terça-feira, 29 de abril de 2014

Defender o estado social: base de um programa de unidade?

Há dias, chamei a atenção, na minha página do Facebook, para a entrada “PCP, pária da Esquerda?”, neste blogue. Depois, publiquei uma nota, “Conversando amigavelmente, à esquerda”. 
Essencialmente, defendi um diálogo entre pessoas de esquerda, não constrangido por legítimos mas limitantes factores partidários. “É preciso que aprendamos a discutir fraternalmente, militantes partidários e independentes, como tento fazer. Ao discutir com um comunista ou um bloquista, respeito a sua filiação partidária, como é óbvio, mas desejo que nos sintamos juntos em relação a algumas coisas fundamentais: partilha de bases essenciais de uma política popular e patriótica, nomeadamente a libertação do domínio financeiro e orçamental, mas com respeito pela liberdade de discussão, lançando polémica interna, de grupo; defesa de uma sociedade socialista com democracia participada; espírito de independência (o que não contradiz a filiação partidária), rigor de análise; posição firme e consequente de esquerda, mas não sectária; recusa do oportunismo; crítica ao idealismo utópico europeista".
Ambos os textos tiveram larga e muito interessante discussão, mas com muitas pontas a justificarem maior tecedura. A base comum da discussão era, provavelmente, a partilha de uma visão – pluralista – de “esquerda consequente” que, em termos práticos, no que se refere a partidos, e aproveitando a nomenclatura de um amigo meu, posso chamar de esquerda à esquerda do PS (EePS). Mas um dos participantes na discussão, Rodrigo Brito (RB), colocou uma questão bem provocadora.
“Mas há muitos no LIVRE que pensam, como eu, que uma grande parte do eleitorado do PS se situa à Esquerda da sua direcção, assim como uma grande parte do eleitorado do BE se situa à direita da sua (o do PCP parece-me mais em sintonia com o partido) – e o potencial de convergência se encontraria aí, na pressão desse eleitorado sobre os partidos nos quais costumam votar (apesar da limitação dos canais de comunicação). (…) Acredito que uma grande parte do eleitorado português aceita o capitalismo, mas com um Estado Social sólido. Como traduzir isso em representação política e convergência, não sei - mas enquanto cidadão, espero alguma sensibilidade dos partidos políticos a isto.”
Repare-se que esta questão não repete a contradição global entre uma EePS real, de matriz marxista ou marxista-leninista, e um PS também real que se rendeu ao essencial do neoliberalismo, nas suas versões ordo ou neo (afinal não muito diferentes), contradição esta que, como tantas vezes tenho aqui discutido, a meu ver, constrange fortemente a unidade de acção contra a ofensiva brutal do capitalismo e contra a política de austeridade.
O que se trata, segundo RB, é de saber se é possível fazer convergir a EePS e um PS forçosamente renovado – por acção do seu eleitorado, vocacionalmente de esquerda, diz RB – para a reconstrução de um modelo de socialismo com retorno à sociedade de bem-estar (welfare state) que foi objectivo comum dos socialistas  e dos comunistas, de um lado e outro da Europa dividida do pós-guerra.
Não vou agora por considerações históricas, que ocupariam muito espaço. Mais importante é discutir se, hoje, há condições para essa ideia generosa de RB. Em todo o caso, aqui fica uma nota breve, marginal. Não se deve contrapor marxismo e estado de bem-estar, que não esteve na base da separação de marxistas e revisionistas, que se dividiram, com Bernstein, foi por causa da via revolucionária ou eleitoral para o socialismo. No caso das frentes populares, foi um objectivo comum. É certo que o estado de bem-estar do pós-guerra é normalmente associado às sociais-democracias do norte europeu, mas os seus objectivos não estão longe da política social dos países socialistas.
A defesa do estado social como base da unidade de esquerda
A posição de RB tem como suporte duas premissas: i. que a maioria dos portugueses aceita o capitalismo, mas com um Estado Social forte; ii. que uma grande parte dos eleitorados do PS e do BE se situa em aspirações políticas mais à esquerda, no primeiro caso, e mais à direita, no segundo, do que as direcções se aparelhos partidários, podendo por isso ser força de pressão sobre os partidos.
Discutirei adiante a primeira premissa mas quanto à segunda tenho fortes dúvidas. Em primeiro lugar, não tenho quaisquer dados que me indiquem se há ou qual é a desadequação do sentir e pensar dos eleitorados partidários em relação aos seus partidos e muito mais me parece arriscado pensar-se que são a maioria. O que se sabe é o resultado de sondagens e estas são muito contingentes e dependentes do quotidiano, mais do que na apreciação continuada e estruturada da política do partido. Por isto, o eleitoralismo partidário, que todos conhecemos, é de pão e circo, confiando na memória curta e na subjectividade superficial dos eleitores. Seria bom que não fosse assim, mas é a vida…
Para uma análise não idealista
A questão principal suscitada por RB, recordemos, é: pode-se restaurar um verdadeiro estado de bem-estar sem degenerescências neoliberais, como a Europa teve desde o pós-guerra até (simplifiquemos) à Sra Thatcher? A meu ver, não, e nem é por não haver uma relação de forças políticas que o permita. É porque vai contra a lógica do capitalismo, nos tempos actuais. 
Por isto, voltando à primeira premissa de RB – “a maioria dos portugueses aceita o capitalismo, mas com um Estado Social forte” – julgo que essa opinião da maioria dos portugueses (e as eleições confirmam) é desajustada da realidade. Só se explica pelo impacto cultural, ideológico e propagandístico que o capitalismo tem conseguido, agora na sua forma extrema de neoliberalismo, face a forças tradicionais de esquerda que não conseguem combater eficazmente essa hegemonia, muito por culpa própria. É tão mais lamentavelmente quanto, há uma dezena de anos, os operários (incluindo os assalariados da agricultura e pescas) e a classe média assalariada, incluindo intelectuais e quadros técnicos, representavam mais de 80% da população activa.
Começo por um truísmo. O estado de bem-estar não foi uma oferta benévola do capitalismo e, agora que ele foi quase destruído (com destaque para os países ex-socialistas agora na UE) reconstrui-lo obviamente que não será uma oferta benévola do capitalismo. Pergunto porque deixou o capitalismo que se criasse o estado de bem-estar? Porque o destruiu? Que interesse tem em reconstrui-lo?
Julgo que, sem esta opinião ter a ver com simpatia ou antipatia pelo sistema soviético, que todas essas perguntas têm respostas relacionadas com a implosão desse sistema. É idealista pensar-se que o estado de bem-estar foi arrancado, há seis décadas, pela social-democracia europeia. Ele resultou de uma situação de grande competição, política e ideológica, entre os dois mundos, agravada pelo prestígio granjeado pela URSS na guerra entre as classes trabalhadoras europeias. Onde a social-democracia não dominava e se aliava com a democracia cristã (Itália e França), não foi preciso aliciar os eleitores com as medidas sociais, assegurando-se a obediência ao sistema por meio da repressão e isolamento dos partidos comunistas e radicais.
A situação mundial mudou de uma competição bipolar para um sistema unipolar com competição interna e com globalização. A ofensiva capitalista contra o estado de bem-estar, liderada por Reagan e Thatcher, tem muito de ideológico, como fanatismo neoliberal, arma de hegemonia que o capitalismo de hoje, financeiro e desregulado (mas pode-se regular o capitalismo?…) usa para dominar cultural e informativamente uma massa eleitoral reduzida a pessoas sem capacidade crítica e dominadas por um pensamento único, à 1984.
O outro grande factor, objectivo, é a necessidade de competição do capitalismo europeu, prejudicado por uma moeda forte e um sistema económico-financeiro disfuncional, em relação às economias emergentes. A redução dos custos unitários do trabalho é tarefa imperiosa para o capitalismo europeu, com corte nas despesas públicas com educação, saúde e segurança social. Isto nem é só o que está a ser imposto aos países da periferia; os próprios trabalhadores alemães foram vítimas (com consentimento dos seus sindicatos) do plano Harz IV. Da mesma forma houve que se garantir o desmantelamento do estado social nos países do leste europeu, transformados numa reserva de mão-de-obra barata da UE, com os seus serviçais da nova cleptoburocracia.
Também não se pode esquecer o bem conseguido controlo dos sindicatos e movimentos dos trabalhadores, em paralelo à aceitação pelos trabalhadores (ou “colaboradores”…) de um espírito de colaboração de classes como modo de gerir não conflitualmente o conflito entre o trabalho e o capital.
A situação real, nestes tempos
Nestas condições, há um sentido de defesa do estado social ou daquilo que dele resta. Como em outros períodos históricos de defesa contra um inimigo comum (por exemplo, as frentes antifascistas), isto não deveria facilitar a unidade entre a esquerda (EePS) e o PS, podendo ser a base comum necessária e suficiente dessa unidade? É o que me parece ser a posição de RB, julgo que membro do Livre, ao fazer sua a tese de que o papel do Livre é trazer o PS a essa unidade. Será viável?
Primeiro, como disse, trata-se já de reconstruir um sistema social de bem-estar que está gravemente ferido, já não apenas em perigo. Vou dar de barato que o PS o quer defender, embora seja facto que, pelo menos desde o rendimento mínimo garantido, nada fez para o desenvolver ou consolidar. Para isto, há que garantir recursos financeiros, resgatando os prejuízos causados pelas troikas externa e interna. Há que garantir a solidez da economia portuguesa, aumentando o investimento e a procura interna, lutando contra o desemprego, substituindo importações. Ora nada disto me parece indissociável do nosso problema determinante, o sufoco da economia pelo garrote da dívida insustentável. É neste aspecto que se sabe bem como são de difícil convergência as posições do PS, por um lado, e do PCP e do BE, por outro.
Segundo, não basta a política de bem-estar, que até, durante décadas, serviu como factor de adormecimento do combate dos trabalhadores. Durante todo esse tempo, assistiu-se, em paralelo, a outro desenvolvimento que pode e deve ser combatido pela esquerda, em unidade. Refiro-me ao enorme crescimento das desigualdades e ao desequilíbrio, contra os trabalhadores, da relação do rendimento nacional atribuído ao capital e ao trabalho.
Terceiro, as posições do PS, a sua tentação de se aliar preferencialmente à direita, não devem ser vistas apenas como coisa conjuntural, de atenção a factores eleitoralistas. É também questão ideológica, de uma progressiva social-democratização (mas de social-liberalismo ou terceira via antes do tempo) que começou logo com Mário Soares. É por isto que me parece assimétrico o juízo habitual de que o PCP nunca se aliará ao PS, quando também é verdade que tudo na prática demonstrou, desde a contra-revolução palaciana de 1982 (revisão constitucional) que o PS nunca se dispôs a qualquer entendimento com a EePS, nem mesmo, com verdadeira seriedade, nestes últimos três anos.
Assim, não tenho esperanças numa unidade eficaz e coerente da esquerda. No entanto, afirmo categoricamente, pela minha parte, que ficaria contente com uma plataforma comum, a dar suporte a um governo (há formas diferentes de o fazer), que se centrasse no mínimo dos mínimos: a reposição do nosso estado social e uma política económica e financeira de recusa da austeridade e das receitas únicas do neoliberalismo. Ficariam coisas em aberto, como o que disse sobre a dívida ou o apoio do PS ao Tratado orçamental, mas penso que a realidade iria logo confrontar essa aliança e testar a sua solidez, com responsabilização dos partidos.
Como intervir
Temos estado a falar de partidos mas, pela amostra dessas discussões na minha página e em muitas outras de gente de esquerda, parece-me que há uma tendência interventiva, com espírito de abertura, por pessoas da tal EePS, sem filiação partidária, mas com envolvimento notório de ex-comunistas. Há um risco, paradoxal, de isto levar à focalização nos partidos, principalmente, por razões distintas, no PCP e no PS. Penso que a necessária unidade contra o domínio político, económico e financeiro que nos está a ser imposto exige um alargamento de âmbito muito para além do sistema partidário a que a democracia se tem reduzido, com omissão do valor do campo não partidário, social, de iniciativa popular, indispensável na luta democrática e patriótica. E, mais tarde, exemplo de uma democracia participativa, renovada.
Defendi um espírito de “conversa amigável, à esquerda”. Como escrevi na nota no Facebook, entendo que há regras e pontos de partida a respeitar mutuamente, mas que constrições de identidade e de “ismos” dos partidos não devem prejudicar o esforço não partidário para o entendimento. Só quem se auto-excluir é que deve ser excluído. 
Aliás, mesmo no caso dos partidos, há as consequências de imagem de uma identidade fortemente ideológica – estou a falar de um facto, sem valoração – mal compreendida pelos eleitores em consequência de uma desideologização da sociedade. Ela é em parte resultado da osmose social e da satisfação de aspirações de nível de vida, em parte do “fracasso das ideologias” que foi colado ao colapso do mundo socialista, e ainda, lamentavelmente, algum enfraquecimento da acção sindical, principalmente pela situação vulnerável dos trabalhadores precários.
O problema, para os independentes, é o da dificuldade de organizar e dar base técnica a essa acção unitária. É muito mais fácil, tecnicamente, o diálogo entre os partidos mas, insisto, o diálogo na EePS (e depois com o PS, ou desde logo com ele em aspectos particulares) não pode esvaziar o debate extra-partidário. É preciso encontrar formas eficazes. 
Alguns enquadramentos, como o “Que se lixe a troika” só tem carácter de movimentação de massas. Outras duas organizações, a Iniciativa para a Auditoria Cidadã e o Congresso Democrático das Alternativas, têm feito bom trabalho, promovido boas acções de esclarecimento (mas para já esclarecidos…) mas reflectindo apenas o trabalho de um número presumo que reduzido dos seus dirigentes, com escassa mobilização. Pior foi o manifesto 3D, que se transformou num grupo de pressão política a nível para-partidário, com evidente protagonismo, o que, suspeito, lhe estragou todas as possibilidades de intervenção unitária. 
NOTA 1 – Outra perspectiva radicalmente diferente, que não abordo aqui mas que muitas vezes discuti neste blogue, é a da criação de um novo partido, a que voltarei a seguir. Não é coisa fácil, mas também não é incompatível com a intervenção no imediato, extra-partidária, de independentes situados na EePS. Cada coisa a seu tempo.
NOTA 2 – Fica também por tratar uma situação muito esquecida entre nós, ou discutida sem rigor, a das experiências progressistas, pós-neoliberalistas ou de “socialismo de século XXI” na América Latina. Fica também aqui o desafio a esse debate.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

PCP, pária da Esquerda?

Domingos Abrantes (DA), um dirigente veterano do PCP concedeu a Nuno Ramos de Almeida, do jornal i, uma entrevista em que aborda a figura e significado histórico de Estaline. DA já é idoso e há anos que não exerce cargos dirigentes. Podia deixá-lo tranquilo, não fossem duas razões. Em primeiro lugar, era vulgar entre os seus camaradas dirigentes a sua atitude um pouco ambígua, própria de quem viu desabar, com o XX Congresso do PCUS, uma quase religião em que acreditava piamente e que lhe dava conforto ao heroísmo e sacrifícios dos dirigentes na clandestinidade. Depois, chocou-me a referência por NRA a alguma reabilitação actual de Estaline, em alguns sectores do PCP, coisa que DA desvalorizou mas sem desmentir.

Por isto, escrevi aqui a penúltima entrada, bastante lida. Referindo-me a ela no Facebook, gerei uma discussão interessante. Um dos comentadores, de passagem e creio que não se referindo a mim ou a outros comentadores, fala de “bloguistas amigos do PCP”. O que queria dizer? Militantes do PCP, simpatizantes ou colaboradores habituais, eleitores sistemáticos? Ou, coisa muito diferente, os “amigos críticos”, como eu, que, não se eximindo de apontar erros do PCP ou mesmo discordâncias que os conduziram à rotura, continuam a ver no PCP uma força de esquerda essencial, sem uma atitude de hostilidade essencial ou baseada no preconceito de que o PCP “nunca” se vai transformar?

A minha posição, bem como a de muitos amigos ex-comunistas com quem me dou parece-me coerente. O PCP, para bem da esquerda e das classes populares, deve renovar-se, quase que refundar-se, mantendo a sua coerência e firmeza de princípios mas limpando o que justifica, em boa parte (em justiça, não na totalidade) o seu enquistamento eleitoral. Isto não me é questão estranha, como nada do que é esquerda. Não posso influir nela; mas não posso é ser cúmplice de um anticomunismo politicamente muito mais emotivo do que racional, com base na pretensa impossibilidade da sua renovação. Não me parece verdade. Em primeiro lugar, porque muito dessa renovação é mediática, é trabalho de desfazer mitos. Segundo, nenhuma tara política se transmite hereditariamente de geração em geração, por décadas fora.

Mutatis mutandi, digo o mesmo do BE, de que me afastam muitas divergências e, até mais do que do PCP, alguma leviandade política, por vezes oportunismo. Mas é igualmente um partido de esquerda indispensável àquele núcleo duro de unidade de esquerda, com sindicatos, movimentos, organizações sociais, que já muitas vezes aqui defendi ser a base de partida, coerente e consequente, para uma unidade táctica mais alargada, traduzindo então uma política conjuntural de aliança de classes.

Contribuir para uma dinâmica de renovação do PCP, por parte de quem, como eu, não é seu militante, ganha credibilidade se baseada numa atitude crítica leal e amistosa de quem não está a prestar-se a nenhum frete, antes a lutar por toda a esquerda. A lista de divergências com o PCP é extensa. Algumas ficam por abordar, por razões práticas, embora sejam importantes para a opinião pública e a sua consequente manifestação eleitoral: a natureza política da China, a Coreia do Norte, a quase simpatia pela Rússia oligárquica de Putin, como se fosse herdeira da URSS, etc.

1. Começo por coisa aparentemente menor, a linguagem. Nenhuma missa seria hoje compreensível se dita em latim. O discurso do PCP é muitas vezes cansativo e a resposta é de quem não compreende que a “cassete” pode não ser o conteúdo (não a ter seria volubilidade) mas sim a forma, o uso martelado de um léxico usado para todas as circunstâncias e em tom comicieiro. É certo que todos os partidos o fazem, e até com menor propriedade literária, mas as coisas são como são. Além da linguagem, também o ritual. As grandes encenações partidárias passaram de moda e já não são “show” para quem se quer cativar, os mais jovens. E os mais velhos estão no sofá, defronte do televisor, não estão no Campo Pequeno a agitar bandeiras.

2. Os comunistas, a todos os níveis do exercício de funções políticas, são exemplares. Numa altura em que, justamente, a corrupção é um cancro que corrói a democracia, duvido de que o PCP esteja a conseguir divulgar e enaltecer esse seu retrato. Pior, talvez sem culpas suas, nem me parece fazer passar a ideia de que está sempre e fortemente em cima do problema, a nível legislativo e comunicacional.

3. De há muitos anos que o PCP se deixa confundir – não sei se sempre injustamente – numa imagem ambígua em relação à sua política de unidade. É certo que esteve sempre na criação de movimentos unitários que, antes do 25 de Abril, só falharam no marcelismo, em 1969, por responsabilidade do grupo de Mário Soares. Mas é verdade, e todos os militantes comunistas se devem recordar, que as relações entre o PCP e o PS, principalmente depois do 11 de Março, foram de franca hostilidade, de parte a parte. Quando se quis emendar, com o PCP em refluxo a seguir ao 25 de Novembro, claro que era tarde. Muita gente de então ou os seus filhos ainda têm isto muito em conta quando rejeitam o PCP como parte de uma solução política de governo.

4. Da mesma forma, o sectarismo do PCP, em termos de absolutização do papel do partido, leva-o tradicionalmente a subalternizar a importância das movimentações sociais, quando não são instrumentalizáveis. Chegou mesmo a fazê-lo com partidos de que fez satélites, como o MDP – entretanto auto-libertado – ou como os Verdes, que sei muito bem terem sido mera criação do PCP (aliás, contra o MDP). Neste momento, com mentalidade, valores e até tecnologias que afastam os jovens de uma imagem de conservadorismo de estilo e de linguagem do PCP, este parece não fazer nada para o diálogo com os novos movimentos jovens, que, para além da sua generosidade e entusiasmo, até bastante beneficiariam da experiência (não paternalista!) do PCP

5. Há uma imagem feita, negativa e acrítica, sobre o papel do PCP em muitos acontecimentos do pós-25 de Abril que ou ainda são a sedimentação do que os ainda vivos ouviram naqueles tempos de guerra de propaganda ou é, pior, o que já passa como verdade para a geração seguinte. Proposta de um regime soviético, descolonização às ordens da URSS, desprezo pelos ex-colonos, cumplicidade na “expoliação" de bens, espionagem a favor da URSS e envio dos ficheiros da Pide, etc. Evidentemente, não digo que o PCP devia promover congressos ou comprar canais de televisão para combater tudo isto, mas é mau remeter-se à defensiva, que por vezes – não sei se estou a ser injusto – me parece sobranceira.

Mais em particular, tudo o que refere ao antigo mundo soviético, porque representa, como exemplo real, o que o PCP não escondia ser o seu referencial de projecto político (enquanto que às vezes lhe fazia pequenas críticas, mas só internas, “para não fazer o jogo do inimigo”). Não vou dar testemunho, porque só estive duas semanas na Hungria e duas em Moscovo e Leninegrado. Pareceram-me sociedades sem pobreza visível, também sem ostentação de riqueza, mas pardas e tristes. Mais importante é pensar nas convulsões, Berlim, Budapeste, Praga, Varsóvia. Para mim, militante na época, marcante foi Praga. Alguma coisa está muito mal explicada quando uma revolução pelas liberdades que o PCP dizia defender, por um “socialismo de rosto humano”, acaba sufocada por tanques dos países irmãos, com o apoio do PCP, como se tudo aquilo fosse uma movimentação contra-revolucionária, senão fascista.

Da mesma forma, o PCP remeteu-se a uma defesa de entrincheiramento, “poucos mas bons”, à espera de que o tempo resolvesse os problemas, quando ocorreu o processo mais sério do seu sistema político-ideológico, o colapso do mundo soviético. Não me lembro de mais explicações, no essencial, do que reduzir tudo à traição de uma pequena clique, personificada em Gorbatchov, apoiando o PCP um contra-golpe ridiculamente fracassado. Como é que o PCP não viu que os militantes, já na legalidade e bem informados, ao contrário de 1968, iam discutir livremente e que o tempo das certezas vindas de cima acabara? Como é que o PCP não perguntou como é que Gorbatchov tinha sido eleito com tanto apoio, e precedido de alguns avisos libertadores de Andropov, um homem que, como chefe do KGB, conhecia bem a situação? Como não se apercebeu do grande apoio à perestroika, mesmo entre os seus próprios militantes? E como é que desaba um sistema com um aparelho partidário e securitário tão forte? Pior, como é que se forma quase logo um capitalismo extremo, com uma oligarquia imbricada com a nomenklatura anterior? O PCP não irá longe se tudo isto não ficar claro. Lembre-se, aliás, que é daí, não de nada de antes, que vêm os grandes cismas, do grupo dos seis, do Hotel Roma, da Renovação comunista.

6. O PCP tem receio de que cedências eleitoralistas e de contra-propaganda em relação à sua imagem o possam levar a oportunismos descaracterizadores, à italiana. Muito bem, é um risco demonstrado pela prática! Mas então, mantém-se firme na sua caracterização como partido marxista-leninista, o que, pessoalmente, me levanta problemas. Não é coisa meramente semântica, tem significado real. Por exemplo, desde logo, sou marxista (embora não seja uma religião) mas não sou leninista. Aprecio em Lenine a teoria do estado e a do imperialismo, não suporto o pastelão do Materialismo e Empirocriticismo (para provar que também era filósofo, como Marx?) e considero completamente datada ou pelo menos exclusiva de uma época de luta clandestina a concepção e prática do centralismo democrático, que, a meu ver, é abusivo colar com hífen ao nome de Marx.

Diga-se que, ao contrário do que se julga, as consequências nefastas do centralismo democrático não derivam de qualquer sistema ditatorial interno. São efeitos psicogrupais perversos do espírito partidário levado ao mais alto nível, da ideia de que os sacrifícios serão recompensados pela visão de um paraíso por que, é importante e justo que se diga, se lutou com esforço, fraternidade e desinteresse pessoal. São efeitos, em paralelo, de um corpo determinante de funcionários políticos, muitas vezes fazendo da sede o centro do seu mundo (devo dizer que assisti a alguma evolução positiva). No conjunto, não receio dizê-lo, era uma espécie de colectivização mental, auto-disciplinada.

Simplesmente isto não podia ser imposto a pessoas ou massas sem o entusiasmo dos militantes pela causa. Aquilo que, para isso, para a construção do socialismo, teria legitimidade revolucionária, só seria aceitável na justa medida e no justo tempo. Sempre receei, e muito mais gente, que a sociedade socialista que desejávamos podia vir a ser defraudada por vícios do nosso próprio partido. Ainda há dias me perguntavam se o que eu rejeitava era o funcionamento do PCP ou o modelo de sociedade que defenderiam se tivessem o poder. Respondi que, a meu ver, ambas as coisas são indissociáveis.

Nesta situação, até homens muito inteligentes que conheci perdiam o sentido crítico. Não resisto a contar uma situação anedótica. No fim dos anos 70, o meu trabalho partidário era unitário, em relação a militares. Alguns, mesmo de destaque, cujos nomes nunca divulguei nem o vou fazer, estavam muito críticos, porque, como membros da esquerda militar, tinham sofrido represálias e visto derrotado o seu projecto. Isto causava-me problemas de consciência, porque frequentemente concordava com eles mas tinha de defender as posições do partido. Mas, contando o tal pormenor, muitas vezes recebia um saco com umas publicações militares, creio que da Novosti, com os feitos militares de Brejnev. Claro que iam para o lixo logo à saída da Soeiro.

Cunhal não precisava de exercer domínio férreo nem de promover o culto da personalidade para efectivamente ser um “santo” para quase todos os comunistas. Afinal, nada de diferente do que vai ser canonizado domingo, João Paulo II. De alguma forma, o PCP era no tempo ainda muito marcado por Cunhal e a velha guarda de dirigentes (não sei como é hoje). Mas era o que viviam com naturalidade, como sua maneira de ser, como segunda pele de defesa de um clandestino,

7. “Last but not the least”, outra crítica ao PCP, parcialmente pertinente, diz respeito ao seu programa. Não tenho dúvidas de que é, em toda a esquerda, o programa mais consequente e mais firme, o que coloca a acção numa perspectiva teórica articulada, numa análise correcta de classes e na luta clara pelo socialismo, entendido sem sofismas como o derrube do capitalismo. Também a política europeia. Mas, a meu ver, está preso ao passado, a uma sociedade de há cinquenta anos de antes das profundas mutações sociais que alteraram profundamente os factores demográficos, as aspirações individuais, os padrões familiares, o défice do espírito comunitário, a atitude em relação aos “costumes”, a estrutura do trabalho e o impacto das novas tecnologias, o aumento das desigualdades, o desemprego, as migrações, etc.

Conclusão. Quem rejeita liminarmente o PCP, não considerando as suas muitas virtudes e só vendo os seus muitos defeitos, não é amigo do PCP mas, desculpem-me a franqueza, também não é amigo de quem dele depende, a esquerda consequente, no seu conjunto, logo o campo popular e patriótico. Quem quiser ser isto, deve ter uma atitude amistosa com os partidos consequentes de esquerda, PCP e BE, mas fraternalmente crítica. Espero que eles compreendam que esses é que são os seus verdadeiros amigos, mesmo – ou especialmente – quando são frontalmente críticos e ainda mesmo que não tenham valor propagandístico para enfeitarem as listas dos eternos companheiros independentes.

NOTA FINAL Creio que certamente se percebe que, apesar da veemência de algumas destas minhas críticas ao PCP, sempre na base de que nada impede (chamem-me utopista) a sua correcção, estou longe de me situar, à moda, na equidistância em relação ao PS. Percebem porquê, mas se for necessário explico.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Voto branco e abstenção

Já votei em branco, mas nunca me abstive. Conheço mesmo quem, de há uns anos para cá, vote sempre em branco. Quem o faz, certamente que não quer ser confundido com abstencionistas. Mas as coisas podem não ser tão simples, como mostra uma conversa que tive há dias sobre este assunto.

Tratava-se de pessoas de certa idade, politicamente interessadas e votantes habituais em um ou outro dos partidos do bloco central. Estavam traumatizadas com as duas últimas experiências. Tinham chegado a hostilidade enorme contra Sócrates, como tanta gente, e foram iludidas com as falsas promessas de Passos Coelho. Agora, já não se trata apenas, novamente, de um outro mentiroso, como também do responsável pelos sacrifícios por que estão a passar, apesar da sua situação razoável de pequena classe média.

É assente para estes meus velhos amigos que não vão votar em nenhum partido do arco da troika, mas também ainda têm muitas e antigas reservas em relação à esquerda, em que não confiam para governar “respeitavelmente”. Lá terão as suas razões, infelizmente partilhadas por muita gente, e que é urgente que a esquerda combata, principalmente pelo exemplo e clareza de posições.

Pela conversa, fiquei a pensar que talvez não seja muito fácil levar pessoas deste tipo para o voto branco, já que não as posso convencer a votar na esquerda consequente, que mais não seja para lhe dar o reconhecimento eleitoral do mérito de luta e resistente que lhe vêem.

Preferiam claramente a abstenção, e não por preguiça ou comodismo. Para além de outros argumentos todos ligados à questão da eficácia do voto, o principal não me convence mas talvez motive muita gente. É quase como a questão de votar útil, no mais forte. Sendo as abstenções muito mais numerosas do que os votos em branco, mais valia pregar um susto aos partidos fazendo subir muito as abstenções. 

Mas mais importante é analisar a variação em ambos os casos, De 2005 para 2011, as abstenções passaram de 34,97% para 41,93% (variação de 6,96% do total, ou de 19,9% em relação a 2011). Os votos brancos passaram de 1,81% para 2,66% (variação de 0,85% do total ou de 47,7% em relação a 2005). Assim, a abstenção cerce mais em termos dos eleitores inscritos, mas o voto branco cresce mais rapidamente como escolha.

Contrapunham-me também que o valor das abstenções é muito mais divulgado e comentado na noite eleitoral e que, portanto, tem mais impacto nas pessoas e nas análises partidárias. Têm alguma razão. De facto, raramente se ouve os jornalistas e comentadores falarem nos votos brancos. Mas mais uma razão para se insistir neles. Obviamente que, para mim, em último recurso, quando não se sabe de todo em quem votar, sendo então melhor do que ficar em casa, engrossando uma mole complexa de preguiçosos, descrentes na democracia ou pessoas sem espírito cívico.

A propósito do resultado prático dos votos brancos, vê-se frequentemente defendida a teses das cadeiras vazias. Isto é, os votos brancos seriam atribuídos como lugar de deputado a um “partido virtual”. Não tenho opinião formada sobre isto. Primeiro, não me parece que, seja qual for a consequência disto, tenha muito significado. Fiz uma simulação, por alto, em relação a 2011 e creio que o “partido branco” teria, no máximo, 2 assentos no parlamento. No entanto, em situações limite, isto poderia condicionar a regra da proporcionalidade. Depois, há dois casos diferentes, dependendo de as maiorias se calcularem com base em 230 lugares ou descontando esses lugares vazios. Aqui fica o mote para uma discussão interessante, que só tenho visto como agitar de slogans.

domingo, 20 de abril de 2014

Uma no cravo, outra na ferradura...

Quem costuma ler-me far-me-á justiça de reconhecer que não sou hostil ao PCP, muito menos ser aquilo a que é vulgar chamar-se anticomunista primário. Creio ser visível, por exemplo, que, no contexto da crise e da política europeia, a posição do PCP é aquela de que mais me aproximo, como se vê por tudo o que aqui tenho escrito. Também não tenho dúvidas em reconhecer a consequência e tenacidade dos comunistas, a sua entrega à luta, a sua honestidade na vida pública. No entanto, não é fácil manifestar simpatia numa situação de escuteiro que quer à força ajudar a atravessar a rua a velhinha que não o quer fazer. Há ruas que o PCP parece não querer atravessar.

Preliminarmente, deixo claro que, sem prejuízo do que disse atrás, tenho grandes divergências de fundo com o PCP. Se não as tivesse e desde há muito, não teria deixado o PCP, por volta de 1980, individual e discretamente, muito antes das dissidências colectivas posteriores. Foram divergências sobre posições do PCP, nomeadamente em relação à primavera de Praga (que o 25 de Abril tinha deixado em latência), sobre comportamentos depois do 25 de Abril, de sectarismo, triunfalismo e voluntarismo e, na base disto, a concepção leninista de partido, a mentalidade de funcionário, um certo burocratismo e a submissão muitas vezes acrítica a pensamentos esquemáticos. Também a veneração pela URSS, cuja implosão me parece que, para o PCP, em análise superficial, foi principalmente coisa de cúpula, de traição de dirigentes oportunistas, a começar por Gorbatchov. No entanto, isto não prejudicaria, mantendo obviamente as críticas, a convergência consequente de esquerda que advogo (e que não é a convergência milagrosa sem princípios que muito se defende).

Muito mais me repugnaria qualquer sinal de perdurar ainda no PCP alguma simpatia pelo estalinismo. É por isto que não posso deixar de comentar a entrevista dada por Domingos Abrantes (DA), um ex-dirigente histórico, ao jornal i. Sempre que se trata de Estaline e do estalinismo, é uma no cravo e outra na ferradura, ou um “sim, mas…”. Como exemplo mais significativo, fica a opinião de DA de que Estaline “cometeu erros”. Isto é inaceitável. Estaline não cometeu erros, mas sim crimes, como dito pelo próprio PCUS, no seu XX Congresso. Se quer manter esta linguagem tartufiana, o PCP corre o risco de dar razão a toda a propaganda eficaz que o desacredita e que o acantona numa pequena fortaleza defensiva sem papel eleitoral activo e de alternativa de governo.

Hoje ninguém pode ter dúvidas de que Estaline, directamente ou por intermédio de uma clique partidária  medíocre que controlava ferreamente, cometeu crimes de várias dimensões. Eliminou dirigentes revolucionários de alto prestígio, incluindo o próprio Trostsky. Eliminou grupos importantes, como os médicos do processo das batas brancas. Eliminou a elite dos generais do Exército Vermelho, principalmente aqueles que tinham tido experiência de guerra em Espanha, o que foi objectivamente uma traição, desguarnecendo as defesas nacionais pouco tempo antes da guerra. Deportou populações inteiras. Aprisionou milhares de pessoas nos gulags, muita vezes em condições de morte anunciada. Não sei quantos milhares foram ao todo as vítimas do estalinismo, ou quantos milhões. Não sei quantos eram de facto culpados. Creio que ainda ficam os suficientes para se dizer que o estalinismo foi responsável por muitos crimes.

Claro que não se nega muito do que DA diz. Que Estaline teve um papel importante na guerra. Que o caminho da União Soviética, em relação a liberdades e eleições, está relacionado com a sua história particular. Mas DA lembra isto com um intuito indiscutivelmente apologético. Chega a ponto de dizer que as pessoas, em relação ao relatório de Khruschov, se dividiam entre não acreditar ou dizer “se isto é verdade é porque os outros (os que ele mandou liquidar) não eram bons de certeza". Ou não estou a ler bem ou é uma afirmação lamentavelmente espantosa. Eram só aquelas as posições em que as pessoas se dividiam?

Dando uma no cravo e outra na ferradura, DA embrulha-se numa conversa de clichês que já não convence nem o mais dedicado e crédulo simpatizante. Que o problema do estalinismo, no contexto de alguma reabilitação por alguns sectores do PCP, é um problema marginal. De forma críptica, que, em relação à restrição de liberdades no socialismo, temos (PCP) “algum distanciamento em relação a certas práticas”. Que não havia razões para duvidar de Estaline porque até Churchill e Roosevelt o elogiavam (como líder militar, diga-se). Compara crimes do socialismo com os crimes do capitalismo, como se houvesse crimes bons e crimes maus.

Há outra questão sibilina nas declarações de DA. Trata-se da associação que faz, de passagem, entre a desestalinização e a adopção da tese da via pacífica para o socialismo. Não acredito que DA desconheça que não tem nada a ver uma coisa com a outra, a não ser a coincidência temporal. Só me ocorre uma explicação. Sabendo que, para pessoas bem informadas, a via democrática para o socialismo foi o centro da luta de Cunhal contra o desvio de direita, por Júlio Fogaça e o seu secretariado, leva a crer que isto envolve também, de certa forma e invocando Cunhal, alguma desvalorização, simultaneamente, do outro grande resultado do XX Congresso, a desestalinização.

À minha geração de jovens comunistas, nos anos sessenta, não se punha a questão do estalinismo. Como eu, creio que muitos camaradas consideravam coisa arrumada e, nas condições de falta de informação na clandestinidade, resumida à imprensa do partido, não se suspeitava de que ainda pudesse haver simpatias estalinistas. Dir-me-ão que foi ingenuidade. Foi muito mais grave a atitude do PCP em relação à repressão da primavera de Praga, porque os acontecimentos e as informações nos entravam em casa muito mais facilmente e não podia haver álibis de propaganda imperialista ou manobras da CIA. Ou seria Dubcek um traidor, como mais tarde foi considerado Gorbatchov? Por tudo isto, é-me (estou certo de que “é-nos”) intolerável que haja alguma ambiguidade na avaliação do estalinismo, da figura de Estaline, dos seus crimes.

O PCP defronta-se com muita gente que tem preconceitos, com muita gente que foi sempre submetida a uma propaganda larvar anticomunista, mas também aproveitando-se de verdades, porque não há mentiras eficazes que não tenham alguma coisa de verdade. Também há os que viveram ainda jovens com pouca capacidade crítica os anos da brasa, ou os que ouviram dizer, sem muita capacidade para colocar as coisas no contexto. No entanto, ficam ainda os que querem ser isentos e objectivos e que, mesmo críticos e não se sujeitando ao controlo do PCP, desejam ver esse partido com capacidade ofensiva e em expansão de influência eleitoral, como reforço de toda a esquerda consequente. Estes têm o direito de pretender que o PCP se liberte do lastro que, aproveitado pelos seus adversários, tanto prejuízo lhe causa.

Em relação a muitas e muitas coisas, e usando o jargão de cartilha, o PCP deve fazer a sua autocrítica. É um sinal de seriedade, honestidade e responsabilidade. Não basta dizer que se tem paredes de vidro. É preciso que toda a gente veja sem dúvidas que é assim. À mulher de César não basta ser séria.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

A reestruturação (3) - a política

O imperativo absoluto

A evidência que cada vez mais se está a firmar – espera-se que com rápida tradução na consciencialização dos cidadãos e eleitores – é a de que a dívida, agravada pela política de austeridade, é um garrote a apertar-se cada vez mais. Que é um ciclo vicioso, porque a austeridade, deprimindo a economia, agrava o défice orçamental e, por consequência a dívida. Que o serviço da dívida, já maior do que a despesa com o serviço nacional de saúde, impossibilita uma política urgentemente necessária de recuperação dos danos da austeridade, com crescimento, criação de emprego, aumento da procura interna, substituição de importações por produção nacional.

Reduzir significativamente a dívida e o seu serviço, o que implica reestruturá-la (ou, para quem preferir o termo, renegociá-la, se com isto se entender entrar em negociações com o objectivo de reestruturar a dívida), é urgente e absolutamente necessário. Com a flexibilidade que a expressão tem sempre em política, é um imperativo absoluto. Um imperativo significa que só há uma limitação à necessidade de lutar por ele – que o custo de uma solução em concreto seja superior ao benefício que se quer obter com o cumprimento do objectivo.

Isto significa, pelo menos, duas coisas: primeiro, que nenhum caminho deve ficar fechado a priori e que não se devem pôr condições para uma acção comum impeditivas da exploração táctica de todos os instrumentos para a reestruturação. É a cada passo do processo que se vão tomando as decisões adequadas, e em função das relações de forças, numa lógica de “idealmente deve-se tentar assim, mas se não for possível, então…”. Em segundo lugar, que a imperatividade, não prescindindo de considerações políticas e económicas, não pode ficar espartilhada por posições de “política moral”. Deve ser claro, principalmente para os eleitores, que tanto ou mais do que a norma moral do respeito dos compromissos para com os credores, vale o respeito dos compromissos do Estado em relação à prosperidade, bem-estar, emprego e bens sociais dos seus cidadãos.

Uma renegociação visando uma reestruturação no interesse do devedor implica uma grande força e determinação. É um processo duro, com muita imprevisibilidade, e em que todos os instrumentos disponíveis podem ter de ser usados. Um governo que assuma essa tarefa precisa de grande apoio popular, para além do apoio institucional, mas, paradoxalmente, esse apoio não vem, directamente, de propostas programáticas, impossíveis de prever e avaliar antecipadamente no concreto, ou mesmo tacticamente indivulgáveis, no interesse da negociação. O apoio vem directamente é da confiança popular na coragem política, na consequência ideológica e no sentido patriótico desse governo. Só indirectamente é que as propostas podem contribuir para a ideia do merecimento, à partida, desse apoio eleitoral.

O processo de reestruturação

A direita e as suas araras de propaganda insistem em que defender a reestruturação é coisa irresponsável, de malucos. Dezenas de restruturações da dívida, por todo o mundo, mostram o contrário, embora mostrando também que é um processo com custos e que não obedece a regras uniformes, variando muito com o contexto regional, político e económico.

De qualquer forma e sendo, como lhe chamei, um imperativo absoluto, não há forma de não o tentar, com o maior esforço para o seu sucesso. O falhanço da negociação para a reestruturação seria extremamente grave. Para além das consequências económicas, receio que tivesse enormes consequências políticas internas, desacreditando a possibilidade de alternativas de esquerda e remetendo muitos eleitores para o populismo, a abstenção ou mesmo soluções antidemocráticas. Este preço, a meu ver, é mesmo um dos custos, de que falei atrás, que passam acima do imperativo da reestruturação.

Não vai ser fácil. É claro que, em política, o que se diz hoje pode ser desmentido amanhã. Mas nada indica que o PS venha a abdicar da sua posição crispada, aliás a única coerente com o seu posicionamento no contexto europeu e com a sua aprovação do pacto orçamental.

Pode-se dizer que é caso semelhante ao do manifesto dos 74, com o qual o PS se tenta identificar, tardiamente. Não é bem assim. É certo que uma limitação do manifesto é limitar as negociações ao quadro institucional europeu, mas quem não começará por explorar essa possibilidade? O que não se pode é ficar prisioneiro dela. Da mesma forma, o manifesto pronuncia-se por um mecanismo de “haircut” com base num hipotético Fundo para a Amortização da Dívida e o Eurobills, ainda em fase de discussão técnica e de sucesso político mais do que duvidoso. Claro que deve ser explorado, bem como outros instrumentos a nível multilateral europeu, como a rediscussão do pacto orçamental, dos “packs”, da natureza do BCE, etc. Mas, se não der…

As perguntas podem suceder-se. Seria ideal que a negociação fosse no quadro institucional; muito bem, mas se não for possível? E se nem mesmo for possível negociar com cada um dos credores oficiais? Deve-se combater qualquer imposição europeia de tipo cipriota; mas se não for possível, qual será a resposta? Seria ideal que o BCE nos compensasse pelo diferencial de juros dos seus negócios com a nossa dívida soberana. Seria, mas se não for possível? Seria ideal que estivesse disponível um fundo europeu de amortização da dívida, mas o que fazer se a Sra. Merkel disser que não? Seria muito bom conseguir apoio de outros países com problemas de dívida. Mas, se não for possível, desistimos? E como considerar, a altura, as implicações do peso relativo de cada sector de detentores da dívida?

E até deixo de lado duas questões que agora complicariam esta discussão e que, a meu ver, poderiam causar dificuldades prematuras a uma aliança governamental com objectivo imediato de restruturação. Julgo que a firmeza e coerência de uma posição negocial em defesa do país pode passar, excluídas todas as outras possibilidades, por coisas tão mais radicais como a suspensão ou moratória do serviço da dívida e pela saída do euro

Então, o que se pode usar como instrumento negocial? A grande dificuldade da negociação é a sua imprevisibilidade. Não há um fio condutor linear. Como na previsão das jogadas no xadrez, tem de se contar com a variedade de jogadas do adversário. Só se pode dizer quase um truísmo: deve-se usar tudo o que, em cada momento, for adequado às nossas forças e às do adversário. E mesmo tudo, sem regras pré-estabelecidas, e medindo custos e benefícios. Parece o bê-à-bá, mas vejam algumas posições políticas e digam se não tenho razão. Tem também de se atender ao jogo adversário e imaginar como fazer “propostas irrecusáveis”. É preciso não esquecer que, ao contrário do que dizem e receiam os negadores do “haircut”, tanto a prorrogação de prazos como a redução da taxa de juros também são penalizadoras do credor. É preciso jogar, a cada momento, com o que mais lhe interessa.

Por outro lado, a confiança nas soluções europeias deve ser bem moderada. Não é aqui o lugar para rever tudo o que de nocivo nos tem vindo da forma concreta como se construiu este projecto, e principalmente o euro. O problema é que, mesmo em Portugal, há um europeísmo utópico que advoga tratar-se o envenenamento com mais veneno. Por exemplo, creio que dificilmente um partido como o Livre virá a participar empenhadamente num processo firmemente conduzido por Portugal, se for fora do quadro institucional europeu de que faz terreno político mais do que privilegiado.

Repetindo, penso que é perigoso apresentar e ficar-se (aparentemente?) presos a propostas recuadas e muito pormenorizadas. Em primeiro lugar, dão a entender ao adversário alguma tibieza negocial da nossa parte. Depois, acaba por ser coisa inadmissível em política ou planeamento militar – a falta de um plano B.

A unidade e as dificuldades políticas

Nada tem despertado tanto debate como a questão da convergência de esquerda (ou melhor da esquerda e do centro-esquerda) e a política de alianças necessária à constituição de um governo para a negociação da reestruturação. É possível, sem ser contra-natura? É obrigatória, sob pena de incumprimento do tal imperativo político absoluto? É suficiente para esse cumprimento? Parecem-me serem estas as perguntas cruciais.

É evidente que, a curto prazo, esse governo depende do PS. Também julgo evidente que deve ser em aliança, numa modalidade ou outra, com os partidos de esquerda e com largo apoio social de esquerda. No entanto, o PS recusa taxativamente medidas, como a redução do montante da dívida, sem as quais as suas propostas económicas ficam vazias ou demagógicas.

É enganador estabelecerem-se alianças com determinado objectivo se não estiverem cumpridas condições necessárias e suficientes, com risco de se pagar caro, em coerência, por se ir em ilusões dessas, mesmo que bem intencionadas. Parodiando, eu não devo fazer parelha para um rallye com alguém que me impede de levar no carro um extintor. 

Na generalidade dos casos de discussão de alianças, entre as quais as que conseguimos no fascismo, os compromissos necessários ficam expressos em acordos formais ou em programas políticos. A questão, em geral, é a de se estabelecer a demarcação entre legítimos e inevitáveis compromissos, de todas as partes, e cedências estratégicas que descredibilizam um ou outro partido e podem ter consequências graves para eles.

No caso presente, de um governo para a reestruturação, a questão é muito mais difícil, porque só pode haver posições de princípio, com alguma generalidade. Muita gente pode pensar, por exemplo, que a questão do “haircut” é de somenos, sem perceber que ela é sintomática do que verdadeiramente interessa: que, face à imprevisibilidade de situações negociais e, donde, à impossibilidade de apresentação de um catálogo estruturado de propostas por antecipação, como discutimos atrás, a pedra de toque da solidez dessa aliança é a firmeza de posição de todos os participantes.

A questão da unidade é mais ampla. O processo de reestruturação terá certamente alta complexidade técnica mas, principalmente, porá os portugueses, a cada passo, perante opções políticas decisivas. Não são só números, vai ser a vida das pessoas. Vai ser a estabilidade e bem-estar de toda a sociedade, as perspectivas de futuro para os nossos netos. Isto coloca um problema prático de intervenção. 

Tradicionalmente, a economia política foi relativamente marginal à discussão política e remetida para especialistas. Vão ler o que se discutiu nas intervenções do FMI e ficarão admirados como a política tradicional e a economia, no debate público, estiveram desligadas. Agora é impossível. Partidos, movimentos, grupos de economistas empenhados civicamente, devem colaborar para articular pedagogicamente a discussão pública da política e da economia. Até os indivíduos; já repararam como são tão raros os bloguistas não economistas que se preocupam com questões económicas? Parafraseando caricaturalmente, estamos numa fase em que “a economia não pode ser assunto para economistas”.

Os próximos tempos

Aproximamo-nos da campanha eleitoral para as europeias. Habitualmente, são eleições que despertam pouco interesse, mas pode-se prever que agora não vai ser assim. Apostaria que o eleitorado vai estar mais receptivo ao debate da questão da dívida e da austeridade do que da política institucional europeia. Sem exagerar a importância do manifesto dos 74, parece-me que ele veio ajudar muito a abanar o tabu da reestruturação (mesmo que recuada, no manifesto), em boa parte pela atenção disparatada que, estupidamente, a direita lhe dedicou. No entanto, receio que não haja tempo útil para um esclarecimento dos eleitores, ainda muito sujeitos a doses maciças de propaganda do pensamento único. Por outro lado, há riscos de excessiva partidarização deste processo, bem como de sua redução a slogans. Isto é incompatível com a complexidade dos problemas e cria ruído que deixa perplexos os eleitores.

Há coisas inteiramente legítimas em democracia mas que podem contribuir para acentuar essa confusão e criar desânimo em relação à esquerda em global (ou limitar a luta a um simples combate entre direita e PS, como se faz induzir em erro pela divulgação de sondagens com esse fim). É legítimo que cada partido proclame as suas propostas. É legítimo apresentar iniciativas parlamentares. Mas pode não ser sensato e deixar perplexas as pessoas que haja uma espécie de corrida às resoluções na altura em que vai ser discutida a petição decorrente do manifesto dos 74. Pergunto se não teria sido mais sensato e mais exemplar de um espírito unitário a apresentação de uma proposta conjunta de resolução a reforçar, “amarrando” à esquerda, o principal do manifesto e o seu carácter de abrangência, sem cuidar muito, para já, das suas limitações. É possível que o PS não alinhasse, mas mesmo uma posição comum do PCP e do BE já seria vista como sinal de uma atitude não sectária e de não competição de tipo “eu disse primeiro”. Também como ponto de partida para um processo que se inicia agora com as europeias mas que tem de evoluir, muito rapidamente, para as legislativas.

Os acontecimentos mais recentes da vida política portuguesa não satisfazem inteiramente as condições de sucesso de um processo unitário. Como acentuei, estão muito presos à lógica partidária e a uma visão estreitamente eleitoralista. Por outro lado, iniciativas como o Livre ou o 3D acabam por se ligar a essa lógica, em jogos menores de convergências sem critério inequívoco ou de exclusões à partida, sempre com destaque para protagonismos messiânicos. 

Infelizmente, também esmoreceu consideravelmente a mobilização de rua. Honra se faça ao esforço e espírito de abertura e diálogo, sem oportunismos, de organizações como o Congresso Democrático das Alternativas e a Iniciativa para a Auditoria Cidadã à Dívida. É necessário e urgente dar corpo e voz a um amplo movimento popular e patriótico, que conjugue todas estas forças e que mobilize também os muitos cidadãos com outras forma de intervenção. Até esta, da reflexão na net.

Isto não prejudica a defesa de posições próprias de cada partido ou organização, mas na perspectiva de contributo para uma unidade de acção respeitadora da pluralidade de ideias. É já no próximo momento eleitoral que gostaria de ver isto em prática, e muito mais a olhar para as legislativas, já como um comportamento bem estabelecido.

Em conclusão, não consigo defender mais nada do que me parece possível mas também necessário, neste momento: 1. Que se parta do princípio óbvio de que nenhuma reestruturação pode resultar no cumprimento integral dos compromissos assumidos. 2. Que a negociação para a reestruturação seja vista, do lado português, sempre como conduzida prioritariamente pela consideração do interesse do devedor. 3. Que todos os meios negociais são legítimos, sendo ponderados politicamente apenas em termos de custos-benefícios, sem autocensura prévia. 4. Que, por isto, a unidade para a acção governativa pela reestruturação passa obrigatoriamente pela garantia de total firmeza de todos os envolvidos.

Será isto possível ou estarei a ser utópico? Não sei, mas sei que a alternativa é o suicídio nacional.

domingo, 6 de abril de 2014

A reestruturação (2) - as propostas

Era para concluir hoje esta série, discutindo perspectivas de acção abertas pela crescente sensibilização para a recusa da inevitabilidade de uma “sujeição honrada” à dívida. Afinal, pensei que talvez fosse útil, em intervalo, fazer uma revisão das principais posições sobre a questão da dívida. Procurarei ser objectivo e isento.

O presidente
Cavaco Silva dá a volta ao problema, para chegar a conclusões opostas. Não pode negar que é matematicamente inevitável ter de respeitar um sistema algébrico simples, envolvendo, de um lado, três variáveis – variação do PIB nominal (sem correcção para a inflação), taxa média de juro e saldo orçamental primário (o saldo sem os juros) – e, do outro, o número de anos necessário para se passar da dívida actual, em percentagem do PIB, a um outro determinado valor mais reduzido.

O Presidente parte desse prazo, de vinte anos imposto pelo pacto orçamental (não é exactamente assim, mas deixemos isso), para concluir que são necessários índices irrealistas: aumento anual de 4% do PIB nominal (era de 2,4% antes da crise!), saldo primário de 3% (nunca houve) e taxa de juro de 3,5%.

Mas a sua conclusão é que isto é possível e desejável, obrigando mas é à continuação por vinte longos anos da austeridade e, lá tinha de vir, a um amplo “consenso nacional” dos partidos sensatos e respeitadores dos acordos troikistas.

(NOTA – veja-se uma simulação que fiz e que resulta no prazo incrível de 147 anos parava se atingir a meta de Maastricht)

O governo
Segue o mesmo caminho, mas de forma muito mais simplista: a dívida já é sustentável e pronto, nada mais a discutir. Falar de reestruturação é tabu e traição à pátria. No entanto, pela calada, renegociaram-na em versão suave (abaixamento de taxas de juro e prolongamento de prazos) e já começam a abrir uma fresta da porta em relação à mutualização. A Sra Merkel diz um taxativo “nein” mas nunca se sabe , em política nunca digas nunca.

A propósito, lembro o que escrevi ontem. A mutualização não é propriamente um “haircut”. Significa é que a responsabilidade pela dívida, emitida por cada país ou pela união, é partilhada por todos, em diversas modalidades. Não se trata de aliviar directamente o esforço da dívida, por redução do seu montante, a não ser que parte desse montante passe para um fundo de amortização, como proposto pelo Grupo de Peritos (ver adiante). Não quer dizer que a mutualização não tenha outras vantagens indirectas. Por exemplo, envolvendo a solidariedade dos países de maior notação na garantia de pagamento, gera-se confiança dos mercados com possível redução das taxas de juro, bem como se facilita a renegociação de juros e maturidades.

O PS
Desde pouco depois da sua assinatura do memorando com a troika, o PS começou a admitir a necessidade de renegociação de taxas de juro e de prazos de amortização, fazendo disto progressivamente a sua posição central em relação à política de austeridade. Ao mesmo tempo, defendia a mutualização da parte da dívida acima dos 60% do PIB segundo os critérios de Maastricht.

Tem defendido também uma política de crescimento e de investimento, bem como de criação de emprego e de defesa do estado social, com propostas concretas. O problema, a meu ver, é que, quantificando esta despesa, nunca apresentou processos de obtenção de recursos para o seu financiamento (a não ser coisas insignificantes), não se sabendo como conseguiria um saldo primário para esse fim, apenas pior negociação de taxas de juro mais baixas, forçosamente muito mais baixas (os juros que pagamos anualmente são de 8 a 10 mil milhões de euros, tanto quanto boa parte das despesas sociais).

Tudo isto porque o PS, em coerência com a sua atitude seguidista em relação à política ordoliberal da sua corrente social-democrata europeia e ao facto de ter aprovado o pacto orçamental, recusa taxativamente qualquer forma de redução do montante da dívida. O PS ficou preso de um truque semântico, ao distinguir em propaganda a sua “renegociação”, só de juros e prazos, mas com pagamento honrado até ao último euro, da “reestruturação" que envolveria sempre um “haircut”. 

O manifesto dos 74, falando de reestruturação, veio baralhar o assunto e por isto, inicialmente, o PS adoptou uma posição cautelosa, de “respeito” pelo manifesto e pelos seus subscritores. Mas desmarcou.-se, afirmando que “nós devemos pagar até ao último cêntimo, e devemos fazê-lo através de uma estratégia credível”. Só depois, baralhando com mutualização a proposta do manifesto e dando ênfase à defesa pelo manifesto de uma solução obrigatoriamente no quadro institucional europeu, é que o PS se sentiu mais à vontade. Coisas…

O PCP
Considero a posição do PCP como a mais estruturada e mantida das posições partidárias. isto sem prejuízo de algumas limitações à clareza, porque seria utópico que um partido não tivesse de ter em conta considerações eleitoralistas e a sensibilidade do eleitorado ou o seu condicionamento pelo rolo compressor da máquina de enchouriçar mentes. A última posição do PCP, repetindo, no essencial, propostas de 2011, consta do projecto de resolução parlamentar apresentado em 4 deste mês.

O PCP defende o uso, em diversas combinações possíveis, dos três mecanismos de reestruturação (curiosamente, fala mais de renegociação): redução das taxas de juro, dos prazos de maturidade e dos montantes. Defende o não pagamento de dívidas ilegítimas ou odiosas e defende a indexação do serviço da dívida ao crescimento económico e às exportações. A determinação da dívida ilegítima competiria a um grupo independente nomeado pelo Conselho Económico e Social.

Como medidas relevantes, de entre outras mais que compõem um programa muito pormenorizado, saliente-se: prioridade da reestruturação da dívida aos credores da troika; isenção da reestruturação dos pequenos aforradores e da Segurança Social; travão ao aproveitamento especulativo por parte da banca; proposta de revisão dos estatutos do BCE e do Pacto de Estabilidade e Crescimento; diversificação das fontes de financiamento do Estado; emissão de dívida pública junto do mercado de retalho; diligências, na medida do possível, para anulação de contratos de PPP, “swaps” e rendas excessivas; política de substituição de importações por produção nacional.

Não abordo aqui outra posição do PCP que complica esta discussão sobre a reestruturação, porque ainda é tabu para todos os outros partidos e alguns grupos políticos. Embora por intermédio de declarações pessoais, PCP afirma a sua disponibilidade para estudar a possibilidade, custos e benefícios da saída do euro, embora não a proponha nesta fase. Não é ninguém menos responsável do que o cabeça de lista às europeias, João Ferreira, que diz “temos de nos preparar para sair do euro”.

O BE
A meu ver, a posição do BE tem oscilado nestes três anos, e sofreu alguma mudança quando Louçã deixou de ser dirigente formal. Interessa principalmente o que o BE defende agora. Na sua VIII Convenção, em 2013, o BE manifestou-se pela rotura com o memorando da troika. Obviamente, passado este tempo e em vésperas do fim do resgate, essa proposta fica datada, mas permanece o essencial – a recusa da dívida tal como ela foi acumulada, recusa assente em quatro pilares fundamentais: 1. anulação da dívida abusiva, redução do montante da dívida a 60% do PIB e renegociação de prazos e juros; 2. reposição dos rendimentos cortados e garantia do estado social; 3. nacionalização da banca intervencionada pelo Estado, com mobilização de recursos para a política de emprego, e nacionalização dos bens comuns privatizados ou concessionados; 4. novo sistema fiscal, beneficiando o trabalho.

O BE defende também a “desobediência” às regras do pacto orçamental e um referendo para desvinculação de Portugal, considerando que, por não ter sido aprovado por unanimidade, o pacto não é um tratado constitutivo da UE.

Parece-me que, com mais ênfase numa ou noutra nuance, as posições do PCP e do BE são compatíveis sem grande esforço, mas muito mais distantes das do PS. Onde há maior distância entre o PCP e o BE, mas com importância secundária em relação à reestruturação, é no domínio do processo europeu. O PCP sempre foi crítico, posição agora acentuada pela disfuncionalidade do euro e pelas posições quase-imperialistas da Alemanha. Pelo contrário, o BE adopta expressamente uma posição de “europeísmo de esquerda”.

O Livre
Tenho dificuldade em perceber qual é a posição do L em relação à reestruturação da dívida. A sua declaração de princípios é omissa. O programa para as europeias, nas suas 67 medidas, só inclui três propostas que, com boa vontade, se podem ter como relacionadas com a reestruturação: 1. pedido ao Tribunal de Justiça da União Europeu de indemnizações por ilegalidade da troika; 2. revisão do mandato do Banco Central Europeu; 3. emissão de eurobonds, mas sem efeito na dívida já existente.

Não conheço qualquer outra proposta do L. Aguardo por um programa de política nacional. Já tarda. Entretanto, fica-se com a impressão que o L é um partido muito mais preocupado com a arena europeia do que com a luta cá no país.

Fico só com uma proposta muito confusa de Rui Tavares, que provavelmente não compromete o L: colocar na mesa europeia (sempre a Europa como local político por excelência) a discussão dos “componentes essenciais para uma Europa de futiuro que saia desta crise” e que seriam um novo Bretton Woods, um FMI próprio e um novo plano Marshall. De que guerra é que os vencedores iam fazer isto? Quando a Alemanha ganhar a actual guerra económica?

O manifesto dos 74
Como todas as posições que temos vindo a ver, o manifesto defende a reestruturação da dívida, com negociação de prazos e juros e, de certa forma, de montantes. A diferença é que, parecendo o PCP e o BE abertos a formas variadas de negociação (ou assim o deduzo da sua omissão neste ponto), o manifesto afirma taxativamente que a renegociação tem de ser “honrada e responsável” e exclusivamente no âmbito de funcionamento da União Económica e Monetária.

Quanto à redução do montante da dívida, acima dos 60%, o manifesto propõe um mecanismo que tem alguma coisa de mutualização e que se baseia no fundo de resgate das dívidas proposto pela Comissão e agora objecto de um relatório pelo grupo de peritos. As amortizações caberiam a esse fundo, financiado por todos os países da zona euro, tendo em conta o “favorecimento do crescimento económico e do emprego num contexto de coesão nacional”. “As condições relativas a taxas de juro, prazos e montantes abrangidos devem ser moduladas conjugadamente, a fim de obter a redução significativa do impacto dos encargos com a dívida no défice da balança de rendimentos do país e a sustentabilidade da dívida pública, bem como a criação de condições decisivas favoráveis à resolução dos constrangimentos impostos pelo endividamento do sector empresarial público e privado e pelo pesado endividamento externo.”

Habilmente, esta proposta, uma espécie de mutualização não só das responsabilidades como também dos pagamentos, acaba por ser um “haircut” sem o dizer. O problema é que a sua viabilidade é duvidosa. Ficará para outra entrada a discussão desse relatório do grupo de peritos. Surgido já depois do manifesto dos 74, receio que as suas contrapartidas práticas sejam muito custosas e que, mesmo assim, venha a ser rejeitado politicamente pela Alemanha e seus satélites.

Outros
Que eu tenha dado por isso, só dois movimentos políticos s pronunciaram sobre a dívida. Logo na sua sessão de constituição, o Congresso Democrático das Alternativas propôs “a denúncia do Memorando e abertura de um processo negocial com a CE, o BCE e o FMI a partir de uma posição determinada, com a reestruturação da dívida colocada no topo da agenda das negociações; a preparação para os cenários adversos que podem resultar de uma atitude negativa da troika, traduzida numa suspensão do financiamento internacional (incluindo a necessidade de declarar uma moratória ao serviço da dívida); e a intervenção ativa no quadro da União Europeia (UE) tendente a consolidar alianças com outros países periféricos em situação semelhante à portuguesa e reforçar as posições favoráveis à criação de mecanismos que travem a especulação financeira e favoreçam o investimento e a criação de emprego como resposta à recessão.”

Também a Iniciativa para a Auditoria Cidadã à Dívida, na carta aos deputados que acompanha a petição por si promovida, recusa uma reestruturação com prioridade atribuída aos credores e defende uma reestruturação que “envolva sempre ou extensão dos prazos, ou redução das taxas de juro, ou redução do capital em dívida, ou uma combinação destes elementos”. Propõe uma redução da dívida de 50%, atingindo também os credores oficiais e isentando os pequenos aforradores e investidores públicos residentes (Segurança Social). Chama também a atenção, realisticamente, para os obstáculos e riscos que decorrem de uma reestruturação.

É disto, do peso relativo com as vantagens, do modo de fazer a reestruturação e da via política para o conseguir que conversaremos amanhã.