sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Dogmatismo e sectarismo (I)

Por via da página de Facebook da Joana Lopes, dei por um “post”, também no Facebook, de Miguel Tiago, no dia das eleições gregas:
“Se, como parece, a burguesia grega tiver de facto reagrupado no SYPIZA, lá terá o capitalismo mais um balão de oxigénio, quando só mesmo a sua morte nos libertaria o caminho.”
Miguel Tiago é um jovem deputado do PCP e não é a primeira vez que escreve coisas polémicas. Por exemplo, sobre a – por ele – alegada ausência de provas da repressão na praça Tiananmen.
É compreensível que Miguel Tiago e o PCP não tenham felicitado a Syriza, com quem não têm afinidades (ou melhor, têm a afinidade de um inimigo global comum) e nem se pondo, em países diferentes, a convenção mais ou menos hipócrita de saudações entre vencedores e vencidos.
É compreensível, embora um pouco risível, que o PCP felicite o seu homólogo, apesar de numa ocasião em que o Partido Comunista Grego (KKE) pouco tinha para festejar e estava obscurecido pela importância nacional e internacional da vitória da Syriza. De facto, a evolução eleitoral do KKE mostra estagnação, apesar de algumas flutuações, entre 5,9% em 2004 (eleições depois da cisão na Synaspismos) e 5,5% agora. É certo que ganhou 1%, mas os 4,5% de Junho de 2012 tinham sido uma queda brutal dos 8,5% de um mês antes, provavelmente a favor da Syriza.
O que já não é aceitável é que Miguel Tiago resuma dogmaticamente àquele simples parágrafo, e com uma visão rudimentar da dialéctica, a situação complexa que culminou, por agora, nestas eleições. É uma posição esquerdista, de tudo ou nada, de negação da possibilidade de fases no caminho para o socialismo (coisa estranha num membro de um partido que há cerca de 50 anos adoptou o faseamento. Miguel Tiago leu o Rumo à Vitória?). Não se percebe também o que é o reagrupamento da burguesia na Syriza. Como eleitores? Como dirigentes? Como ideólogos ou membros do aparelho cultural do partido? É o extremo da fantasia, ou então toda a campanha feroz feita contra a Syria, no interior e no exterior, foi a mais genial encenação.
Eu tenho-me esforçado por estudar e reflectir sobre esta fase de mudança na vida política europeia (e no mundo), admitindo que o meu conhecimento é muito limitado, ao longe e sem compreender grego. Mas Miguel Tiago ainda fica pior, porque se limita a chavões anti-marxistas (num deputado pelo PCP?) bebidos à letra do homólogo grego. Isto não é pensamento racional, é mera fé.
Antes de prosseguir, uma nota histórica, que já escrevi há dias. Talvez ajude a situar este assunto. Ao contrário da generalidade dos antagonismos na esquerda europeia, que radicam na divisão entre partidos comunistas e sociais-democratas, na oposição e na adesão à I Grande Guerra, a oposição entre a Syriza e o KKE tem origem muito posterior, na invasão da Checoslováquia. A parte do KKE que se tinha exilado, na guerra civil de 1946 e na ditadura dos coronéis, apoiou a invasão e, a partir daí, como o PCP, estabeleceu relações ainda mais estreitas com a URSS. Outra parte, que adoptou a designação KKE-interior por ser constituída principalmente por militantes não exilados, condenou a invasão e aproximou-se dos partidos ditos eurocomunistas (italiano, francês, espanhol e outros menos importantes). Em 2004, ultrapassando esse antagonismo, ambos os partidos coligam-se no fim dos anos 80, mas logo após o colapso da URSS o KKE expulsa um grupo grande de militantes que punha em questão, retrospectivamente, o sistema soviético (e em que se inclui Tsipras e o seu antecessor, Alekos Alavanos). Esta ala permanece na coligação com o KKE-interior, a Synaspismos, que se alarga em 1991 a outras pequenas formações de esquerda e ecologistas. Em 2004, um novo alargamento origina outra coligação, a Syriza, posteriormente convertida em partido, por razões de legislação eleitoral.
Assim, é inconcebível que o Resistir.info, um sítio aparentemente ligado ao PCP, escreva que “os novos sociais-democratas, herdeiros do Pasok, venceram as eleições gregas”. Relacionar a Syriza e o Pasok é ignorância ou desonestidade.
É quase invariável que os acusadores da "Syriza social-democrata", como se vê na cadeia de comentários do referido “post” de Miguel Tiago, se limitem a uma só fonte, o KKE e, particularmente um artigo de Elisseos Vagenas, membro do comité central e responsável pela secção internacional: “SYRIZA: “the left reserve force” of capitalism”. É uma longa diatribe contra a Syriza e o Partido da Esquerda Europeia (partido que deixamos agora de lado), um encadeado de acusações não substanciadas e que por isso, para quem tenta analisar de fora, parecem simples agitprop. Tudo embrulhado num discurso redutor que não fica atrás do nível intelectual da cartilha estalinista ou brejneviana. 
De concreto, o apoio da Syriza aos movimentos de jovens na rua, a desviá-los do enquadramento de classe do movimento dos trabalhadores (Paris, 1968?) e a fomentar uma reacção populista que alimentou a Aurora Dourada. 
Também o incidente da apresentação da candidatura regional de um militante que, depois disso, proferiu um discurso antissemita (e cuja candidatura foi retirada pelo partido). 
Também o facto de a Syriza ter acolhido como militantes membros do Pasok desiludidos. Ainda a acusação da Syriza ao neoliberalismo como causa da crise, assim criando a ilusão de que pode haver um capitalismo bom e um capitalismo mau. 
Também a aceitação pela Syriza de que, mau grado a UE “estar a violar os seus princípios fundadores e objectivos”, continua a justificar-se a sua manutenção, em novos termos, enquanto que o KKE considera a UE como a “jaula do leão” que deve ser destruída. 
Também porque, ao definir como alvo principal a troika ou a Alemanha [JVC: não diz o governo alemão] e ao defender uma aliança dos povos do sul, esconde o seu apoio ao demais, a UE do capital e dos monopólios, e cria no povo ilusões sobre a luta no quadro europeu.
Ainda porque a Syriza só propõe o não pagamento da dívida odiosa, actualmente de 5%, afirmação estranha quando muito se tem repetido que o “haircut” proposto é de 50%.
Há mais, mas isto chega. Não será tudo isto a melhor propaganda que se pode fazer da Syriza?
Este tipo de argumentação também tem sido usado por outros partidos comunistas de “ala dura” ou correntes a eles ligadas. Veja-se o referido texto do Resistir.info: 
“O capital monopolista e financeiro europeu pode ficar tranquilo.  Como sempre, nas situações difíceis, a social-democracia há de lançar uma boia de salvação ao capital.  Os que se elegeram auto-denominam-se "radicais" e "de esquerda".  Mas que esquerda é essa que promete respeitinho para com os banqueiros credores, lealdade à NATO & à UE e recusa a soberania monetária?  É de esquerdas assim, como o Syriza e o Podemos espanhol, que o capital gosta.  Economistas brilhantes – como Yanis Varoufakis, autor do "Minotauro global" – participarão do governo Syriza.  Mas por muito brilhantes que sejam pouco poderão fazer pelo êxito de um governo que capitulou à partida, já no seu programa eleitoral. Registe-se a atitude de um partido sério como o KKE , que não faz nem nunca fez promessas demagógicas de coisas incompatíveis entre si.”
Da mesma forma, muito se disse da aliança com o partido Gregos Independentes, nacionalista e soberania, oposto à política da UE em relação à Grécia. Afinal, fora o KKE, era o único partido com quem o Syriza se podia aliar para o essencial da sua política, a económica e financeira. Quanto aos que falaram cedo de mais (divertiu-me hoje ver, atrasado, o Prós e Contras de segunda-feira), o governo grego respondeu-lhes logo na primeira reunião: subida do salário mínimo, bloqueamento de privatizações já programadas, oposição a sanções à Rússia, medidas para o aumento generalizado do rendimento da população, cuidados de saúde gratuitos para todos os desempregados sem seguro, distribuição de electricidade gratuita a famílias carenciadas, suspensão da mobilidade de funcionários públicos imposta pela troika, etc. Não foram promessas eleitorais de um partido. Foram já decisões de um governo.
E não podia a Syriza ter-se aliado ao KKE? Seria difícil, porque com o dogmatismo e arcaísmo ideológico vem também o sectarismo. É certo que, tendo sempre recusado qualquer colaboração e até um simples encontro com Tsipras, o KKE deu um passo, afirmando que não votaria contra medidas do governo que fossem ao encontro dos interesses dos trabalhadores, mas que também não votaria uma moção de confiança. Seria uma pseudo-aliança mínima, sem empenhamento na acção governamental que facilmente se adivinha duríssima. E, como disse atrás, as feridas na esquerda custam a fechar, tanto mais quanto mais próximas forem as relações de primos desavindos. Não havendo aqui espaço para aprofundar este assunto, remeto para um artigo interessante (em inglês), “Why did Syriza and the KKE fail to reach agreement?”, no sítio de Socialistworld.net.
(Continua)
NOTA – Ao contrário do uso corrente, escrevo “a” Syriza, por ser acrónimo em que a primeira palavra, coligação, é feminina. Da mesma forma “o Pasok, do masculino Movimento.

2 comentários:

  1. A postura do PCP tem dado uma cambalhota nestes últimos dias.

    Desde a declaração de João Ferreira no dia das eleições, felicitando o Syriza, ás declarações posteriores de Jerónimo de Sousa, e até a mudança de linguagem de Antonio Filipe de uma semana para a outra, o PCP olha para a Grécia e para a vitória da esquerda, com menos sectarismo. Esperemos que não seja só uma manobra oportunista para cavalgar a onda.

    ResponderEliminar
  2. Fazer de uma opinião uma polémica inconsequente, ao que andam amigos?
    Não gostei do tom das palavras do Miguel um deputado jovem com uma vida para viver. Mas também não gosto nada(!) de, como em poucas palavras se diz quase tudo... Tem a palavra ao novo ministro das finanças:

    "Na verdade, partilho a opinião de que esta União Europeia é um um Cartel fundamentalmente anti-democrático, irracional que colocou os povos da Europa num caminho de misantropia, ódios, conflitos e recessão permanente.
    Se o meu prognóstico está correto, e a Crise Europeia não é apenas mais uma crise cíclica, a ser em breve superada com a taxa de lucro a recuperar, na sequência da inevitável desvalorização salarial, a questão que se nos coloca é:
    - Será que devemos saudar esta degradação do capitalismo europeu, como uma oportunidade para o substituir por um sistema melhor? ou,
    - Essa desintegração deve-nos preocupar tanto, que a melhor solução seja embarcar numa campanha para estabilizar o capitalismo europeu?
    A Crise da Europa, como a vejo, não contém o potencial duma alternativa progressista, mas sim a ameaça de forças radicalmente reaccionárias que têm a capacidade de provocar um banho de sangue, e extinguir a esperança de todos os movimentos progressistas para as gerações vindouras."

    O Miguel dizia, "se como parece a burguesia grega tiver de facto reagrupado no SYPIZA, lá terá o capitalismo mais um balão de oxigénio, quando só mesmo a sua morte nos libertaria o caminho.”

    Ainda é muito cedo, mas se não se avançar pela luta, sobretudo por uma luta inteligente e consequente com a mobilização dos povos, em primeira linha no apoio ao povo grego obrigando a syriza a não defraudar o caminho progressista e o confronto que é necessário fazer, se conseguirá a derrota do capitalismo e evitar o tal banho de sangue.
    Sabe-se como oportunismo, a indignidade, os interesses e a captura do centrão partidário foi progredindo ao longo dos anos, traindo conquistas e os sonhos de justiça e equidade. O capital com força e meios de que dispõe fez o seu trabalho com sucesso e tem força e meios para vergar quem se lhe opõe. Então os povos precisam de afirmar: Basta! a alternativa é ajoelhar....

    Isso é sectarismo? ou a estupidamente estafada classificação de estalinista?

    ResponderEliminar

Obrigado pelo seu comentário. Os comentários de leitores não identificáveis não serão publicados.