O imperativo absoluto
A evidência que cada vez mais se está a firmar – espera-se que com rápida tradução na consciencialização dos cidadãos e eleitores – é a de que a dívida, agravada pela política de austeridade, é um garrote a apertar-se cada vez mais. Que é um ciclo vicioso, porque a austeridade, deprimindo a economia, agrava o défice orçamental e, por consequência a dívida. Que o serviço da dívida, já maior do que a despesa com o serviço nacional de saúde, impossibilita uma política urgentemente necessária de recuperação dos danos da austeridade, com crescimento, criação de emprego, aumento da procura interna, substituição de importações por produção nacional.
Reduzir significativamente a dívida e o seu serviço, o que implica reestruturá-la (ou, para quem preferir o termo, renegociá-la, se com isto se entender entrar em negociações com o objectivo de reestruturar a dívida), é urgente e absolutamente necessário. Com a flexibilidade que a expressão tem sempre em política, é um imperativo absoluto. Um imperativo significa que só há uma limitação à necessidade de lutar por ele – que o custo de uma solução em concreto seja superior ao benefício que se quer obter com o cumprimento do objectivo.
Isto significa, pelo menos, duas coisas: primeiro, que nenhum caminho deve ficar fechado a priori e que não se devem pôr condições para uma acção comum impeditivas da exploração táctica de todos os instrumentos para a reestruturação. É a cada passo do processo que se vão tomando as decisões adequadas, e em função das relações de forças, numa lógica de “idealmente deve-se tentar assim, mas se não for possível, então…”. Em segundo lugar, que a imperatividade, não prescindindo de considerações políticas e económicas, não pode ficar espartilhada por posições de “política moral”. Deve ser claro, principalmente para os eleitores, que tanto ou mais do que a norma moral do respeito dos compromissos para com os credores, vale o respeito dos compromissos do Estado em relação à prosperidade, bem-estar, emprego e bens sociais dos seus cidadãos.
Uma renegociação visando uma reestruturação no interesse do devedor implica uma grande força e determinação. É um processo duro, com muita imprevisibilidade, e em que todos os instrumentos disponíveis podem ter de ser usados. Um governo que assuma essa tarefa precisa de grande apoio popular, para além do apoio institucional, mas, paradoxalmente, esse apoio não vem, directamente, de propostas programáticas, impossíveis de prever e avaliar antecipadamente no concreto, ou mesmo tacticamente indivulgáveis, no interesse da negociação. O apoio vem directamente é da confiança popular na coragem política, na consequência ideológica e no sentido patriótico desse governo. Só indirectamente é que as propostas podem contribuir para a ideia do merecimento, à partida, desse apoio eleitoral.
O processo de reestruturação
A direita e as suas araras de propaganda insistem em que defender a reestruturação é coisa irresponsável, de malucos. Dezenas de restruturações da dívida, por todo o mundo, mostram o contrário, embora mostrando também que é um processo com custos e que não obedece a regras uniformes, variando muito com o contexto regional, político e económico.
De qualquer forma e sendo, como lhe chamei, um imperativo absoluto, não há forma de não o tentar, com o maior esforço para o seu sucesso. O falhanço da negociação para a reestruturação seria extremamente grave. Para além das consequências económicas, receio que tivesse enormes consequências políticas internas, desacreditando a possibilidade de alternativas de esquerda e remetendo muitos eleitores para o populismo, a abstenção ou mesmo soluções antidemocráticas. Este preço, a meu ver, é mesmo um dos custos, de que falei atrás, que passam acima do imperativo da reestruturação.
Não vai ser fácil. É claro que, em política, o que se diz hoje pode ser desmentido amanhã. Mas nada indica que o PS venha a abdicar da sua posição crispada, aliás a única coerente com o seu posicionamento no contexto europeu e com a sua aprovação do pacto orçamental.
Pode-se dizer que é caso semelhante ao do manifesto dos 74, com o qual o PS se tenta identificar, tardiamente. Não é bem assim. É certo que uma limitação do manifesto é limitar as negociações ao quadro institucional europeu, mas quem não começará por explorar essa possibilidade? O que não se pode é ficar prisioneiro dela. Da mesma forma, o manifesto pronuncia-se por um mecanismo de “haircut” com base num hipotético Fundo para a Amortização da Dívida e o Eurobills, ainda em fase de discussão técnica e de sucesso político mais do que duvidoso. Claro que deve ser explorado, bem como outros instrumentos a nível multilateral europeu, como a rediscussão do pacto orçamental, dos “packs”, da natureza do BCE, etc. Mas, se não der…
As perguntas podem suceder-se. Seria ideal que a negociação fosse no quadro institucional; muito bem, mas se não for possível? E se nem mesmo for possível negociar com cada um dos credores oficiais? Deve-se combater qualquer imposição europeia de tipo cipriota; mas se não for possível, qual será a resposta? Seria ideal que o BCE nos compensasse pelo diferencial de juros dos seus negócios com a nossa dívida soberana. Seria, mas se não for possível? Seria ideal que estivesse disponível um fundo europeu de amortização da dívida, mas o que fazer se a Sra. Merkel disser que não? Seria muito bom conseguir apoio de outros países com problemas de dívida. Mas, se não for possível, desistimos? E como considerar, a altura, as implicações do peso relativo de cada sector de detentores da dívida?
E até deixo de lado duas questões que agora complicariam esta discussão e que, a meu ver, poderiam causar dificuldades prematuras a uma aliança governamental com objectivo imediato de restruturação. Julgo que a firmeza e coerência de uma posição negocial em defesa do país pode passar, excluídas todas as outras possibilidades, por coisas tão mais radicais como a suspensão ou moratória do serviço da dívida e pela saída do euro
Então, o que se pode usar como instrumento negocial? A grande dificuldade da negociação é a sua imprevisibilidade. Não há um fio condutor linear. Como na previsão das jogadas no xadrez, tem de se contar com a variedade de jogadas do adversário. Só se pode dizer quase um truísmo: deve-se usar tudo o que, em cada momento, for adequado às nossas forças e às do adversário. E mesmo tudo, sem regras pré-estabelecidas, e medindo custos e benefícios. Parece o bê-à-bá, mas vejam algumas posições políticas e digam se não tenho razão. Tem também de se atender ao jogo adversário e imaginar como fazer “propostas irrecusáveis”. É preciso não esquecer que, ao contrário do que dizem e receiam os negadores do “haircut”, tanto a prorrogação de prazos como a redução da taxa de juros também são penalizadoras do credor. É preciso jogar, a cada momento, com o que mais lhe interessa.
Por outro lado, a confiança nas soluções europeias deve ser bem moderada. Não é aqui o lugar para rever tudo o que de nocivo nos tem vindo da forma concreta como se construiu este projecto, e principalmente o euro. O problema é que, mesmo em Portugal, há um europeísmo utópico que advoga tratar-se o envenenamento com mais veneno. Por exemplo, creio que dificilmente um partido como o Livre virá a participar empenhadamente num processo firmemente conduzido por Portugal, se for fora do quadro institucional europeu de que faz terreno político mais do que privilegiado.
Repetindo, penso que é perigoso apresentar e ficar-se (aparentemente?) presos a propostas recuadas e muito pormenorizadas. Em primeiro lugar, dão a entender ao adversário alguma tibieza negocial da nossa parte. Depois, acaba por ser coisa inadmissível em política ou planeamento militar – a falta de um plano B.
A unidade e as dificuldades políticas
Nada tem despertado tanto debate como a questão da convergência de esquerda (ou melhor da esquerda e do centro-esquerda) e a política de alianças necessária à constituição de um governo para a negociação da reestruturação. É possível, sem ser contra-natura? É obrigatória, sob pena de incumprimento do tal imperativo político absoluto? É suficiente para esse cumprimento? Parecem-me serem estas as perguntas cruciais.
É evidente que, a curto prazo, esse governo depende do PS. Também julgo evidente que deve ser em aliança, numa modalidade ou outra, com os partidos de esquerda e com largo apoio social de esquerda. No entanto, o PS recusa taxativamente medidas, como a redução do montante da dívida, sem as quais as suas propostas económicas ficam vazias ou demagógicas.
É enganador estabelecerem-se alianças com determinado objectivo se não estiverem cumpridas condições necessárias e suficientes, com risco de se pagar caro, em coerência, por se ir em ilusões dessas, mesmo que bem intencionadas. Parodiando, eu não devo fazer parelha para um rallye com alguém que me impede de levar no carro um extintor.
Na generalidade dos casos de discussão de alianças, entre as quais as que conseguimos no fascismo, os compromissos necessários ficam expressos em acordos formais ou em programas políticos. A questão, em geral, é a de se estabelecer a demarcação entre legítimos e inevitáveis compromissos, de todas as partes, e cedências estratégicas que descredibilizam um ou outro partido e podem ter consequências graves para eles.
No caso presente, de um governo para a reestruturação, a questão é muito mais difícil, porque só pode haver posições de princípio, com alguma generalidade. Muita gente pode pensar, por exemplo, que a questão do “haircut” é de somenos, sem perceber que ela é sintomática do que verdadeiramente interessa: que, face à imprevisibilidade de situações negociais e, donde, à impossibilidade de apresentação de um catálogo estruturado de propostas por antecipação, como discutimos atrás, a pedra de toque da solidez dessa aliança é a firmeza de posição de todos os participantes.
A questão da unidade é mais ampla. O processo de reestruturação terá certamente alta complexidade técnica mas, principalmente, porá os portugueses, a cada passo, perante opções políticas decisivas. Não são só números, vai ser a vida das pessoas. Vai ser a estabilidade e bem-estar de toda a sociedade, as perspectivas de futuro para os nossos netos. Isto coloca um problema prático de intervenção.
Tradicionalmente, a economia política foi relativamente marginal à discussão política e remetida para especialistas. Vão ler o que se discutiu nas intervenções do FMI e ficarão admirados como a política tradicional e a economia, no debate público, estiveram desligadas. Agora é impossível. Partidos, movimentos, grupos de economistas empenhados civicamente, devem colaborar para articular pedagogicamente a discussão pública da política e da economia. Até os indivíduos; já repararam como são tão raros os bloguistas não economistas que se preocupam com questões económicas? Parafraseando caricaturalmente, estamos numa fase em que “a economia não pode ser assunto para economistas”.
Os próximos tempos
Aproximamo-nos da campanha eleitoral para as europeias. Habitualmente, são eleições que despertam pouco interesse, mas pode-se prever que agora não vai ser assim. Apostaria que o eleitorado vai estar mais receptivo ao debate da questão da dívida e da austeridade do que da política institucional europeia. Sem exagerar a importância do manifesto dos 74, parece-me que ele veio ajudar muito a abanar o tabu da reestruturação (mesmo que recuada, no manifesto), em boa parte pela atenção disparatada que, estupidamente, a direita lhe dedicou. No entanto, receio que não haja tempo útil para um esclarecimento dos eleitores, ainda muito sujeitos a doses maciças de propaganda do pensamento único. Por outro lado, há riscos de excessiva partidarização deste processo, bem como de sua redução a slogans. Isto é incompatível com a complexidade dos problemas e cria ruído que deixa perplexos os eleitores.
Há coisas inteiramente legítimas em democracia mas que podem contribuir para acentuar essa confusão e criar desânimo em relação à esquerda em global (ou limitar a luta a um simples combate entre direita e PS, como se faz induzir em erro pela divulgação de sondagens com esse fim). É legítimo que cada partido proclame as suas propostas. É legítimo apresentar iniciativas parlamentares. Mas pode não ser sensato e deixar perplexas as pessoas que haja uma espécie de corrida às resoluções na altura em que vai ser discutida a petição decorrente do manifesto dos 74. Pergunto se não teria sido mais sensato e mais exemplar de um espírito unitário a apresentação de uma proposta conjunta de resolução a reforçar, “amarrando” à esquerda, o principal do manifesto e o seu carácter de abrangência, sem cuidar muito, para já, das suas limitações. É possível que o PS não alinhasse, mas mesmo uma posição comum do PCP e do BE já seria vista como sinal de uma atitude não sectária e de não competição de tipo “eu disse primeiro”. Também como ponto de partida para um processo que se inicia agora com as europeias mas que tem de evoluir, muito rapidamente, para as legislativas.
Os acontecimentos mais recentes da vida política portuguesa não satisfazem inteiramente as condições de sucesso de um processo unitário. Como acentuei, estão muito presos à lógica partidária e a uma visão estreitamente eleitoralista. Por outro lado, iniciativas como o Livre ou o 3D acabam por se ligar a essa lógica, em jogos menores de convergências sem critério inequívoco ou de exclusões à partida, sempre com destaque para protagonismos messiânicos.
Infelizmente, também esmoreceu consideravelmente a mobilização de rua. Honra se faça ao esforço e espírito de abertura e diálogo, sem oportunismos, de organizações como o Congresso Democrático das Alternativas e a Iniciativa para a Auditoria Cidadã à Dívida. É necessário e urgente dar corpo e voz a um amplo movimento popular e patriótico, que conjugue todas estas forças e que mobilize também os muitos cidadãos com outras forma de intervenção. Até esta, da reflexão na net.
Isto não prejudica a defesa de posições próprias de cada partido ou organização, mas na perspectiva de contributo para uma unidade de acção respeitadora da pluralidade de ideias. É já no próximo momento eleitoral que gostaria de ver isto em prática, e muito mais a olhar para as legislativas, já como um comportamento bem estabelecido.
Em conclusão, não consigo defender mais nada do que me parece possível mas também necessário, neste momento: 1. Que se parta do princípio óbvio de que nenhuma reestruturação pode resultar no cumprimento integral dos compromissos assumidos. 2. Que a negociação para a reestruturação seja vista, do lado português, sempre como conduzida prioritariamente pela consideração do interesse do devedor. 3. Que todos os meios negociais são legítimos, sendo ponderados politicamente apenas em termos de custos-benefícios, sem autocensura prévia. 4. Que, por isto, a unidade para a acção governativa pela reestruturação passa obrigatoriamente pela garantia de total firmeza de todos os envolvidos.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Obrigado pelo seu comentário. Os comentários de leitores não identificáveis não serão publicados.