segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

“A Miséria da Política” (passe o exagero)

A actividade política portuguesa, a todos os níveis – institucional, partidária, social – está débil. Débil em intensidade e sobretudo em qualidade. A produção teórica é escassa e superficial, imperando a auto-censura dos autores que dão por certo que ninguém lhes lê um texto de mais do que uma página A4. Exceptua-se a intervenção crítica e informativa no domínio económico, mas nem sempre equilibrada por uma igualmente rigorosa e aprofundada análise política. 
Aliás, escasseiam os analistas políticos de qualidade. A presença na televisão é predominantemente de economistas ou de políticos partidários reformados. Já poucos têm a dizer alguma coisa interessante, muito menos de radical. “D'Alema di' una cosa di sinistra, di' una cosa anche non di sinistra, di civilità… D'Alema di' una cosa, di' qualcosa! Reagisci!” (Nanni Moretti, “Aprile”).
Pior ainda é o trabalho teórico dos partidos. A menos que se confunda com isso simples artigos de opinião ou propostas de acção política concreta, PS, PSD e CDS têm trabalho teórico nulo, o do BE é escasso e o do PCP desgasta-se em incontáveis e indigeríveis comunicados, todos a usar um estilo, linguagem e esquema de raciocínio a quererem convencer que ainda há quem cultive o marxismo-leninismo (o pior é quando os mais arrebatados descambam para o estalinismo) 
Na blogosfera, as “análises” são frequentemente ocas e limitam-se a amplificar em “sound bites” posições elementares, geralmente de indignação emotiva. Quando provêm de grupos proclamado como de debate independente, não é difícil, no Facebook ou nos blogues, fazer corresponder o seu discurso estereotipado ao de partidos políticos, por vezes até em versão mais extrema e reducionista de cartilha. Basta ver que, em redor dessas intervenções esvoaça sempre o mesmo enxame de implacáveis defensores da ortodoxia.
A ação política dos partidos, em oposição, é muito incipiente no uso das novas tecnologias e é de suspeitar que o alcance dos seus sítios, pesados e à imagem dos seus órgãos impressos, fique muito aquém dos seus principais instrumentos de construção de imagem e de respeitabilidade política: a acção institucional (legislativa, autárquica e, distantemente, europeia) e a influência sindical. 
Mas, porque se está a falar de linguagem e comunicação, a situação é desgraçada. Fala-se em família, para os convertidos, repetem-se chavões, não se captam novos públicos. Segundo a comunicação social, isto passa-se principalmente nos “partidos de cassete”. Afinal, estes só diferem, de forma geral, é por não disfarçarem a sua cassete. Todos têm a sua cassete, sem excepção, com a diferença de isso não ser aparente ao homem comum quando a comunicação social a esconde debaixo da intriga partidária ou do seu gosto (e proveito) de pasquim.
A este nível, a política está envelhecida e desacreditada. As pessoas sofrem, estão indignadas, têm protestado mas recuam por não verem consequências. É preciso alimentar e organizar uma uma atitude de protesto, mas, a prazo de uma legislatura ou desta fase do ciclo económico europeu, não vai ser possível reunir as condições objectivas e subjectivas para isso, nomeadamente a constituição de um “partido novo” realmente alternativo (o que, por isso mesmo, não é o mesmo que um partido novo). 
Talvez mais imperioso nesta fase, até uma alternativa partidária credível, talvez obrigatoriamente num novo contexto do sistema partidário e de expressão da democracia, é enquadrar e não deixar desencaminhar-se a desafecção em relação à política, ao sistema partidário. Note-se que enquanto esta desafectação ficar pelo aumento da abstenção e dos votos brancos e nulos ao menos pode haver razões para que muita gente reflicta. (Nota: sobre a dualidade descontentamento-desafecção, ver o muito bom artigo em El País de José Ramón Montero e Mariano Torcal Oriente, professores universitários espanhóis, “No es el descontento, es la desafección”).
Partidos novos estão a aparecer todos os dias, uns obviamente condenados ao insucesso, outros como arranjos e rearranjos espúrios de grupos e formações sem relações consistentes entre si (lembram-se das críticas de Daniel Oliveira a Rui Tavares e ao LIVRE?). Tudo se esquece quando há uma boleia legal tão ingénua como a do LIVRE. Programas vagos, e embalados em personalismos, devaneios e optimismo exagerado por uso de números que ainda ninguém sabe analizar, como os de subscritores de petições ou de “gosto” no Facebook. Repare-se, por exemplo, que o Tempo de Avançar vai com 6700 “gostos” mas só 3700 subscritores, sempre menos do que os 7500 que, no mínimo, são subscritores do LIVRE.
Iniciativas da sociedade civil, movimentos sociais e culturais, associações comunitárias, etc., poderiam ter um papel importante na luta contra a desafecção da política e, em unidade com os partidos e outros corpos sociais, ir desbravando o terreno para uma absolutamente necessária reconversão do sistema político. Não se perca tempo em exaustivas (e muitas vezes incorrectas) comparações com Syriza e Podemos. Até com a Esquerda Unida não temos termos de comparação. Não há situações irrepetíveis (a este nível do processo histórico) e devemos é fazer o nosso caminho, por vias bem próprias.
Também neste domínio o panorama também não é animador. Temos movimentos respeitáveis e dinamizados por pessoas dedicadas, como o Congresso Democrático das Alternativas ou a Iniciativa Cidadã da Dívida. Nem sempre a situação é clara, embora não se conteste a liberdade de pertença simultânea a diferentes movimentos ou a um partido e um ou movimento, desde que as respectivas normas o permitam e que os demais membros saibam. Por exemplo, é flagrante que há relações de sobreposição entre membros destacados do CDA, do manifesto 3D, no Fórum Manifesto e, agora, tudo junto, no Tempo de Avançar. Têm sido feitas acusações de constituição fechada e clubística das direcções desses movimentos, ficando aberto o campo envenenado da suspeita de controlo por partidos. As pessoas são sempre muito desconfiadas em relação a coisas destas. Gato escaldado…
(NOTA – Pela enésima vez, sustentando-me na minha qualidade de inscrito no Congresso Democrático das Alternativas e tendo em conta a confusão que referi atrás, pergunto: quem são os membros do “núcleo duro” de direcção do CDA? Não deveriam prestar contas e serem regularmente renovados, como em qualquer associação? Não deveriam identificar-se como dirigentes do CDA quando se envolvem na criação de um partido?)
Mas mais importante é a essência e forma das suas actividades. Declarações políticas sobre questões de momento mas facilmente adivinháveis (e ninguém vai ler o que já conhece e onde não há surpresa). Debates que quase fazem lembrar as velhinhas sessões de esclarecimento: quatro oradores na mesa, tanto quanto possível em arranjo tendencial, a dizerem coisas mais do que sabidas por poucas centenas de assistentes sessentões ou setentões que, no fim, cumprem o ritual de fazerem umas perguntas cujas respostas também eles já conhecem.
Se há uma diferença determinante entre Portugal e Espanha, e que em muito impede um Podemos português, é que ele se constitui com grande habilidade política articulando duas componentes, uma das quais a qualidade académica e impacto mediático de um grupo de jovens professores de ciências políticas que resolveram transformar a sua teoria em acção. 
Anote-se que falar de qualidade académica e teórica do grupo de La Tuerka, Iglesias e companheiros, nem lembra falar do “comentarismo” (nem sequer é análise, como se dizia). Em tristes casos, felizmente nem todos, são papagaios de um sistema de comunicação social que se tem de apresentar plural mas que, controlando e comprando como for necessário a imagem distorcida desse pluralismo. Mesmo tecnicamente, em conteúdo, formato, impacto mediático, pouco se compara às tertúlias televisivas espanholas. Pouco mais do que a Quadratura do Círculo e a missa marciana, estafadas, o Prós e Contras e o Expresso da Meia Noite. Pior ainda é o amadorismo e pouca seriedade de muitas figuras populares que confundem dizer umas graçolas com trabalho político.
Quanto se dizia atrás que o sucesso do Podemos tinha duas bases, a segunda era a persistência da actividade, a nível de colectivos inorgânicos, das sequelas do 15-M, o movimento dos acampados ou dos indignados. Em Portugal, falha também a relação entre o impacto de acções de rua – que, obviamente, não podem acontecer todos os dias – e outros tipos de acção política. Assim, a grande manifestação de 12 de Março de 2011 deu origem a um movimento, M12M, que teve um “site” já extinto e que hoje se limita a uma página de Facebook muito pouco animada, assim como um blogue(sítio sem actualização desde 2013. 
Da mesma forma, o Que se Lixe a Troika, esquecido que está o meio milhão de pessoas que pôs na rua (mas reduzido para talvez um décimo seis meses depois), tem um “site” também expirado, um blogue com última actualização em Outubro de 2014 e uma página de Facebook pouco animada, praticamente sem comentários e duas ou três dezenas de “gosto” por “post”. 
Os novos tipos de debate político de movimentos como o 15-M, potencializados pela interacção rápida em rede, podem parecer ingénuos e ineficazes: convocação um pouco ad hoc, agendas imprecisas, condução flexível dos trabalhos. Em vernáculo, uma bagunça, disfarçada com designações aliciantes, como “assembleias cidadãs auto-gestionadas”.
Em resumo, porventura pessimista, mas creio que lúcido.
Há muita coisa gasta, decrépita, na vida política convencional, partidária. Há uma atitude crítica em relação à política que já leva à desafecção. O nível teórico e prática dos estudos políticos é fraco e a análise/comentário entregue, na comunicação social, a amadores sem outras qualificações que não sejam a sua popularidade (vá lá, ainda não temos Beppe Grilo). Novas experiências políticas, de partidos ou movimentos, são suspeitas de incongruência, a justificar talvez reacções de descrença de velhos do Restelo. 
Há remédio? Tem de haver, mesmo que não seja importado, mesmo que tenhamos que esperar revolucionariamente (não é um paradoxo!) pelas condições necessárias. Entretanto, imaginação, precisa-se com urgência.
Declaração de interesses – Pode parecer que sou simpatizante do Podemos. De facto, tenho “sentimentos mistos”. É discussão longa, fica para outra entrada.

3 comentários:

  1. Quando um texto "blogosférico", se inicia com as ambições de cátedra com que este começou, geram-se naturais expectativas quanto à sua densidade. É a política portanto que está débil. E essa debilidade, que assenta em muitas razões, conhece uma que é a mais tormentosa e inquietante: é que tantas formações esperançosas, capazes de fornecerem finalmente uma esquerda de qualidade, não dogmática, livre da ortodoxia e da inflexibilidade ideológica, tarda em avançar, em ganhar espaço, em nos fzer a justiça que merecemos. E dos partidos (essa perversidade, que mais não consitui do que uma entorse na contemporaneidade mundana, aquela que convem a quem prima por cultivar a elevação espitirual e frequentar os melhores círculos do pensamento e da vida) - amalgamados como convém - dizem-se uma generalidades abstractas, o que sempre é mais fácil do que, partindo de factos concretos e das posições de cada um em relação a esses mesmo factos, apreciar criticamente a respectiva substância. Na verdade - desculpe-me a franqueza - talvez fosse melhor ter escrito desta vez sobre futebol. É que aí é tudo mais fácil - gosto destes e não gosto daqueles - sem explicações catedráticas, que, bem vistas as coisas, têm tantos nós e enredos como os das nossas próprias presunções e preconceitos.
    Cordiais saudações.

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    1. Francisco, não me parece que esteja a ser justo. Pelo menos não inteiramente. Se se der ao trabalho de procurar neste blogue "novo partido" encontrará muitos e aprofundados textos, principalmente centrados na ideia da alternatividade. Neste, dei o assunto por temporariamente arrumado e procurei abordar outros domínios da reflexão e acção políticas. Mal ou bem, mas como posso e sem cedências ao discurso fácil.

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  2. Caro João Vasconcelos-Costa, pela leitura que fiz do seu texto há um aspecto que me parece óbvio. Não leve a mal mas acho que não tem o LIVRE e à actual Tempo de Avançar (TdA), devidamente bem estudados. Por exemplo, o apelo urgente que faz no final do texto à imaginação colide com a ausência de uma qualquer referência no texto às primárias abertas do LIVRE e da TdA, aos métodos deliberativos que aplicam na elaboração de todos os documentos produzidos (caramba, até foi possível assistir em directo pela internet às votações das emendas enviadas) ou à própria natureza da TdA, que acaba por ser inovadora no panorama nacional - uma coligação que agrega um partido, movimentos e independentes. Afinal a imaginação a que apela já está a ser testada e agitada pelo LIVRE há um ano para cá. Mesmo que as pessoas - bloguistas incluídos - andem demasiado distraídos ou com pouca paciência para a estudar e acabem por a adjectivar com expressões como "boleia ingénua". E eu aproveito para fundamentar este meu argumento noutro parágrafo do seu texto. O João Vasconcelos-Costa afirma: "Iniciativas da sociedade civil, movimentos sociais e culturais, associações comunitárias, etc., poderiam ter um papel importante na luta contra a desafecção da política e, em unidade com os partidos e outros corpos sociais, ir desbravando o terreno para uma absolutamente necessária reconversão do sistema político." Esta frase documenta uma vez mais uma escassez de estudo cuidado do que se está a passar em Portugal. Não estará a experiência da sociedade civil organizada, em Portugal, a entrar para a arena da política? Procure as listas das direcções nacionais da última década das maiores organizações não-governamentais em Portugal. Leia os nomes. Analise depois as listas de candidatos nas últimas autárquicas e Europeias em partidos sobretudo da esquerda (LIVRE já incluído no caso das Europeias) e compare. Ou pegue já na lista de subscritores e do Conselho da TdA, por exemplo, que são públicos. Há movimentação mas é preciso querer conhecer as pessoas - os mais activos da sociedade civil organizada em Portugal não são propriamente famosos. Se nos deixamos distraír apenas pelos interlocutores que os media seleccionam para entrevistar regularmente, escapa-nos facilmente este trabalho de bastidores que - reconheço - antes era difícil de averiguar dentro dos partidos tradicionais, mas agora é mais fácil de medir nestes projectos recentes precisamente por estes tornarem tudo muito visível e público.

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