quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

No dia 25, sou grego

Espero que o próximo dia 25 marque uma viragem importante da política europeia dos últimos anos, com a vitória da Syriza e com possíveis impactos nos próximos momentos eleitorais espanhóis (autárquico e legislativo) e irlandês. Infelizmente, por razões que discutirei em breve, noutro dia, não vislumbro esse impacto em Portugal. Por agora, ficam algumas notas soltas.
A história da Syriza é sui generis e eventualmente, para muitos, confusa. Em Portugal, o BE, talvez a formação mais próxima da Syriza, resulta da fusão de grupos relativamente equilibrados em dimensão e com referenciais muito distintos. Na Espanha, a Esquerda Unida (IU) tem uma génese relativamente semelhante à da Syriza, mas já o Podemos é a convergência do resto, ainda activo, do movimento 15 de Maio com uma acção política centralizada e levada a cabo com grande mestria por um conjunto de profissionais das ciências políticas e da comunicação.
Apesar de sucessivas modificações e de evoluções práticas a que não estamos habituados, que chegaram a haver um partido membro de uma coligação por sua vez membro de uma coligação mais larga, há um aspecto central que diferencia a Syriza do Podemos e de pequenas organizações portuguesas ou projectos de organização: a história da Syriza relaciona-se fundamentalmente com o partido comunista (KKE) e não tem nada a ver com o partido socialista (PASOK) nem o elege como fulcro da acção de esquerda (também não o Podemos). Anote-se, como exemplo, que toda a história política de Tsipras se passa na família comunista, primeiro no KKE-interior e depois no Synaspismos (ver a seguir).
Nos anos 60, o KKE tinha grande prestígio e força popular, em virtude do seu papel na resistência e na guerra civil que se lhe seguiu. O golpe dos coronéis atingiu rudemente o KKE, com muitos militantes forçados ao exílio (o KKE do exterior). O partido é também enfraquecido pela cisão na altura da invasão da Checoslováquia, condenada pelas estruturas do interior mas apoiada pelo exterior, ainda hoje “ortodoxo” e representado pelo actual KKE.
Posteriormente, constitui-se em redor do KKE do interior uma coligação, Synaspismos, integrando também organizações mais pequenas: uma fracção expulsa do KKE (incluindo Tsipras) e uma considerável variedade de grupos e movimentos esquerdistas, socialistas de esquerda, ecologistas. Em 2004, novamente se constituem uma coligação, a Syriza (Coligação da Esquerda Radical), mantendo-se como força dominante o Synaspismos e integrando toda a esquerda excepto o KKE, ao mesmo tempo que o Pasok se reduzia vertiginosamente, até um lugar subalterno na actual coligação neoliberal.
À medida que se assistiu ao sucesso eleitoral da Syriza, nos últimos anos, o partido foi apertado em tenaz por dois lados de crítica. Por um lado, aquilo que tem tido expressão intolerável nas últimas semanas, apresentando a Syriza como esquerdista e jogando com a ameaça de represálias por parte do norte central. Mas também, de sectores mais rígidos ideologicamente, a acusação de desvio direitista, com cedência a ditames externos, troikianos, indo alguns até posicionarem a Syriza como social-democrata. Fazem-no alguns como crítica de esquerda, outros vendo a Syria como exemplo pioneiro do que adivinham – e desejam – ser uma vaga europeia de “verdadeira” social-democracia (com Costa em Portugal?).
Pouco importando as etiquetas, a esquerda consequente, moderna e alternativa deve “ver-se” criticamente na Syriza, e depois julgá-la, em função dos ideais e valores, do programa e da atenção a condicionamentos sempre colocados a um partido próximo de uma vitória eleitoral em muito dependente de um novo bloco social hegemónico, politicamente e ideologicamente.
Provavelmente será acusado de leviandade quem, no outro extremo da Europa, sem viver a realidade grega e até sem compreensão da língua em que se escrevem textos fundamentais, se atreva a essa análise. Vale-me apenas a intenção de objectividade e racionalidade, bem como um grande esforço de leitura de muitas centenas de páginas publicadas nos últimos anos.
Sobre ideais e valores, ainda não li nada que permita a suspeição de a Syriza se afastar de uma posição de esquerda consequente, mesmo radical (como está no nome Syriza). Sem entrar agora na discussão do que é hoje esquerda – muito menos, à Podemos, se ainda vale o que chamam metáfora esquerda-direita – valorize-se, por exemplo, que o partido é sempre tido como honesto, coerente e imune a corrupção, carreiristas e falta de ética.
Sintetizar o programa da Syriza, o chamado Programa de Salónica, é impossível neste espaço. Como traços gerais e essenciais: 1. suspensão imediata do memorando, antes e independentemente de negociações com a troika. 2. reestruturação da dívida, “num quadro europeu realista”, com “haircut” da maior parte da dívida e pagamento da restante com indexação ao crescimento. 3. convocação de uma conferência europeia da dívida, como aconteceu em relação à própria Alemanha, em 1953. 4. prioridade a políticas orientadas para os sem-abrigo, os desempregados, as pessoas sem segurança social e as pessoas vivendo sem aquecimento. 5. “quantitative easing” pelo BCE. 6. plano nacional de reconstrução baseado em quatro pilares: a) atacar a crise humanitária; b) rearrancar a economia e promover a justiça fiscal; c) recriar emprego; d) transformar o sistema político para aprofundar a democracia.
É certo que a Syriza tem tido alguns recuos, mais significativamente em relação à recusa de saída do euro, e que tem cultivado um estilo de comunicação tranquilizador. Isto à medida que aumenta o seu peso eleitoral e à beira da vitória, é difícil não dar o benefício da dúvida. Com as sondagens a indicarem um grande apoio à continuação no euro e com toda a campanha estrangeira focada nesta questão, e ainda com a necessidade de atrair eleitorado órfão em virtude do descalabro do Pasok, fica grande margem para se duvidar se esta posição da Syriza não é responsável e tacticamente correcta. 
Afinal, sempre a doença infantil. Quantos dos que acusam agora a Syriza de oportunismo não se revêem na crítica esquerdista ao PCP, há 40 anos, por ter posto a hibernar a expressão “ditadura do proletariado”?
Resta também saber se a Syriza, ficando em primeiro lugar e com bonificação, conseguirá uma aliança maioritária. Contando com pequenos partidos de centro-esquerda, ela ficaria mais fácil com o KKE, mas não parece de esperar. É um filme que conhecemos bem, no que diz respeito a PCP-BE. Já não será mau que o KKE viabilize um governo de esquerda (isto é, Syriza), abstendo-se.
Fica por referir nesta nota uma questão interessante, que ultrapassa a Syriza mas em que ela, por via de Tripsas, tem um papel importante: o Partido da Esquerda Europeia. Veja-se, por exemplo, que, em Portugal, o PCP e o BE se situam no mesmo grupo europarlamentar, mas o BE é membro do PEE e o PCP não.
Permitam-me terminar com uma nota pessoal. Com tudo o que aqui ficou escrito, é compreensível que, se fosse grego, votaria na Syriza. E se isto me servir como referência em Portugal? Que Syriza portuguesa teria o meu voto? Provavelmente nenhum. Claro que não faz sentido relacionar Syriza e PCP, um partido que não consegue ter a juventude, a modernidade e a abertura de espírito da Syriza. Mais provavelmente o BE, mas enredado em sectarismos e com muita irresponsabilidade política, ao contrário da capacidade de diálogo da Syriza, que deu consistência a uma já longa experiência de coligações, sob orientação de correntes diversas derivadas do movimento comunista não alinhado com a URSS.
Quanto a novos partidos, nem falar. Aliás, nem vejo a plataforma Livre, Manifesto e Renovação comunista invocar algum parentesco com a Syriza. Seria despudor, para uma plataforma com objectivo principal de valorizar o PS. Fica, hipoteticamente, um clone do Podemos. Um dos próximos textos será sobre o Podemos, para mim uma construção artificial e demagógica. Se o Podemos é mau, muito mais o seria uma apatetada imitação portuguesa. O que vale é que ninguém a vai conseguir fazer. E, “frankly, I don’t give a damn”.

1 comentário:

  1. Para não ser acusado de produzir juízos prévios nem de desencadear processos de intenções, deixarei apenas uma nota: que tenhamos vida e saúde para aqui voltarmos dentro de alguns meses (uns três ou quatro após as eleições, serão já muito suficientes para se perceber que caminho indica a bússola) e procedermos a uma avaliação das mudanças que se perspectivam na sociedade grega - e sobretudo na sua relação com o espaço da UEM e do Euro, que é um aspecto nuclear do problema e por isso mesmo incontornável em qualquer discurso político sério - por via dessa expectável vitória eleitoral do Syriza.

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