Como em 2009, com a gripe H1N1, volta a acordar o JVC virologista, para alguma possível ação de informação cientificamente fundamentada e porque só o rigor da informação evita o temor irracional e o sensacionalismo, e permite avaliar criticamente as opções políticas.
A hepatite A está em foco, entre nós e em outros países europeus, ao arrepio do que é a situação habitual em relação à doença.
É a forma mais antiga e menos grave da doença, causada por um vírus diferente dos que provocam as mais faladas e temidas hepatite B ou C (as restantes são muito raras). O vírus da hepatite A é um dos vírus entéricos, quer dizer, adquire-se por via oral (água, alimentos, dedos contaminados) e difunde-se pelas fezes e sua contaminação dos sistemas de água.
Este surto revela outras formas de infeção dentro deste quadro, como doença sexualmente transmitida. O surto atual abrange quase exclusivamente “homens que têm sexo com homens” (HSH), uma designação que abrange homossexuais e bissexuais masculinos. De acordo com a características de transmissão do vírus, nem todas as relações sexuais são perigosas; só as que envolvem contato entre boca e ânus, diretamente, ou por intermédio de contacto oral-peniano após sexo anal. Isto é agravado quando há práticas de múltiplos parceiros em tempo muito curto e sem condições de higiene, e quando a frequência de atos é aumentada artificialmente pelo uso de drogas (“chemsex”).
A doença é completamente prevenível com uma vacina, administrada por duas vezes, com intervalo geralmente entre 6 e 12 meses. A administração de uma única dose só protege durante tempo mais curto, bem como a vacinação do adulto com uma vacina infantil, menos potente.
Nos países desenvolvidos, com bom saneamento, a vacina não é uma prioridade. Na prática, os principais utilizadores são os viajantes, muitos milhares (o atual surto entre HSH só atingiu cerca de duas centenas) que vão para áreas endémicas de hepatite A. E cada vez mais se viaja, e não só por lazer. Infelizmente, continuamos a ter muitos emigrantes trabalhadores, para regimes tropicais.
O constrangimento fundamental de momento é que, na situação habitual que descrevi, o stock de vacinas é quase sempre escasso, havendo mesmo períodos em que nem sequer são suficientes para os viajantes. O mercado farmacêutico é como qualquer outro; não é lucrativo prevenir crises com produções aumentadas. Mercado é mercado, mesmo na saúde! Mas diga-se isto com franqueza.
Assim, a Direção Geral de Saúde, que emitiu normas vinculativas para o SNS sobre este problema, defronta-se fundamentalmente com o problema de fazer omeletes sem ovos, embora o disfarce com aparentes critérios científicos, claro que cheios de buracos.
A questão é, em boa parte, política e de “gestão” de lóbis e opinião pública. Por um lado, há um surto que com altíssima probabilidade não alastrará para fora da comunidade em que apareceu; que pode ser controlado se essa comunidade, a ser esclarecida, evitar os comportamentos de risco (não está obviamente em causa a prática sexual de HSH, uma orientação que é direito individual, mas sim as condições em que é feita).
À primeira vista, não é um problema grave de saúde pública, porque limitado por natureza a um número pequeno de casos e sem previsão de expansão. Mas tem aspetos políticos relevantes, pelo poder dos grupos envolvidos e pela sensibilidade da opinião pública ao que se passa com os direitos das minorias.
Também a situação dos viajantes é de nível individual e não constitui um risco de saúde pública, na medida em que um viajante que se infete em viagem não transmitirá a doença, a não ser, eventualmente, a contactos muito próximos.
Note-se, portanto, que estamos a lidar principalmente com uma questão de avaliação de riscos individuais, coisa a que um médico não pode fugir, mas que é muito distinta de problemas de saúde pública. Insisto. Em minha opinião! o surto entre HSH não é um problema de saúde pública.
O que são afinal, em resumo, as normas da DGS? Insisto em que o seu evidente objetivo é apresentar critérios “científicos” para o racionamento de uma vacina muito insuficientemente presente no mercado.
1. É dada clara prioridade à vacinação dos HSH, mesmo que não envolvidos em práticas de risco, e mediante simples declaração (como poderia ser de outro modo?). Portanto, e há quem já manifeste essa intenção, um viajante que queira proteção pode perfeitamente dirigir-se à unidade de vacinação e intitular-se HSH.
2. A vacina passa a ser administrada com grande centralismo, em unidades controladas pela DGS, quando, até agora, se vendia nas farmácias e era prescrita por qualquer médico, principalmente nas consultas de medicina das viagens.
3. Estes médicos, que prescreviam responsavelmente a vacina quando o achavam necessário, precisam agora de pedir autorização à DGS, fornecendo uma lista muito extensa de dados pessoais do viajante, quase impraticável pela sua morosidade. na grande maioria dos ítens, não se percebe a sua relevaria para uma decisão criteriosa por parte da DGS.
4. É determinada a vacinação com uma só dose ou com vacinas pediátricas (indiscutivelmente insuficientes, apenas para “tapar o buraco” a curto prazo e voltando ao ponto zero daqui a um ano), o que é uma espécie de “quem não tem cão caça com gato”.
5. Só a título excepcional, vacinação de viajantes para zonas endémicas. Como disse, são obscuros os critérios para essa concessão de excecionalidade, tantas são as informações que o médico é obrigado a fornecer à DGS. Por exemplo, o que interessa o concelho de residência em Portugal do viajante?.
A DGS promete dar resposta aos pedidos de autorização em 24 horas. Certamente não faz ideia do número de consultas de viajante em cada dia, pelo país fora. Contas por alto, parece-me que milhares.
A consciência pública da importância da medicina das viagens é dado evidente para qualquer médico envolvido. Estabelece-se normalmente (tenho um testemunho indireto diário) uma grande relação de confiança, que chega a conversas violadoras da privacidade. Como vai ser afetada essa confiança se o médico, criteriosamente e sem considerações políticas, aconselha a vacinação e a DGS, invocando razões de norma científica (sem fundamento), a recusa?
Não é ético, nem transparente, nem de boa prática política, que um organismo público com tal relevância, tome decisões sem fundamentação (coisa proibida, em princípio, pelo Código de Procedimento Administrativo).
No caso dos viajantes, já se conhecem recusas que não trazem fundamentação. Creio que ela só deveria ser uma: o grau de endemicidade da hepatite A no país de destino. A OMS tem essa classificação. Mas é preciso que a DGS esclareça se é o critério que está a usar. Em princípio, parece que não ou defeituosamente. tenho o testemunho de médicos que viram recusadas propostas em relação a viajantes para zonas altamente infetadas.
Também é estranho que não se tenha posto a hipótese de substituir, em emergência, a vacina contra a hepatite A pela vacina A+B (Twinrix), amplamente disponível. É certo que seria um custo acrescido, e que seria despiciendo para quase toda a gente, vacinada contra a hepatite B, mas não haveria quaisquer riscos. Ninguém se lembrou disto na DGS?
Esta questão das normas da DGS suscita um problema ético importante, o da responsabilidade do doente/sujeito de saúde perante os outros e como isso deve pesar na decisão. É uma questão muito importante: até que ponto deve ser responsabilizado, por exemplo quanto aos custos de saúde, o indivíduo que conscientemente e por negligência se coloca em risco?
Há o caso dos fumadores, que alguns acham que não devem ter benefícios no tratamento do cancro do pulmão. O mesmo se pode dizer de obesos e diabéticos sem cuidados, em relação às doenças cardio-vasculares. Devem ficar como exceções ao direito à saúde? Claro que não concordo. É muito diferente, porque se trata de uma correlação e não de uma causalidade. Muitos fumadores não terão cancro, muitos não fumadores têm, há fumadores (um familiar meu muito próximo) que têm variedades menos frequentes de cancro do pulmão não associado ao tabaco. Depois, porquê só o cancro do pulmão? Há cada vez mais evidência da associação a outros cancros: bexiga, pâncreas, próstata, etc.
Neste caso da hepatite A e dos comportamentos sexuais excessivos e de risco, é diferente. Os viajantes podem ter alguma culpa em desleixos alimentares, por exemplo, mas é menor. Já as pessoas envolvidas como neste surto em procedimentos de que têm perfeita consciência, muito minoritárias em relação à comunidade homossexual e bissexual masculina, sabem muito bem o que estão a fazer e a fazer pesar à saúde pública. Não vejo razão para não se resistir às pressões políticas e mediáticas. E espero que não se veja nisto homofobia.
NOTA – Diz-se com bom fundamento que a eminência parda desta política da DGS é um médico dito especialista em medicina das viagens, apesar de habilitado com um curso geral e sem experiência comprovada para ser autoridade junto da DGS. O aspeto mais notório da prática desse médico é fazer consultas pela net, prática condenada pela Ordem. Mal vai a DGS!
Desde quando é que esse vírus existe? A ciência e as farmacêuticas andam a mentir-nos.
ResponderEliminarCertamente desde há milhares de anos. Quanto ao resto, é a sua opinião, mas, quanto à ciência, não a considero respeitável. Quanto às farmacêuticas, em muitos casos, é diferente.
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