagas e sujeitas a limitações de divulgação por causa disto.

Outra característica notável de muitos blogues era a de serem colectivos. Nunca percebi bem se por reforço da exposição de posições afins se por comodidade de distribuição de tarefas, porque um blogue obriga a publicação frequente. E é neste aspecto que a evolução dos blogues me tem surpreendido.

Há os resistentes individuais, que publicam sozinhos todos os dias, o que dá ao leitor a ideia de que viam lede qualquer coisa coerente com a escrita geral do autor. Se entre os que leio diariamente, lembro, por exemplo, Joana Lopes, no “Entre as Brumas da Memória”, Pedro Lains e Vítor Dias, no “Tempo das Cerejas”. São resistentes da blogosfera, fora os que escrevem no Facebook, como os que leio diariamente, João Carlos Graça e Alfredo Barroso.

Na lista dos colectivos, abundam os casos em que vemos co-autores que nunca escrevem. Na relação autores de facto / autores nominais, nos últimos meses, dou alguns exemplos. Arastão: 2/9; Ladrões de bicicletas: 5/11; Incursões: 4/13, Jugular: 10/26.  

O que significa? Cansaço de alguns? Quebra e identidade grupal? Provavelmente, a falta de organização disciplinada nos blogues colectivos mata-os. Parece-me que é muito mais proveitoso, para um projecto de grupo, a publicação de um portal ou de uma revista online. Ou mesmo, mais modestamente, um meta-blogue que é um índice dos blogues participantes. O Hunffington Post começou como coisa de  amigos carolas e hoje é o que se vê (e sem publicidade). 

E ter em conta uma coisa muito simples e prática. Todos os dias visito obrigatoriamente 24 blogues. É demais! Bem preferia que fosse como a também obrigatória visita ao Guardian ou ao New York Times, em que vejo logo tudo o que vale a pena ler, incluindo os blogues como os de Paul Krugman (também a não perder os blogues com acesso pela página do El Pais).

NOTA – Há uns tempos, comecei a fazer a ligação entre os meus blogues e a minha página de facebook. Foi notório o aumento do número de visitantes aos blogues. Ainda não percebi o que causa isto mas é coisa interessante, a articulação entre as redes sociais tipicamente de escrita telegráfica e os blogues. 

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O ódio como razão política

Declaração prévia – Pessoalmente, não gosto de Sócrates, não votei nele mas sim em branco. Acho que tem defeitos de carácter que o diminuíram politicamente. Mas as minhas análises políticas não dependem das minhas simpatias ou antipatias. Esforço-me por ser racional e justo.

As entrevistas de Sócrates, ao Expresso e à TSF, mostraram-me um homem mais amadurecido, que estudou e que se soube distanciar com alguma sabedoria daquilo que é risco conhecido de todos os vencidos – vae victis! –  o de serem massacrados sem possibilidade de defesa pelos seus substitutos mesquinhos. Quanto ao tema do seu regresso, o da tortura que trabalhou em livro, não rejeito qualquer das suas teses.

Conversámos muito sobre isto cá em casa, fazendo um exercício de advogado do diabo de toda a gente que anda embarcada no ódio a Sócrates – e começo logo por dizer que, por mais críticas políticas que faça, nunca me movo por ódio, mau conselheiro – e apeteceu-me escrever um “post”. Fá-lo-ia mais aprofundadamente se Daniel Oliveira (DO) não se tivesse antecipado, no Arrastão. Mesmo assim, creio que vale a pena algumas notas, ou de comentário ao que DO escreveu ou ao que não escreveu.

O ódio a Sócrates é talvez, entre nós, com algum afloramento prenunciador na queda em desgraça de Cavaco, o primeiro exemplo flagrante da atitude primária do eleitorado, incapaz de analisar objectivamente as políticas e, por outro lado, alienado pela ineficácia do sistema da ajuda de intermediários que o ajudariam nessa análise, bem como da desqualificação da comunicação social. Não se discute a política, discute-se o homem, com a política transformada em circo. Destroem-se as reputações e o homem da rua vai atrás, porque onde há fumo há fogo. A democracia transformou-se em demagogia.

Sou da geração que foi confrontada com o problema da tecnicidade da decisão política (lembram-se do Clube de Roma?), com a emergência da tecnocracia a dominar a política e a concepção tradicional da democracia representativa e baseada no poder, directo ou delegado, dos cidadãos, nunca diminuído por limitações de conhecimento técnico. A princípio, na segunda metade dos anos 60 (embora já antes influenciando a deriva social-democrata baseada na “evolução” do capitalismo), a questão era ainda relativamente teórica, embora com a afirmação política de quadros tecnocratas (veja-se, na nossa península, os Opus Dei em Espanha e os jovens marcelistas em Portugal, com um Salgueiro ainda a ser venerado por toda a comunicação social).

Hoje, isto não basta, em boa parte porque o 25 de Abril pôs tudo isto em questão e porque, décadas depois, temos uma boa plêiade de novos pensadores e economias que estão a repensar a economia política, numa perspectiva de esquerda. Referência obrigatória, com forte aplauso, para o Ladrões de bicicletas. A direita já não pode confiar em que a sua tecnocracia funcione sem sobressaltos, em que as pessoas não se questionem. É preciso formatarem as mentes, as opiniões, as vontades. Aprenderam Marx e Gramsci, em seu proveito. 

Para isto, dispõem da comunicação social e das universidades, como instrumentos principais. E tudo visando a construção mental, nas pessoas passivas – quantos idosos bebem horas e horas a televisão? – de ideias desonestamente prefabricadas. A televisão é a sua amiga e companheira, na sua solidão, é uma máquina de 1984. O que a televisão diz é a opinião que assimilam, sem necessidade de esforço crítico. Mas também o mesmo se pode dizer dos activos, que não deixam de ser vulneráveis a outros meios de informação, principalmente quando tudo se filtra, no caso dos jovens quadros gestores e outros, pelo enquadramento em que foram moldados pela ideologia neoliberal dominante nas escolas com nome inglês ou na esperança do MBA.

Não há qualquer pudor em falsificar a verdade. Comecemos por isto, em relação a Sócrates. Quem é que, no público amorfo, foi confirmar a informação insistente do governo, de que Sócrates foi o responsável pela actual situação? Pelo défice orçamental e consequente aumento da dívida pública? Pela diminuição do PIB? 

A percentagem da dívida pública em relação ao PIB estabilizou à volta dos 50% a meados dos anos 90 (governos Cavaco). Depois, foi crescendo progressivamente, mas de forma contínua, até 2008 (governo Sócrates), a nível de cerca de 70%. Não há qualquer variação brusca que possa indicar uma responsabilidade particular de um governo – Guterres, Barroso, Santana Lopes, Sócrates. A subida exponencial de 69% em 2008 para quase 130% previstos para 2013, é durante a crise europeia e, nos últimos dois anos, com o actual governo (subida de 102% para 130%). Subida de quase 20%, tanto como nos 20 anos anteriores. Saliente-se que o endividamento em 2008, no início da crise, se deve principalmente à política keynesiana de investimento contracíclico recomendada pela UE e seguida pela generalidade dos países da zona euro, que a Sra Merkel contrariou desde logo e que conseguiu inverter, com as consequências que se vêem.

Também a propaganda do governo, assassinando Sócrates em carácter político, é desonesta no que se refere à evolução do PIB. Houve um primeiro ciclo de descida do PIB, entre 2000 e 2003, mas que corresponde ao segundo governo Guterres. No entanto, lembre-se que é incorrecto relacionar num tempo curto a evolução do PIB com a política. Em 2003 há uma primeira queda, de cerca de 1%, e a seguir um ciclo de quatro anos com pequenos aumentos de cerca de 1,5% ao ano. Em 2009 inicia-se o actual ciclo recessivo, com interrupção em 2010. Não é fácil demonstrar que isto, consequência da crise europeia, tenha a ver, directamente, com a governação de Sócrates.

Mas isto também serve para outra coisa, por parte da direita. Culpabilizar Sócrates é muito bom mas ainda melhor se ao mesmo tempo se fizer esquecer outras culpas. As séries temporais que referi datam de 2000 ou 2002. A data é importante, é a da nossa adesão ao euro. Teve coisas que o homem comum, o tal que a TV e os seus opinadores massacram, desconhecem. O escudo converteu-se em euro com sobrevalorização artificial, o que desde logo diminuiu a competitividade da nossa economia. Deixámos de controlar uma moeda própria e de nos ajustarmos às pressões da competitividade. Deixámos de poder usar a paridade, as taxas de juro, a inflação. Passámos a ter taxas de juro muito baixas, com grande afluxo de capitais dos “países centrais” e grande endividamento (muito mais significativo do que a dívida pública). Os bancos passaram a ter muito maior liquidez e a fazer um enorme marketing a favor do endividamento dos particulares. 

Com a crise e o seu momento trágico de meados de 20011, tudo se esboroou. Os bancos alemães e franceses retiraram os capitais investidos, o BCE secou os bancos dos países periféricos, entrou-se em falta de liquidez. Então, como sabemos agora por Sócrates – sem desmentido – Passos Coelho traiu-o, Teixeira dos Santos praticamente também (mas porque foi sempre mantido como ministro?), os bancos chantagearam-no. E o “animal feroz” cedeu! Nestas alturas é que se vê o homem, que se devia ter demitido sem a cedência do resgate.  

Dito tudo isto, o que é que derrotou Sócrates? Não a política, mas o homem. As eleições cada vez mais se decidem pelo “pão e circo”, pela imagem feita por profissionais e não pelas propostas sinceras – e quem as faz?. E é patente que os rótulos são fabricados por massacre comunicacional, não por argumentos sérios. Sócrates é mentiroso. Em quê? Nas promessas eleitorais que todos fazem? Sócrates é ladrão. Mas os “trabalhos jornalísticos” que o condenaram levaram a alguma coisa daquilo que só aceito como sentença, a dos tribunais? Sócrates é leviano, como se vê no caso da licenciatura. É verdade, foi pouco rigoroso embora sem nenhuma ilegalidade (a história da nota ao domingo é total parvoíce), como já tinha sido no caso das casas da Beira. São erros, coisa pior do que crimes, e que em política se pagam caro, dizia Talleyrand.

Simplesmente, quando estava em jogo a escolha de um governo que iria ser responsável por quatro anos de negociação com a troika e de aplicação das suas ordens ao protectorado, como é possível que tantos milhares de eleitores do PS tenham ido votar no PSD? Foi ignorância? Se foi, é a democracia representativa que tem de ser repensada? Mas como se seleccionariam os “esclarecidos”? Ou como um poder popular revolucionário pode promover o esclarecimento dos eleitores? O mesmo em relação ao voto hoje determinado pela emotividade, pela manipulação dos sentimentos, pela simpatia de tipo telenovela. Pode-se mudar, com leis de controlo revolucionário dos aparelhos políticos propagandísticos e da comunicação social.

Por tudo isto, e por conversas avulsas com gente comum, verifico que muito tipicamente os actuais detractores de Sócrates são antigos votantes do PS que, em 2011, aborrecidos com aspectos não directamente políticos do homem (não digo que não importantes: a arrogância, a agressividade de discurso, o ar altivo), votaram no PSD. Como se sabe, foram muitos. 

Portaram-se infantilmente, em relação a tudo o que estava em jogo. Votaram porque não gostavam dele, assim como não se gosta de uma estrela do ecrã. Hoje estão arrependidos mas não confessam. Preferem arranjar desculpas, que Sócrates é que teve toda a culpa da crise e que por isso votaram bem, mesmo que admitindo que Passos ainda é pior. O problema é que, presos neste jogo, só têm para a próxima uma saída fácil, mas má para a democracias: a abstenção.

Concluindo, não gosto de Sócrates, mas não me verão a pontapear o animal derrotado e sem forças.

NOTA – É claro que poderia ter havido outro cenário, na selecções de 2011: o de o PS ter aparecido com outro líder. Precisava de legitimidade partidária? Havia tempo para isso? Não sei, mas creio que não foi esse o factor principal, antes a dependência do aparelho carreirista em relação ao chefe.

domingo, 20 de outubro de 2013

A verdadeira unidade

Dizia-se que as manifestações da CGTP eram tipicamente de gente cinquentona ou mais, com “sinais exteriores” de níveis económicos e sociais relativamente baixos. Na manifestação do 12 de Março, salientou-se a diferença de composição, gente mais jovem e aparentemente com maiores habilitações, com provável situação de precariedade e de desvalorização dessas qualificações. O que tenho visto nas manifestações posteriores, concretamente desde o 15 de Setembro, foi a clara aproximação desses dois tipos de manifestantes, se é que essa distinção não é um pouco esquemática.

Cada vez mais ouço pessoas a dizer que vão a ambas, que não ligam muito a quem as convoca e fico muito satisfeito com isso. Pode-se então perguntar porque não se dá um passo em frente na demonstração da unidade, fazendo sempre convocatórias conjuntas.

É certo que haveria vantagens políticas, como fortes factores de entusiasmo na luta e maiores perspectivas reais de alternativa política – como se disse muito ontem, expressão muito feliz, “política alternativa e soberana”. No entanto, apesar da tendência que referi, provavelmente ainda parte significativa dos manifestantes é mais moblizável por uma ou outra convocação. Também se obsta à estranheza que podia causar a repetição de manifestações convocadas em conjunto em datas muito próximas, como agora. Claro que também – não sou ingénuo – as organizações como a CGTP tiram efeitos de imagem, coesão organizativa e impacto político quando organizam sozinhas uma manifestação como a de ontem, coisa menos importante para um movimento inorgânico como o “Que se lixe a troika”.

Em relação à especificidade de cada convocação, note-se, por exemplo, que a intervenção de Arménio Carlos (muito bem articulada) incidiu com óbvia ênfase prioritária na luta contra a política de degradação da situação económica dos trabalhadores e dos reformados. Insistiu menos no desemprego, e muito menos na situação política, no quadro geral da crise, das responsabilidades do grande capital, na aberração desta Europa. Compreensivelmente, falou directo e simples para quem sente que lhe estão a ir ao bolso.

A política institucional é importante mas limitada. A afirmação na rua também. Ambas, com mais outras manifestações de poder do movimento popular e das forças do trabalho, da justiça, do progresso e patrióticas, são um imenso poder, é certo que ainda relativamente adormecido e com bastante por revelar nesta crise.

O contributo institucional, no que se refere aos partidos, para que seja coerente e consequente, deve ir com o movimento popular e patriótico, dialecticamente, tanto em sintonia com as aspirações como em impulso influenciador. O PS tem rejeitado o que podia ser o seu lugar nessa frente partidária, incompatível com a deriva neoliberal da social-democracia europeia.

Muito diferente é o caso de certamente muitos e muitos milhares de eleitores, simpatizantes e mesmo militantes do PS que não se revêem no seu partido. Infelizmente, nem numa qualquer ala de esquerda do PS, que não se vislumbra, podem ter esperança. Estão é a participar – já vemos alguns – em iniciativas congregadoras, como o Congresso Democrático das Alternativas ou a Auditoria Cidadã à Dívida. E, principalmente, a engrossar a grande mole que sai para a rua. Esta é que é a verdadeira unidade com o PS.

Até sábado!

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Os troikianos e a banalidade do mal

NOTA PRÉVIA – “Post” muito extenso mas que, imodestamente, julgo que vale a pena ler, como abordagem filosófica e ideológica de uma crise habitualmente vista mais do ponto de vista económico. Sugiro que gravem para lerem depois.

Vi ontem o Hannah Arendt. É um filme estranho, difícil de criticar. Em qualquer filme, medimos integradamente coisas diferentes, o argumento, a realização, a fotografia, a encenação, a interpretação, a música, etc., para o valorizarmos. Neste filme, muitas destas coisas são muito boas, com destaque para a magnífica interpretação de Barbara Sukowa e de Alex Milberg e para a paleta de castanhos e claros-escuros dos interiores (o castanho, a cor da indefinição, do que vai bem com tudo), mas ficam ofuscadas pelo principal, o texto com as teses de Hannah Arendt sobre o mal e a análise do julgamento de Eichmann.

Não vou referir-me ao livro – que preciso agora de reler com mais atenção – mas ao que é dito no filme e que me pareceu muito fiel ao livro.

A primeira nota de reflexão é sobre a justiça do próprio julgamento. Para a concepção geral de justiça, exemplificada de forma talvez um pouco incongruente pela personagem Heinrich, o marido de Hannah (um seguidor de Rosa Luxemburgo a dizer isto?), Eichmann não foi condenado por nenhum crime que tivesse cometido, como pessoa, mas sim como representante de um sistema de abominável criminalidade. Não tendo o Holocausto sido explicitamente condenado em Nuremberga, era Israel que tinha de o fazer. Mas quem pode invocar o primado do sentido tradicional da justiça, de condenação de crimes concretos de um réu concreto, quando está em causa a punição e a dissuasão – não a justiça teórica – de uma monstruosidade?

Apesar da polémica mais conhecida sobre a responsabilidade de líderes judaicos, a questão principal, filosófica, é a do mal. O Holocausto foi um mal radical, quase exemplar de um mal absoluto. Não devia ter sido cometido por monstros satânicos? Observando Eichmann, Hannah confronta-se com um funcionário frio, burocrata que cumpria “o seu dever”, a que estava obrigado por juramento de oficial. É isto que Arendt discute como a “banalidade do mal”, coisa terrível, porque permite a cumplicidade de muita gente que não pertence obrigatoriamente à categoria de monstros psicopáticos.

Todavia, a ideia não deve servir para desculpabilizar todos os membros de um sistema criminoso, embora seja muito difícil desenhar a fronteira. Era criminoso o soldado alemão anónimo em Babi Yar ou em Oradour? Era criminoso, como indivíduo, um alto funcionário Eichmann “cumpridor de ordens”? Ou só eram monstros criminosos Himmler, Goering, Hess e os demais condenados de Nuremberga? Eram todos. A jurisprudência pós-guerra assentou o princípio da não aceitação da desculpa do cumprimento de ordens, embora haja medidas diferentes da culpa.

A dimensão do horror nazi pode ofuscar a nossa própria experiência portuguesa, pequenina, de fascismo fadisteiro, desta banalidade do mal. Como é que, ainda hoje, vemos fotografias de militares em Angola, em 1961, segurando cabeças de negros espetadas num pau (mas também do outro lado)? Como é que, ainda hoje, se passeiam impunes os participantes de Wiriamu? Como é que, ainda hoje, quem por cá anda da alta sociedade angolana continua a aceitar bem que, incluindo o chefe militar e depois marechal da república, cortejassem um tal São José Lopes, o director local da Pide? E até, na minha terra pequenina, que quase toda a boa sociedade local bebesse champanhe e comprasse fotografias nas exposições do fotógrafo oficial de Salazar, Rosa Casaco, lá colocado na Pide?

Ao contrário do que Arendt propõe, não creio que sejam só esses burocráticos agentes do mal e a sua cadeia de comando, superior, que geram a banalidade do mal. Julgo que somos todos nós, os coniventes. Infelizmente, em todos os casos, foram a maioria, com a honrosíssima excepção dos resistentes. Maioria de milhões na Alemanha nazi (não foram postos artificialmente nas fotos das celebrações nazis), também muitos em Portugal. É bom acabar com os mitos do povo resistente. Volto sempre à hegemonia gramsciana. Mais vale estudá-la do que embarcar nestas desculpabilizações pseudo-populares.

Também me impressionou negativamente a conferência final de Arendt, que já não me lembro se é ou não uma passagem do livro (vou ver). Parece-me que, retomando boa parte da influência que teve do irracionalismo heideggeriano (já sei que muitos vão discordar desta classificação), talvez também da sua memória afectiva pessoal, Arendt afirma que o pensamento não contribui para o conhecimento, apenas para a distinção entre o bem e o mal e para a distinção entre o belo e o feio. Isto é, o pensamento só actua na esfera ética e na esfera estética, não na cognitiva e racional. Bem sei que seria útil entendermo-nos primeiro sobre o que Heidegger considera “pensamento”, mas não considero essencial. Consideremo-lo reflexão, com regras de lógica, com isenção e distanciamento, mas na relação entre ser e estar.

Deixo de lado a questão estética, em que me parece óbvia a falta de razão. Caricaturando, conheço muita gente que pensa bem, é bem sucedida em muitos aspectos do funcionamento mental, até sabe o que é bom e é mau, mas gosta de Quim Barreiros. O juízo estético é influenciado determinantemente por muitos aspectos educacionais, culturais, vivenciais, é confrontado com padrões grupais ou tribais, até de ir com a moda.

Da mesma forma as escolhas éticas, que Hannah Arendt também reduz a um exercício do pensamento. Recuso em absoluto que sejam apenas questão de reflexão mental, o que me parece significar a absolutização elitista do ser humano dotado desse sublime dom divino. Com isto, corre-se o risco de se desculpar quem, por qualquer razão, não distinga bem e mal por falta ou nível menor da capacidade de pensar. Pensar, em ética, só tem a ver, na minha opinião, com os casos limites dos grandes dilemas éticos. E mesmo assim sobre um terreno sedimentado que não tem nada de racional.

A nível básico, as normas morais são-nos incutidas pela educação, de forma muito geral e transversal, quase que interclassista, como instrumento secular da manutenção da ordem social. Sobre isto, a cada momento da história, a adequação à formação histórica e social, pela ideologia, esta sim classista – e mais uma vez Gramsci, se quisermos estudar como é difícil vencer este constrangimento. 

Além disto, distinguir ideologia e ética é reducionista. Creio que posso invocar bem a experiência de muitos dos jovens intelectuais ou estudantes da minha geração, burgueses que não fizeram o percurso esquemático (numa leitura superficial de Marx) a partir da classe de origem. Sei que, para muitos, se começava pela consciência de uma situação de injustiça. Muitas vezes, isto até vinha de uma saída mais ou menos traumática de outras influências, como a católica. Depois, desenvolviam-se valores éticos correspondentes. A seguir, a acção e a militância. Passo seguinte, o conhecimento, o estudo dos teóricos e dos doutrinadores da prática. Finalmente, a reelaboração dos tais valores éticos iniciais, a nível superior e com coerência ideológica. Razão, afectos, valores, vontade, são domínios indossiciáveis na mente humana.

O filme, na cena final, suscitou-me uma conversa muito interessante com uma pessoa muito querida que tem um grande sentido da amizade. Hans, o amigo de sempre, diz a Hannah que nunca mais a quer ver. Aliás, subentende-se que o mesmo se tinha já passado com outro grande amigo, israelita. Pode-se perder um amigo por causa de uma diferença de opinião? A F acha que não, e eu concordo, mas também sempre me disse que não suportaria outra coisa, a traição de um amigo. Em que ficamos, em relação a este caso? Foi uma traição ou uma diferença de opinião?

A principal campanha contra Arendt não foi por causa de Eichmann mas por ela ter acusado os Conselhos judaicos de passividade e de não resistência. Há quem vá mais longe e ache que alguns chegaram mesmo à colaboração, fornecendo a Eichmann listas de judeus a deportar, numa perspectiva do mal menor (como a de Pio XII, segundo muitos dos seus críticos). Tanto quanto leio, é uma discussão ainda em aberto, mas que não pode esquecer a coragem do gueto de Varsóvia e a redenção de resistência anticolonial da Haganah contra os ingleses, infelizmente continuada depois pela opressão dos palestinianos.

Arendt afirma que não tem de ser amiga do povo judeu porque só é amiga de pessoas, não de entidades abstractas. É verdade mas é utópico, porque muitas vezes somos impelidos a tomar partido nos conflitos, até por uma questão de manifestação solidária e de sentido de justiça. É difícil não compreender que judeus alemães que sofreram verdadeiramente, ao contrário de um relativamente menor sofrimento de Arendt, judeus que, mal ou bem, se refugiaram no sionismo para reconstruírem uma identidade destruída pelo nazismo, tenham considerado o escrito de Hannah Arendt como uma traição, não apenas uma diferença de opinião, racional e fria. Neste sentido, não me impressiona a frase final de Hans, “nunca mais te quero ver”.

Eichmann é considerado por Arendt um caso típico de um mal burocrático, banalizado. É errado ficarmos por aí. Em todos os sistemas satânicos houve também outros agentes do mal, os ideólogos, os controladores ou principais agentes do sistema, a inteligentzia, agora também a comunicação social.

No filme, o próprio Heidegger, visitando Hannah nos EUA, diz que, ele reitor nazi da Universidade de Freiburg, nunca tinha tido jeito para a política. Seria uma justificação patética se essa cena fosse verdade e uma posição desculpável se alguma vez se tivesse arrependido, o que nunca fez. De facto, o que se conhece de declarações dele é no sentido de ter visto no nazismo “a essência histórica ocidental da Alemanha”. Numa entrevista ao Der Spiegel, em 1966, tantos anos depois do fim do nazismo, ainda declara que “viu no nazismo um despertar (Aufbruch) que podia conduzir a uma nova perspectiva nacional e social”.

O sistema político, social e cultural é a realização prática de uma ideologia, ela por sua vez a forma de imposição hegemónica sobre toda a sociedade e, por via de uma ditadura das ideias feitas e dos “valores indiscutíveis”, da imposição do domínio económico de uma classe ou de uma aliança de classes. Queiram ou não os “pensadores modernos”, ainda há luta de classes. Note-se, aliás, que uma característica bem definidora desses “pensadores modernos” é a constante negação da validade actual das categorias tradicionais, que a prática de tempos de crise demonstra estarem ainda bem vivas: classes, luta de classes, ideologia, esquerda e direita, solidariedade, etc.

Seria abusivo comparar a crise actual com a situação das décadas de 20 e 30 do século XX que levaram aos fascismos. No entanto, há que refletir. Uma visão histórica convencional descura as raízes económicas e dialécticas da emergência dos fascismos, incluindo o nosso pequeno fascismo católico-rural (e isto sem que eu esteja a descurar também todos os outros factores, ideológicos, sociais, culturais, políticos superestruturais).

E não estamos a assistir hoje, salvaguardadas as diferenças de proporção, ao império de um mal que é absoluto porque não é conjuntural, é estrutural, embora só a crise o tenha mostrado como tal? Que se exerce em derivação de uma ideologia, de uma “perspectiva nacional (agora internacionalizada ou globalizada) e social” de que falava Heidegger apologeticamente? É um mal absoluto porque é o instrumento da perversão absoluta da visão da sociedade mundial, visão imperializada e dominante, segundo o neoliberalismo e, de facto, conduzindo a uma forma subtil de totalitarismo, de unidimensionalidade humana (Marcuse) mesmo que não evidente em formas de repressão política violenta.

Não começámos, nesta crise, por prender comunistas e socialistas, ciganos e homossexuais, nem por matar deficientes. Mas começámos por lançar centenas de milhar de pessoas para o desemprego. Não enriquecemos os cavalheiros da indústria que não temos, mas engordamos os nossos medíocres banqueiros. Não matamos judeus, mas empobrecemos até à miséria trabalhadores mais desfavorecidos e, pior, idosos reformados. Não estamos vencidos pela Alemanha numa nova guerra militar, mas deixamo-nos vencer na guerra económica.

Isto é um mal radical ou absoluto, no sentido filosófico, no sentido em que Arendt o contrapôs, como seu ponto de partida, ao que depois viu como mal banal, de Eichmann. Mas os nossos agentes do mal são agentes máximos e autodeterminados desse mal ou são agentes burocráticos e banais? 

Para nossa vergonha, porque, como os tais conselhos judaicos, nos deixamos dominar por quem nem sequer tem a “grandeza” de nos permitir a desculpa de não podermos resistir, são agentes burocráticos, funcionários com uma visão banal do mal. Metaforicamente, Passos Coelho, Gaspar, Moedas, Maria Luís, Carlos Costa, etc., são os Eichmann de hoje, salvaguardadas as proporções. E nem podem dizer que obedecem a ordens, por juramento militar ao chefe. Obedecem a um poder anónimo, a um poder sistémico e porque tiram proveito pessoal dessa obediência, não apenas o sentido do “dever” cumprido. 

São soldados SS de Oradour, executantes fanaticamente cumpridores, mas são desprezivelmente tratados como soldadesca, nem conseguem chegar a sargentos do novo exército da internacional capitalista europeia, com quartel general em Berlim e Bruxelas. Mas não é por serem exemplos de burocratas da banalidade do mal que escaparão à gaiola de vidro do julgamento de Eichmann.

Fazem-nos mal e ofendem-nos com a sua banalidade do mal. Lançam napalm sobre o rio, ao nascer do dia, mas nem se lembram de mandar tocar a cavalgada das Valquírias.

São funcionários do sistema oculto, são agentes da “banalidade do mal”, porque nem sequer se lhes reconhece que tenham a “ideia do mal”. 

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Um messias pouco sério

Começa a custar-me falar sequer de Rui Tavares (RT), de gastar cera com tão ruim defunto. Ainda ontem escrevia na minha página do Facebook, comentando uma entrada do “O Tempo das Cerejas”, que “Também acho que devo dizer que não tenho nada contra o homem, mas lá que me faz mossa na minha ideia de honestidade intelectual e política, é verdade. Além de tonto, em termos de ideias políticas”

Gostava de o ignorar – até porque me parece que já é politicamente irrelevante e que ninguém o leva a sério. Mas não posso deixar de comentar a enormidade que escreveu há dias no Público e que agora transcreve para o seu blogue.
“Décadas após a Grande Depressão dos anos 30 falou-se muito do espírito de uma época à beira da revolução. Mas essa não foi a descrição feita pelas pessoas do tempo. Estas falavam antes do desânimo e da apatia, da sensação de que a sociedade estava a vaguear sem saber muito bem para onde. Um historiador citando diários, cartas e artigos da época fala de um “pessimismo sem fundo”, uma “estranha paralisia tomando as energias” dos países, uma “bancarrota política” de todos os partidos, uma sociedade “esperando sem qualquer esperança que o vento mude de direção”. Mais do que qualquer desejo de mudança, foi a desilusão com a política parlamentar que levou à ascensão dos totalitarismos na Europa. 
Portugal já vivia em ditadura nessa época. Era o tempo em que a oposição, alcunhada de “o reviralho”, tentava todo o tipo de golpes e levantamentos, greves e ações revolucionárias para acabar com aquilo a que, passado algum tempo, se chamaria apenas “a situação”. Quando se percebeu que “a situação” iria continuar a ser “a situação”, o reviralho foi substituído pelo reviralhismo, uma mera atitude conspirativa sem resultados práticos, uma desconfiança permanente entre os setores da oposição que acabava transformando os aliados em adversários, uma incapacidade de mudar essas regras mentais do jogo, uma impossibilidade de ser ousado e cruzar as linhas das respetivas trincheiras, uma expectativa permanente pela próxima jogada, o próximo golpe, a próxima individualidade. 
E é nessa situação que estamos hoje: esperando que as coisas mudem sozinhas.”
RT é historiador e, como tal, tem responsabilidades acrescidas. Reduzir a oposição antifascista, durante décadas, ao “reviralho” (que ele também chama de “reviralhismo”, em fase posterior, coisa que nunca tinha lido), tipicamente a concepção e (in)acção do remanescente do republicanismo e das correntes políticas burguesas e maçónicas, é espantoso.

RT não ouviu falar da Marinha Grande (independentemente dos seus erros), da revolta dos marinheiros, do Tarrafal, de muitas e muitas greves, de levas contínuas de presos políticos torturados, do MUD, do movimento associativo estudantil, da ARA, da LUAR e das Brigadas, das deserções da guerra colonial, das rádios de Argel e Bucareste, das CDE de 1969, etc., etc.? Tudo isto foi reviralhismo “sem ousadia”, sem “cruzar as linhas das próximas trincheiras”, “esperando que as coisas mudem sozinhas”? Não sei que idade tem RT. Só por isto admito que não faça sentido a pergunta: onde estava então a ousadia de RT?

RT é egocêntrico, considera-se visivelmente o salvador messiânico da esquerda, por via de uma unidade que, à falta das propostas de RT nunca formuladas (a não ser uma delirante “A grande valorização”), vá apenas pela sua fé nele. Considera-se talvez o missionário em Portugal da fé na fada europeia. Escreve coisas subjectivas, sem fundamentação e com primarismo teórico. Em relação a tudo isto, está no seu direito. Não tem é o direito de deturpar tão escandalosamente a história. A menos que seja simplesmente tonto. 

NOTA – Nova nota sobre RT será quando ele for novamente candidato a eurodeputado. Já que não o será pelo BE, tenho o palpite sobre por que partido será. Ai, a unidade...

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Colegio Militar

Não tenho comentado o caso do Colégio Militar (CM), primeiro o do processo por maus tratos entre alunos, mais recentemente a reação, a meu ver machista, contra a fusão com o colégio feminino de Odivelas. Bem me podem gabar a alta qualidade pedagógica do CM, o facto de disponibilizar esgrima e equitação, o de educar em valores de honra e patriotismo (que servem para tudo, aplicando-se a antigos alunos que se celebrizaram como próceres do militarismo colonialista do salazarismo). Paralelamente, ou por causa disto, testemunhei numa organização em que vivi que o CM manda para a vida uma elite que se protege, como maçonaria. A barretina na lapela é mais imediatamente eficaz do que os sinais maçónicos. E eu detesto maçonarias!

Ontem, no início do julgamento contra ex-graduados do CM, e segundo notícia do Público, um deles declarou que “os castigos corporais eram normais nesta instituição e pediu desculpa por ter dado uma chapada de luva castanha [nota, JVC – com luva castanha, acto simbólico por ser a luva do uniforme] a uma das vítimas que ficou 688 dias em convalescença por perfuração do tímpano. Certo tipo de castigos corporais e físicos eram normais no Colégio Militar. Se algum aluno cometia um erro, como não fazer a cama, chegar atrasado ou faltar ao respeito, tinha de ser castigado. Não havia nada escrito, mas era um código de conduta que foi passando de geração em geração que todos no colégio sabiam existir".

Que excelsa pedagogia é essa que assenta numa prática hipocritamente aceite de maus tratos corporais? Consentidos de geração em geração, até que agora pais de alunos maltratados tiveram a coragem de denunciar. Também, como no filme “Uma questão de honra”, foi preciso um corajoso advogado da Marinha (Tom Cruise como Lt. Kaffee) para quebrar a regra dos “red codes” dos Marines e mandar para a prisão o arrogante coronel Jessup (Jack Nicholson).

Estes jovens do CM não irão para a prisão e talvez não a mereçam, por serem produto daquela mentalidade e “ética”. Mas servem para que todos nos interroguemos sobre a existência de uma entidade tão anacrónica como o CM. Não me interessa que dê ou não lucro. Também não aceitaria que o Estado mantivesse uma casa de alterne, por muito lucro que desse.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Investigação universitária

Como já aqui discuti, houve durante muitos anos uma situação ambígua em relação aos centros de investigação reconhecidos pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e à sua articulação com as universidades que eram as suas “instituições de acolhimento”. Pagavam o pessoal, suportavam custos gerais, mas os centros geriam-se feudalmente à margem – ou até em conflito – da estrutura hierárquica da universidade. Chegavam a abrir conta bancária e emitir meios de pagamento sem terem personalidade jurídica e comprometendo legalmente o dirigente da unidade universitária. 

Isto foi invenção de Mariano Gago, então presidente da JNICT (precursora da FCT) e director de um dos centros incluídos neste esquema. Seria intolerável em qualquer universidade de qualidade, com grande sentido da coerência institucional. Até tem efeitos práticos, ao confundir a situação da investigação universitária para efeitos dos tão gabados rankings, coisa essencial na nossa feira das vaidades.

Por isto, algumas universidades estão a exigir aos seus docentes que só se possam filiar, em princípio, em centros da própria universidade. A meu ver, é inteiramente legítimo. No entanto, não me surpreende que isto desperte a oposição dos mandarins da investigação, infelizmente apoiados pelos sindicatos, com argumentos esfarrapados tais como a garantia da flexibilidade de constituição de equipas ou a obtenção de massas críticas ou de sinergias, ou o impacto internacional. Blá-blá, nada objectivado, modismos de língua de pau em que não apanham um investigador com muitos anos de ofício. Não tenho tempo nem espaço, agora, para rebater, o que seria fácil. O que realmente não se quer é a obediência à disciplina e controlo da transparência de gestão imposta às entidades públicas, como as universidades.

De tudo isto falei há pouco tempo, mas ocorre agora um dado novo sobre a investigação universitária, como veremos adiante. É indiscutível que os professores devem ter bom currículo científico, mas é obrigatório que a sua actividade de investigação seja praticada dentro da universidade ou podem adquirir esse currículo em outras instituições de investigação?

É uma questão já com algum tempo, a das universidades de ensino (teaching universities), com professores na segunda situação e contra o velho paradigma da universidade humboldtiana (com actividade própria de investigação, relevante). Então, não seria indiscutível que as universidades obrigassem os seus professores a pertencerem exclusivamente aos seus próprios centros.

Há muitos exemplos de universidades de ensino nos EUA, mas a mais conhecida é a Universidade Estadual da Califórnia (não a Universidade da Califórnia). É uma enorme universidade, com um corpo docente altamente qualificado, mas tem uma característica essencial: dá muito mais atenção à formação pré-graduada do que à graduada (mestrado e doutoramento). Reconhece-se que a formação graduada exige uma prática de investigação no contexto e em situação real, com total disponibilidade dos estudantes e dos professores, pouco compatível com a sua partilha entre a docência na universidade e a investigação em entidades externas.

Em Portugal, até recentemente, a perspectiva era a de valorizar a investigação intra-muros, praticada por professores profissionalizados, em regra em regime de dedicação exclusiva. Isto causava problemas às universidades privadas, com reduzido corpo docente em plena profissionalização e sem recursos para o suporte financeiro do funcionamento de base dos centros de investigação. Mesmo assim, tentavam apresentar centros à FCT, principalmente porque isso era essencial para a acreditação de novos cursos de mestrado e de doutoramento, segundo o decreto dos graus (DL 74/2006).

O DL 74/2006 impunha que as instituições “desenvolvam actividade reconhecida de formação e investigação ou de desenvolvimento de natureza profissional de alto nível”. Na prática, a A3ES (a agência de avaliação) sempre considerou isto como exigindo a existência de centros próprios com avaliação mínima pela FCT.

O DL 115/2013 altera significativamente essa disposição, introduzindo uma válvula de escape que sublinho: “desenvolvam atividade reconhecida de formação e de investigação ou de desenvolvimento de natureza profissional de alto nível, por si ou através da sua participação ou colaboração, ou dos seus docentes e investigadores, em instituições científicas externas, com publicações ou produção científica relevantes”.

Pode-se supor que a A3ES tenha de flexibilizar o rigor que tem tido, permitido pela legislação anterior. Não é questão menor, porque a acreditação de cursos de doutoramento tem grandes efeitos legais, até para a própria sobrevivência das universidades, que são obrigadas a facultar pelo menos seis cursos de mestrado e três de doutoramento, em áreas diferentes (Lei 62/2007). O DL 115/2013, aliviando a exigência de investigação intra-muros, vem claramente facilitar isto e sem que tenha havido um debate sério sobre o modelo universitário, a saber se se permite ou não universidades de ensino. Eu até concordo, em princípio, mas com  muitas cautelas.

Estranho não ver isto discutido, bem como o papel dos centros de investigação no contexto universitário, público e privado, tanto mais que vai começar dentro de poucos dias um novo processo de registo e avaliação de centros.

Realidades e símbolos em política

Por toda a parte em que se degrada a democracia, como em Portugal, cresce o populismo. O termo é de definição complexa, mas vou entendê-lo agora, com algum esquematismo, como o populismo exemplificado por experiências latino-americanas, tipicamente o peronismo. Em primeiro lugar, atitude de desconfiança em relação à democracia institucional, responsabilizando principalmente os políticos (com tendência para “todos os políticos), como carreiristas, medíocres, porventura corruptos.

Acresce a emergência de um caudilho que pode nem dar, imediatamente, a imagem de ditador. Pode ser um velho professor de finanças, com antigas responsabilidades governativas que agora se esquecem, e a massacrar, via televisão, com a mensagem anti-políticos. Finalmente, propostas demagógicas, ou por não exequíveis ou, mais frequentemente, por não terem significado objectivo ou importância real, por serem, como se costuma dizer, amendoins. 

À primeira vista, um bom exemplo seria o corte de 15% nas subvenções vitalícias pagas aos políticos, como noticia o Público. Vai cair bem, mas, depois da extinção dessas subvenções pelo governo Sócrates, em 2005, o universo atingido é residual, de cerca de 400 pessoas, correspondendo a uma despesa de cerca de 9 milhões de euros e sendo que, assim, o corte representa cerca de 1,35 milhões de euros.

Quando se fala tanto do compromisso do governo face à troika de reduzir o défice em 4000 milhões de euros, quando a anunciada redução das pensões de sobrevivência significará uma redução de despesa de cerca de 100 milhões de euros, quando nada se cortou ainda nas PPP, nem sequer nos consumos intermédios da administração pública (vamos discutir as despesas de representação e os cartões de crédito? ou julgam que são só os deputados?) este pouco mais de um milhão de euros é mesmo amendoim, tal como as grandes mordomias que são, por exemplo, um computador em cada posto no plenário para, como dizem as pessoas, os deputados jogarem às cartas ou uma remuneração de titular de órgão de soberania que, se não me engano, é inferior à de um director geral.

A aceitação popular de medidas como esta é grande e é legítimo pensar-se que o governo só a decide, sabendo que ela não tem significado real, por demagogia e cumplicidade com esse populismo. No entanto, a questão não se esgota nestes dois aspectos – significado real (económico) e impacto populista. Há também outro plano importante, o simbólico, com grande impacto na confiança das pessoas na ética republicana e nos valores da democracia. É considerando este plano, embora denunciando o oportunismo demagógico do governo, que concordo com esta decisão.