O caso da greve na Autoeuropa já está em esquecimento, mas ainda justifica algumas observações. Veio desmontar o mito do paraíso laboral, da concertação, da atuação realista dos órgãos dos trabalhadores, à Hartz 4 alemão. Sabendo-se que a comissão de trabalhadores tem tido uma forte influência do BE, foi curioso ver as reações de membros destacados do partido.
A primeira reação de que tive notícia foi da própria Catarina Martins (Público, 29 de agosto). Via com “enorme apreensão, é uma das maiores empresas portuguesas, uma das maiores exportadoras, julgo que tem existido alguma inflexibilidade nestas negociações, preocupa que a administração também diga que agora não quer negociar”.
A menos que se trate de falha de expressão, parece entender-se que a flexibilidade é bilateral, senão não faria sentido o “também”. E continua: “Autoeuropa tem sido um exemplo desse diálogo e tem sido um exemplo do respeito pelos seus trabalhadores, que é bom que se mantenha”. Considera também que o conflito laboral resultará de "dores de crescimento" da própria empresa automóvel de Palmela. Estranha forma de um dirigente de esquerda encarar um conflito laboral.
Já outros membros destacados do BE alinham por outra perspetiva: Francisco Louçã (Público, 1 de setembro), Joana Mortágua (ionline, 30 de agosto) e josé Soeiro (Expresso, 1 de setembro).
Com tonalidades diferentes, concordam, no essencial, com a greve, no quadro geral indiscutível da justeza da lutas dos trabalhadores, que Soeiro diz que que abrem sempre caminhos, sendo sacrifício do presente em nome do futuro. Diz também, [JVC, sem enorme apreensão], que a greve “é uma componente normal de qualquer processo negocial”.
Também Joana Mortágua considera normal e sem preocupação a greve no quadro da negociação, e exemplo da democracia de empresa exercida pelos trabalhadores (decisão em assembleia muito participada), aludindo aos lamentos dos que anteveem grandes desgraças no futuro da Autoeuropa.
Francisco Louçã, notando também que é caso excepcional que numa empresa os trabalhadores tomem as decisões diretamente, considera que há uma “maré ideológica que procura punir os trabalhadores por terem usado o legítimo e necessário direito de greve”.
É certo que pode haver greves decididas como provocação política (tivemos casos a seguir ao 25 de abril) ou greves inábeis por se virarem contra os próprios trabalhadores. Mas são exceções e não consigo ouvir gente de esquerda a ver uma greve com “enorme apreensão”.
Lembrei visões diferentes de membros notórios do BE. Em princípio, isto até pode ser um bom sinal de pluralismo e liberdade de opinião, pontual, dentro de um partido. No entanto, um dos membros é também a coordenadora do partido. Julgo que o seu dever é não emitir opiniões pessoais e, tanto quanto possível, refletir uma posição consensual ou majoritária no partido, ou deixar claro que é um assunto em que ainda não se formou uma opinião partidária sólida.
Posso estar enganado, mas não me parece que tenha sido o que Catarina Martins fez. Ainda por cima, não se livra da suspeita, admissível, de que a move um interesse estritamente partidário, de apoio a uma comissão de trabalhadores da sua simpatia, derrotada pela grande maioria dos trabalhadores da empresa. Falta de traquejo político? Ainda lhe falta bastante experiência. Ou são, virando para ela, as tais "dores de crescimento". Falta-lhe João Semedo.
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O caso suscita também uma discussão mais geral, sobre a filosofia da relação laboral e sobre o modelo de organização e representação dos trabalhadores. Sobre a primeira, nada direi, tendo como convicção forte que a concertação é um logro.
A questão sindicatos versus comissões de trabalhadores está a ser vista, em minha opinião, de forma reducionista. Não me parece que sejam antagónicas e, no período pós-revolução, coexistiram sindicatos e muitas comissões de trabalhadores, embora tenha havido casos conceituais, principalmente quando algumas comissões de trabalhadores eram controladas antidemocraticamente por grupos provocadores (MRPP e alguns esquerdistas).
A principal virtude propagandeada da organização por empresa, a democraticidade interna, não é seu exclusivo. No caso da Autoeuropa, é evidentemente louvável que a recusa do acordo proposto pela CT tenha sido votada por esmagadora maioria de uma assembleia que, já por si, teve a participação de grande maioria dos trabalhadores. Mas nada impede que os sindicatos, no caso de um conflito circunscrito a uma empresa, façam o mesmo. E deviam fazê-lo!
É inegável que os sindicatos estão vocacionados para uma ação transversal, abrangendo o universo das empresas de um ramo de atividade. Têm maior compreensão da realidade geral, para além de cada empresa individual e são os únicos em condições, legais e funcionais para celebrar contratos coletivos e declarar greve. Por isto, algum patronato (esclarecido, exceção ao típico patronato bronco, arrogante e pouco instruído) prefere claramente negociar ou fingir que negoceia com comissões de trabalhadores, porventura melhor conhecendo a situação da empresa, mas mais fracas e limitadas legalmente – em particular em relação à declaração de greve – e, como se tem visto na Autoeuropa, acabando mais frequentemente por atuar numa filosofia de concertação à alemã (ou não fosse numa empresa da Volkswagen).
O ideal é uma colaboração estreita entre os sindicatos e as comissões de trabalhadores, potencializando o que de melhor têm uns e outras. Claro que também há os delegados sindicais, mas estes podem ter objetivos mais limitados (recrutamento, cobrança de quotas, difusão da informação, etc.).
Finalmente, a questão do controlo partidário. Ele é conhecido, aceite e validado pelo voto nas eleições, seja para a direção do sindicato seja para a comissão de trabalhadores. Seria um insulto aos trabalhadores pensar que eles são tão ignorantes e incapazes de pensar que votem sem saber quem é quem, partidariamente. E porque é só a CGTP um instrumento do PCP, para a opinião dominante? Não foi muito mais dependente dos partidos, logo na sua criação, a UGT? A diferença é que esta, resultando de um negócio entre o PS e o PSD, sofre os reflexos da dialética de convergência-divergência no bloco central, ou do pântano (o “marais”, na velha experiência política francesa). Com isto, a ligação preferencial da UGT passou a ser não partidária, mas diretamente com o capital. Assim é mais direto e mais transparente, mas teria sido o mesmo, indiretamente, por via da influência do PS e do PSD.
No caso da Autoeuropa, é conhecida a forte ligação da sua comissão de trabalhadores ao BE e o seu dirigente emblemático, António Chora, nunca o iludiu, assim como é público que Arménio Carlos é membro do comité central do PCP. Nada disto me aflige. O que estranharia é que um partido de esquerda não pretendesse influenciar, com a sua perspetiva política e ideológica, um movimento social tão crucial como é o sindical e laboral.
Coisa diferente é que isto possa influenciar a tomada de decisão política de um partido em relação ao valor de uma decisão democrática de milhares de trabalhadores e no sentido de uma luta justa. Com isto, voltei ao início desta entrada no blogue.