domingo, 30 de setembro de 2012

A praxe académica, uma alarvidade

Como em todos os anos, lá houve mais um incidente trágico relacionado com a praxe “académica”. É a coisa mais alarve da cultura estudantil. Cultura recente, que nem conhece o que foi o movimento associativo estudantil do fim dos anos 50, mas principalmente dos anos 60. Que nunca foi informada do papel que esses "associativos" desempenharam na guerra, no mato, a conversarem com os futuros capitães de Abril, a quem devem a sua liberdade.

Não venham com tradições. Praxe era só em Coimbra, codificada ao pormenor, engraçada e sem possibilidades de abusos. Mesmo com a coisa importante da "requisição" dos caloiros para as "repúblicas". Grandes patuscadas, muita conversa interessante. Quanto eu devo a essas noites dos meus patrícios dos "Corsários das Ilhas".

Não havia praxe em Lisboa ou no Porto, muito menos, obviamente, nas universidades então inexistentes ou nos institutos politécnicos, cujos estudantes traduzem uma mentalidade provinciana, quase rural.

Este ano, não presenciei a da minha universidade, porque tarefas muito importantes me fizeram refugiar-me em casa, a trabalhar sem perturbações. Mas, em anos anteriores, tenho visto que é coisa parva, sem humor, toda feita de insultos e humilhações. Que coisa engraçada que é obrigar jovens a gritar infindamente “eu sou uma besta”, com um penico na cabeça, ou pior, raparigas a gritar “eu sou uma puta”. Compreensivelmente, esta praxe é feita frequentemente pelos estudantes do 2º ano. Olho por olho!

É curioso que centenas de estudantes do segundo ano comprem a capa e batina só para a praxe - mesmo quando depois não conseguem pagar propinas. Mas quando, como chefe de protocolo, lhes peço que assim vão às cerimónias solenes da universidade, nem um. E pode a universidade controlar a praxe? Não, até é pior. Saem os portões da universidade, onde estão sob alguma observação, para ir fazer as alarvidades e gritar obscenidades no Campo Grande.

Não me digam que é um ritual de iniciação. Admito que seja, em alguns casos, uma forma brincalhona e alegre de dar a conhecer aos caloiros a vida universitária. Diz-me um neto, agora entrado no ISCTE, que foi o que lhe aconteceu. Lembro-me do mesmo no caso do meu filho mais novo, ao entrar no IST já há uma dezena de anos. Assim, muito bem.

Eu fui caloiro em Coimbra em 1960 e a minha primeira experiência de praxe foi péssima. Na latada, obrigaram-me a beber, valendo-me só que a minha casa ficava logo na Alexandre Herculano, embora ainda hoje não saiba como me consegui deitar. Depois, tudo mudou com a crise académica, em que os rituais praxísticos, por exemplo os decretos dos veteranos e o uso do traje de luto, serviram para a luta.

A terminar, transcrevo, com a devida vénia, um texto de um professor da U. Évora, J. Rodrigues dos Santos, antropólogo, publicado no sítio da universidade.
1) As praxes são, por natureza, uma forma de violência; essa é a sua condição normal 
2) A violência exercida é, desde o início e independentemente da sua intensidade, ilegítima; 
3) Os "deslizes", os "exageros", não são gerados por algum factor contingente e excepcional, antes estão potencialmente contidos em TODAS as ocorrências 
4) O que demonstra estas afirmações são os seguintes factos:  a) Todos os anos se verificam casos de extrema gravidade, que parecem normais aos olhos dos "praxantes" que recusam qualquer culpabilidade, invocando sempre causas externas aos acidentes que ocorrem; os casos conhecidos são uma minoria em relação ao número real de ocorrências;   b) A proliferação das praxes mesmo nos estabelecimentos que nunca tiveram as tais pretensas "tradições" é um fenómeno de contágio da violência sobre os outros como meio de gozo (jouissance) sexual perversa   c) O "folclore" que emerge das praxes, na sua tremenda monotonia, inclui principalmente três valores: um sexismo exacerbado (as mulheres são todas umas putas e as caloiras umas merdas); um racismo primário, que se exerce "em branco" (e é caso para dizê-lo, podendo ser exercido sem consideração de cor de pele) activando os esquemas de inferiorização colectiva e desumanização característicos do racismo em direcção dos colegas; e por fim um culto da "autoridade" concebida como poder puro e simples do mais forte sobre o mais fraco que é próprio dos sistemas fascistas. 
5) Uma "comunidade académica" incapaz de tomar posição clara e firme sobre este problema, a começar por quem tem responsabilidade institucional, mas incluindo também cada um dos membros da comunidade, é uma comunidade morta. 
Tal comunidade deixa de merecer o nobre adjectivo de "universitária". Apesar de tudo, nós somos a geração dos pais: calamos? consentimos? Cada um decidirá.
Também a ler, “As praxes - a grande e desejada humilhação”, uma muito boa entrada de Cristina Carvalho, no blogue “De Rerum Natura”.

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