Às vezes, parece-me que já começa a rarear quem ainda fez política nos tempos do fascismo e tinha sempre presente a dialéctica da firmeza estratégica e da táctica a usar em cada fase ou momento de luta, com realce para a política de unidade. Hoje, vêem-se a cada momento os dois vícios elementares: a valorização mítica da convergência pela convergência, sem critério, isto é, a visão oportunista. Ou, no outro oposto, a fixação sectária em arquétipos dogmáticos, muitas vezes sem questionamento actual de situações históricas que pareciam dar-lhe suporte. É dogmatismo e sectarismo.
Vem esta lapalissada política a propósito do manifesto dos 74, sobre o qual já escrevi. Ele veio colocar questões complexas que provavelmente terão efeitos muito importantes na vida política dos próximos tempos. Paradoxalmente, a meu ver, essa importância instrumental vai muito para além da substância do manifesto, como proposta política. Mas ele também me parece propício a desencadear atitudes tanto de oportunismo como de sectarismo. Como estes erros serão mais prováveis na actuação dos partidos, julgo importante que nós, independentes, tenhamos uma acção crítica e vigilante. Face a um inimigo poderoso, é o melhor contributo que se pode dar a uma unidade na acção com respeito pelas diferenças, desde que com uma base eficaz de coerência de princípios, propostas e atitudes.
Com o número, relevo, credibilidade, e abrangência política dos seus subscritores, é evidente hoje que o manifesto foi um grande abanão, muito acentuado pelo rápido e expressivo apoio da petição que se lhe seguiu. A direita, do governo, da Presidência e do aparelho de opinião ao serviço, disparatou com o murro no estômago que apanhou. O próprio PS, apesar do inevitável carácter recuado do manifesto, começou por titubear, até compreender que o podia aproveitar sem ser acusado de caloteiro e fazer má figura em Berlim, Francoforte ou Bruxelas. Curiosamente, foi um homem na franja mais à direita do PS, mas intelectualmente agudo, Francisco Assis, que viu logo isto. PCP e BE saudaram o manifesto, embora nem sempre da maneira mais cordial. Do Livre (desculpe-me se erro) não li nada.
Abrangendo tanta gente díspar, não se pode esperar do manifesto uma proposta estruturada e avançada. Ainda anteontem ouvi João Cravinho perguntar publicamente se a um manifesto com este objectivo de abrangência se pode exigir a solidez de uma posição de pequeno grupo. Claro que tem razão.
A importância instrumental do manifesto paga-se com a sua fragilidade substancial. Estranho é que, esperando-se nestas condições um documento mais generalista, ele se deixe aprisionar por propostas muito concretas e pouco flexíveis, que obrigam a algum contorcionismo para lhes dar maleabilidade. Suspeito de que uns tantos subscritores não se satisfizeram com posições por omissão, exigindo a afirmação explícita de propostas recuadas e de constrições imperativas (por exemplo, a limitação da negociação ao quadro institucional europeu).
De qualquer forma, independentemente de discordâncias que abordaremos depois, sem crispações, o manifesto quebrou tabus cuidadosamente cultivados pela direita. O de maior impacto político imediato é a afirmação de que a dívida é insustentável e que deve ser reestruturada, mau grado não seja consensual o significado do termo. Mas talvez tenha maior impacto na consciência pública a afirmação que lhe está subjacente: a dívida é insustentável porque com ela e os seus encargos não há crescimento, continuará a haver empobrecimento e desemprego, desagregar-se-á cada vez mais o estado social, tudo agravado pelo espartilho do pacto orçamental em que o governo, com o PS, nos meteram.
Não tenho visto discutir um aspecto ideológico importante que daqui decorre, também uma fissura que já havia, mas acentuada pelo manifesto, no muro da ideologia neoliberal na versão caseira e ligada à crise e à inevitabilidade da austeridade troiana. O que pessoas insuspeitas de extremismos vêm dizer, juntando-se a muito que tem sido dito, é que é legítimo reestruturar, que não é desonra procurar aliviar a rigidez dos compromissos a que se está preso, e que não há economia moral. Que a crise das dívidas soberanas é a ponta do icebergue da crise da dívida privada e dos movimentos especulativos de capitais, com crédito barato. Que o problema não se resume a se ter gasto acima das possibilidades. Que, mesmo depois da troika, a banca obteve dinheiro a 1% para, “patrioticamente”, comprar dívida a render 5% e mais. Que isso do norte das formiguinhas e do sul das cigarras é história da carochinha. Que é uma falácia evidente que o aumento da dívida é culpa do ou dos governos anteriores (como se explica então o seu aumento galopante de 2011 para cá?). Que o Estado tem tantos deveres para com os credores estrangeiros como para com os seus cidadãos, os quais, pela Constituição, jurou defender, assim como um pai não deixa morrer à fome os filhos para pagar certinho as suas dívidas. Os eleitores estão a começar a perceber, com indignação, como têm sido enganados.
No entanto, ilude-se quem pensar, como já vi, que o manifesto é decisivo para a criação de uma dinâmica de convergência na esquerda (novamente, para não perturbar esta discussão, dou de barato falar de uma esquerda que inclui, partidariamente, o PS e os partidos à sua esquerda). Seria paradoxal que, quando iniciativas importantes como a Auditoria Cidadã da Dívida, o Congresso Democrático das Alternativas ou o manifesto 3D não o conseguiram, fosse agora a participação de meia dúzia de personalidades de direita que o iria conseguir. O manifesto dá algum conforto ao PS e dá força eleitoral a uma alternativa de esquerda, o que não é nada pouco. Mas fica muito caminho por andar. Procurarei discutir isto amanhã. Antes, algumas notas preliminares.
Tende-se a absolutizar, isolando-se, os processos que, nas diversas combinações, integram a reestruturação da dívida: 1. redução das taxas de juro; 2. prolongamento das maturidades, isto é, o prazo de amortização da dívida; 3. e redução do montante da dívida, ou “haircut” (corte de cabelo). A redução das taxas de juro possibilita mais recursos para as necessidades de financiamento mas não alivia a pressão para ida aos mercados. Pelo contrário, a extensão dos prazos alivia essa pressão mas não liberta recursos e, no final, causa aumento do total da dívida. A conjugação das vantagens, sem anulação mútua, só se consegue com o “haircut”.
Não faz sentido afirmar-se que o “haircut” é desonroso porque viola um compromisso assumido com os credores. Todos os três processos são um prejuízo para os credores, uns mais do que outros, relativamente, conforme os casos e as circunstâncias. Por isto é que as negociações são sempre duras. Também imprevisíveis e a exigir um interlocutor português muito firme, capaz de fazer o que se chama “reestruturação conduzida pelo devedor”.
Também nesta lógica do respeito pelo cumprimento religioso pelos compromissos, há hipocrisia. Lembre-se que o governo, negando qualquer renegociação ou reestruturação, pediu e conseguiu, à boleia da Irlanda, uma baixa da taxa de juro da troika e um aumento da maturidade.
Julgo também útil desfazer uma confusão gerada por uma posição reiterada do PS: a defesa da mutualização da dívida. Não negando o seu interesse, como forma de gerar confiança e baixar os juros, não me parece, apesar de leigo, que contribua para o essencial, o alívio do serviço da dívida. Trata-se apenas de emissão comum, com responsabilidade comum, de dívida futura e, eventualmente, passagem para um fundo comum de parte da dívida actual, por exemplo acima do limite de Maastricht e do pacto orçamental, de 60% do PIB. Não sou especialista e posso estar enganado, mas não vejo na mutualização uma forma de reestruturação.
O manifesto vai mais longe, propondo um fundo para a reestruturação imediato, comparticipado por todos os países e com mecanismos que atendessem às necessidades de crescimento económico e da criação de emprego. No entanto, o recente relatório do Grupo de Peritos sobre um Fundo para Amortização da Dívida e Eurobills” (ler aqui as conclusões) não permite grande optimismo. Considera o acesso a esse fundo como meramente subsidiário da manutenção de políticas de austeridade, da redução dos défices orçamentais e da criação de saldos primários positivos. Mais, propõe, em troca, transferências de soberania para Bruxelas, nomeadamente no domínio da integração orçamental. Fora, claro, a principal dificuldade do sistemático não da Sra Merkel aos eurobonds, agora “eurobills”.
Dito tudo isto, o ponto crucial é que os eleitores começam a saber agora que o pais não pode aguentar mais esta política e que a dívida é insustentável. Que insustentável significa a dívida e o seu serviço serem um nó górdio que é necessário cortar, com processos corajosos, à Alexandre. Como, perguntarão? Não dou lições, discuto para que todos, eu também, aprendamos com a discussão e nos fortaleçamos para a acção. Continuamos amanhã.
NOTA 1 – Não vou dar muita importância a questões semânticas, mas é bom que nos entendamos. Renegociação e reestruturação são a mesma coisa? Com que sentido são usadas? Tem muito de conjuntural. Quando o PCP começou a falar de reestruturação, o BE e o PS, por razões diferentes, falaram de renegociação, distinguindo-se do PCP pela recusa liminar (PS) ou pela ambiguidade (BE no tempo de Louçã) do “haircut”. Curiosamente, com o tempo, e talvez em função da sensibilidade dos eleitores, o PCP passou a falar de renegociação, mas explicando sempre que envolvia prazos, juros e montantes. Agora, o manifesto fala de reestruturação, embora seja muito comedido no alcance dessa reestruturação e insistindo na sua natureza negocial. Por mim, que sempre escrevi reestruturação, fico mais à vontade para continuar a fazê-lo, entendendo pior isto um processo que, à partida, não se impõe a si próprio restrições que não sejam os interesses do povo português (o que, obviamente, deve eventualmente acatar processos e compromissos para se conseguir alguma coisa em vez de nada).
(Ilustração do Expresso)
Sem comentários:
Enviar um comentário
Obrigado pelo seu comentário. Os comentários de leitores não identificáveis não serão publicados.