domingo, 30 de setembro de 2012

Carta aberta


Caro Rui Tavares e seus colaboradores,

Não tenho por regra absoluta, neste blogue, poupar os amigos, não dar argumentos aos adversários. Tanto quanto possível, evito fazê-lo, mas julgo que a melhor forma de conquistar adetos é escrever honestamente, doa a quem doer, mesmo aos "amigos".

Há meses, segui com muito interesse, embora sem nela ter sido chamado a participar, a serie de reuniões promovidas por Rui Tavares, de que alguns amigos me foram dando notícias e em que julguei ver a possibilidade do que então julgava prioritário, a criação de um novo partido. Afinal, a montanha pariu um rato.

Esqueci, afinal mais um fogo fátuo  nesta situação de grande confusão política. Mas ontem fui confrontado no Expresso com mais um manifesto da sua iniciativa que não adianta nada, tem propostas que hoje são assumidas como elementares pelos movimentos que contam, os que estão na rua, a gente que se manifesta nas redes sociais, os que escrevem em blogues. Os seus dois últimos parágrafos, de conclusão e propostas, são redondos. O que pretende Rui Tavares?

Pior é a caracterização que faz de outros combates, a que pretende ser alternativa. 1. Promover uma bancarrota que redundaria numa contração ainda mais brutal do estado social e numa inevitável saída do euro [JVC: e isto é indiscutivelmente uma desgraça? Não merece alguma discussão de RT?]. 2. Defender uma renegociação da dívida, para a qual dependemos da boa vontade dos credores [JVC: dependentes dos credores? “no comments”!].

A criação de um novo partido depende muito de condições práticas. Ninguém as tem tanto quanto os deputados e principalmente, com os seus meios financeiros e técnicos, os eurodeputados. Miguel Portas, com o seu enorme traquejo político, provavelmente iria fazê-lo. Rui Tavares é principiante. Remeta-se a essa sua condição ou então dá-nos razão para pensarmos que tem nisto uma outra agenda.

A praxe académica, uma alarvidade

Como em todos os anos, lá houve mais um incidente trágico relacionado com a praxe “académica”. É a coisa mais alarve da cultura estudantil. Cultura recente, que nem conhece o que foi o movimento associativo estudantil do fim dos anos 50, mas principalmente dos anos 60. Que nunca foi informada do papel que esses "associativos" desempenharam na guerra, no mato, a conversarem com os futuros capitães de Abril, a quem devem a sua liberdade.

Não venham com tradições. Praxe era só em Coimbra, codificada ao pormenor, engraçada e sem possibilidades de abusos. Mesmo com a coisa importante da "requisição" dos caloiros para as "repúblicas". Grandes patuscadas, muita conversa interessante. Quanto eu devo a essas noites dos meus patrícios dos "Corsários das Ilhas".

Não havia praxe em Lisboa ou no Porto, muito menos, obviamente, nas universidades então inexistentes ou nos institutos politécnicos, cujos estudantes traduzem uma mentalidade provinciana, quase rural.

Este ano, não presenciei a da minha universidade, porque tarefas muito importantes me fizeram refugiar-me em casa, a trabalhar sem perturbações. Mas, em anos anteriores, tenho visto que é coisa parva, sem humor, toda feita de insultos e humilhações. Que coisa engraçada que é obrigar jovens a gritar infindamente “eu sou uma besta”, com um penico na cabeça, ou pior, raparigas a gritar “eu sou uma puta”. Compreensivelmente, esta praxe é feita frequentemente pelos estudantes do 2º ano. Olho por olho!

É curioso que centenas de estudantes do segundo ano comprem a capa e batina só para a praxe - mesmo quando depois não conseguem pagar propinas. Mas quando, como chefe de protocolo, lhes peço que assim vão às cerimónias solenes da universidade, nem um. E pode a universidade controlar a praxe? Não, até é pior. Saem os portões da universidade, onde estão sob alguma observação, para ir fazer as alarvidades e gritar obscenidades no Campo Grande.

Não me digam que é um ritual de iniciação. Admito que seja, em alguns casos, uma forma brincalhona e alegre de dar a conhecer aos caloiros a vida universitária. Diz-me um neto, agora entrado no ISCTE, que foi o que lhe aconteceu. Lembro-me do mesmo no caso do meu filho mais novo, ao entrar no IST já há uma dezena de anos. Assim, muito bem.

Eu fui caloiro em Coimbra em 1960 e a minha primeira experiência de praxe foi péssima. Na latada, obrigaram-me a beber, valendo-me só que a minha casa ficava logo na Alexandre Herculano, embora ainda hoje não saiba como me consegui deitar. Depois, tudo mudou com a crise académica, em que os rituais praxísticos, por exemplo os decretos dos veteranos e o uso do traje de luto, serviram para a luta.

A terminar, transcrevo, com a devida vénia, um texto de um professor da U. Évora, J. Rodrigues dos Santos, antropólogo, publicado no sítio da universidade.
1) As praxes são, por natureza, uma forma de violência; essa é a sua condição normal 
2) A violência exercida é, desde o início e independentemente da sua intensidade, ilegítima; 
3) Os "deslizes", os "exageros", não são gerados por algum factor contingente e excepcional, antes estão potencialmente contidos em TODAS as ocorrências 
4) O que demonstra estas afirmações são os seguintes factos:  a) Todos os anos se verificam casos de extrema gravidade, que parecem normais aos olhos dos "praxantes" que recusam qualquer culpabilidade, invocando sempre causas externas aos acidentes que ocorrem; os casos conhecidos são uma minoria em relação ao número real de ocorrências;   b) A proliferação das praxes mesmo nos estabelecimentos que nunca tiveram as tais pretensas "tradições" é um fenómeno de contágio da violência sobre os outros como meio de gozo (jouissance) sexual perversa   c) O "folclore" que emerge das praxes, na sua tremenda monotonia, inclui principalmente três valores: um sexismo exacerbado (as mulheres são todas umas putas e as caloiras umas merdas); um racismo primário, que se exerce "em branco" (e é caso para dizê-lo, podendo ser exercido sem consideração de cor de pele) activando os esquemas de inferiorização colectiva e desumanização característicos do racismo em direcção dos colegas; e por fim um culto da "autoridade" concebida como poder puro e simples do mais forte sobre o mais fraco que é próprio dos sistemas fascistas. 
5) Uma "comunidade académica" incapaz de tomar posição clara e firme sobre este problema, a começar por quem tem responsabilidade institucional, mas incluindo também cada um dos membros da comunidade, é uma comunidade morta. 
Tal comunidade deixa de merecer o nobre adjectivo de "universitária". Apesar de tudo, nós somos a geração dos pais: calamos? consentimos? Cada um decidirá.
Também a ler, “As praxes - a grande e desejada humilhação”, uma muito boa entrada de Cristina Carvalho, no blogue “De Rerum Natura”.

Sem palavras



"Campanhas", cartoon de El Roto, no El País.

sábado, 29 de setembro de 2012

Assim é que é! (II)

Escrevi antes que "Hoje foi o primeiro dia". Hoje foi o segundo dia. Talvez até o terceiro, porque não pude estar presente e avaliar a jornada em Belém, no dia 21. Vai haver a tendência natural para comparar as manifestações de 15 e 29 de Setembro. Em relação a números, tenho a minha opinião (ou melhor, o meu cálculo aritmético), partilhada por muitos amigos com quem falei hoje, mas não vou entrar na guerra dos números, não vou satisfazer os meus adversários no que menos importa. Em ambos os casos, foi muito povo na rua. Já outras coisas talvez mereçam comentário, para todos aprendermos.

Posso estar a ser injusto, mas pareceu-me ver hoje mais gente “inorgânica”, os que vi na rua no dia 15, do que vi nesse dia 15 todos aqueles, muitos, que hoje iam em grupos organizados, com bandeiras da CGTP. De qualquer modo, como já aqui escrevi, que todos se tivessem juntado foi ótimo, mas ainda há muitas barreiras a vencer. O povo unido...

O povo na rua não deve ser condicionado por quem o chama (claro que sem pensar em grupos provocadores ou amalucados a convocar à invasão da Assembleia da República). Estas duas últimas manifestações já foram um primeiro passo. Diga-se em justiça que foi muito mais claro o apelo a hoje por parte do movimento “Não à troika” do que a atitude ambígua e de última hora da CGTP em relação à manifestação de há duas semanas.

Era visível que muita gente agora a iniciar-se na rua, os que até levam criancinhas, estava um pouco perplexa, aquilo não era a festa revolucionária de há duas semanas. Andamos por ali, contando gente, falando com amigos, olhando para toda aquela gente com olhos de sociólogos amadores, mas afinal numa razoável atitude política, cientificamente objetica, não sectária. 

Entretanto, Arménio Carlos era ruído de fundo. Discurso longuíssimo, chato, sem sequer a qualidade e a plasticidade intelectual de Carvalho da Silva, nem uma proposta de reflexão a fazer pensar. Milhentas bandeiras sindicais. Como se sente com isto quem é hoje apenas pessoa independente, homem do povo na rua?

Mas o que mais me impressionou foi o estilo. Há duas semanas, alegria no protesto, porque alegria da camaradagem, humor, espontaneidade, cartazes de fazer partir de rir. Hoje, tudo previsível, disciplinado, abandeirado, só o tal chato discurso, nem uma canção, nem uma palavra de ordem com piada, tudo coisa para gente enquadrada. Assim não se vai lá. A revolução sempre foi imaginação (mesmo no fracassado maio de 68), até quando elegeu como símbolo, na comuna, umas canção romântica, nada política, Le Temps des Cérises.

Ainda algumas notas pontuais, técnicas, que me surpreendem quando se compara a inexperiência dos promotores da manifestação do “não à troika” com o traquejo da CGTP. 

A ênfase na concentração num local parece-me falhada. Começa logo pelos números. Ao contrário de uma manifestação de percurso longo, a concentração num único espaço (é certo que tendo de contar com as ruas adjacentes, como hoje) permite facilmente o cálculo de tantos metros quadrados (hoje, com o Google maps, é fácil) vezes tantas pessoas por metro quadrado (não vou dizer quantas, experimentem). Já no caso de uma manifestação em cortejo, os métodos são outros, por exemplo o número de pessoas que passam por minuto vezes o tempo total de passagem. Mas não vou entrar nisto. Em ambos os casos, foi o povo na rua.

Mas ainda sobre números e sobre a opção pela concentração num local, ainda uma nota. Estive em locais em que podia aperceber-me do fluxo de pessoas. Nunca o terreiro ficou cheio, mas durante o longuíssimo discurso, durante uma hora, parece-me que foram muitos milhares de pessoas, simultaneamente, a entrar e a sair. Como manifestantes, devemos contar a soma de ambos os fluxos. Mas porque entravam e saiam tantas pessoas? Pela minha parte, direi que porque nada me atraia, missão cumprida, a ficar ali.

Pequeno pormenor, não percebo a decisão da hora, 15 horas. Num sábado à tarde, ainda praia, almoço tardio e compras, tempo para deixar as criancinhas, as 17 horas de há duas semanas foram acertadas. Hoje, quando entrei no metro às 16, eram multidões já com uma hora de atraso. Já eram quase 17, estava eu à saída da Sul e Sueste, ainda havia muita gente a chegar, mas quase outras tantas a ir para casa, tinham cumprido o seu dever. Onde está a máquina eficiente da CGTP?

Diferença ainda mais importante foi a distribuição geográfica. Hoje foi só manifestação “nacional” em Lisboa. A CGTP anunciou centenas de autocarros. Muito bem, mas cada autocarro são 50 pessoas, logo a participação extra-Lisboa foi menor do que as manifestações locais do dia 15, que ainda por cima foram sentidas como sair à rua na sua terra. Onde ficaram os bem 100.000 manifestantes do Porto? 

Há forma de vencer estes obstáculos a manifestações congregadors, ainda que eu pense que, felizmente, se estão a atenuar? Penso que sim, se conseguirmos uma plataforma comum. Por isto estarei no dia 5 no Congresso Democrático das Alternativas.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Quem tem medo da revolução?

Nenhuma leitura como a que reproduzo me podia cair tão bem depois das minhas entradas precedentes. Sem comentários, revendo-me inteiramente neste texto de grande lucidez, com a inteligência brilhante do meu querido amigo J. M. Correia Pinto, no seu blogue Politeia. Lucidez e inteligência, coisas importantes, mas quando vêm com coragem demonstrada na vida e coerência sem concessão a benesses. Aqueles de nós que ainda vão ficando, sem concessões, dos anos 60s.
Os programas da Troika qualquer que seja o zelo ou a incúria com que são levados à prática falharam completamente aos olhos do povo. As metas propostas nunca são alcançadas e a realidade subsequente à sua aplicação é sempre pior do que as piores previsões poderiam supor. Foi assim na Grécia. É assim em Portugal e na Irlanda. Será assim na Espanha. Como já foi assim no século passado em África, na América Latina e na Ásia.
Na Europa só a luta dos povos pode inverter a situação. Desse ponto de vista o exemplo grego é importante. Ao longo destes últimos anos tem-se elogiado e enaltecido a luta do povo grego contra a TROIKA e contra o governo que aplica servilmente as medidas por ela impostas. Todos temos feito isso. E, todavia, vendo friamente as coisas, o exemplo grego não é um bom exemplo.
A Grécia é hoje um país completamente destruído e destroçado. Não obstante a revolta que campeia na sociedade grega e no íntimo de cada grego, a Grécia é actualmente um país sem esperança. Onde não se aceita nada do que está sendo ou foi feito, mas onde parece já não há força para inverter a situação por falta de verdadeiras alternativas.
O desemprego em massa, a precarização completa do trabalho, a degradação progressiva dos salários não são bons conselheiros nem as verdadeiras molas reais para uma luta vitoriosa. O combate, o grande combate contra a austeridade, deveria ter sido travado antes. Quando a Grécia ainda se não tinha esvaído material, psicológica e moralmente.
É essa situação que temos de evitar em Portugal e em Espanha. O combate, o combate decisivo, tem de ser travado enquanto temos força material e anímica para o fazer. Esta é a nossa hora. A hora da vitória. Não podemos deixá-la passar. Nunca como hoje se reuniram tantas condições para travar um combate vitorioso.
Para isso é preciso rejeitar as falsas alternativas com a mesma força, o mesmo vigor, com que se rejeita o programa do bando que ao serviço da TROIKA governa Portugal. O único caminho alternativo é o que for trilhado por nós. Um caminho que não conte com o apoio daqueles que nos têm imposto a pobreza e a marginalização. E não há que ter medo: Nós sempre soubemos historicamente encontrar o nosso caminho!
Este caminho ninguém o consegue hoje definir, nesta situação de enorme imprevisibilidade e de aceleração do processo histórico. Aceleração até no essencial, de que tantas vezes falo, a viragem na hegemonia, no sentido gramsciano.

Pequeno exemplo: depois da manifestação de sábado, conversei com um casal idoso, de reformados, com tendência para ideologicamente conformados com “o que tem de ser”, adeptos da visão económica de tipo familiar e honesta, votantes do PSD nas últimas eleições, por simples reação anti-Sócrates. No entanto, disseram-me que já não podiam mais e que, se não fosse a idade, lá estariam comigo, e que se tinham entusiasmado a ver a reportagem da televisão. Aproxima-se uma situação revolucionária.

É claro que para o JM e para mim, no recato da nossa idade (o que não quer dizer acomodação), revolução não tem nada a ver com coisas – não digo que não respeitáveis – de jovens anarcas, tatuados e com rastas. O que significa é que este separar de águas, desse lado (mas sempre vendo o que daí se pode aprender e, obviamente, sem misturar num grupo homogéneo toda a juventude), não serve para alinharmos com os instalados na democracia formal em crise, na exclusividade dos mecanismos institucionais. A revolução vem aí. Como diz o meu grilo falante, que me alerta para o entendimento comum, é preciso é que nós, com um sentido dinâmico da história, do processo histórico, mostremos que a revolução não é coisa de assustar a massa aculturada, não é incendiar carros e partir montras.

Afinal, é coisa com que muita dessa gente concorda. Acabar com os privilégios, traduzir a ética republicana no sistema de vencimentos dos políticos, punir eficazmente a corrupção, acabar com as fraudes fiscais, com a especulação financeira, com os benefícios dos offshores, mudar o balanço de distribuição de rendimentos do capital e do trabalho, valorizar o esforço de toda a vida dos reformados, investir na educação dos nossos jovens, etc., etc.

Para isto, é quase indispensável que a revolução suspenda temporariamente algumas garantias “democráticas”, legais. São medidas revolucionárias a combater outras medidas “legais” que o sistema estabeleceu a favor dos privilegiados. O 25 de abril tinha de respeitar os direitos "sagrados" dos pides (e muito fez o Spínola para os proteger)? Não haja ilusões. Sem uma suspensão provisória do sistema legal, quem o fez continuará a usá-lo em seu favor. Claro que nada disto tem a ver com violação dos direitos humanos. Nenhuma revolução se legitima, na mentalidade moderna, com tortura, prisão arbitrária, coisas que tal. 

Revolução ou democracia? Revolução não é intolerável como violação da “democracia”? Mas afinal, a tortura de afogamento com água, à americana dos presos de Guantanamo, é mais aceitável do que a tortura do sono ou da estátua da Pide?

Em conclusão e muito simplesmente. A ordem política, traduzida desde logo nas constituições, tem uma base indiscutível, que faz parte da civilização, desde a revolução francesa, os direitos do homem e do cidadão. Mas, depois, o ordenamento concreto traduz o pensamento e valores dominantes de uma classe social dominante e de camadas sociais diversas que assimilaram passivamente essa ideologia. Nada disto é sagrado e está em permanente mudança.

Não se espera que seja o sistema político instaurado por um conjunto hegemónico de ideias e de interesses que se suicide historicamente. A mudança vem dos que podem mudar o sistema, por fora dele, por revolução. Logicamente, definindo o seu principal inimigo, o sistema denegra a revolução, o espetro de que falava Marx. Mas a revolução não é nenhum papão, não é obrigatoriamente violência (quantos mortos houve no 25 de abril, e os que houve só por ação da Pide?), é o parteiro de uma nova criança promissora.

Lembrando Camões,
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,  
Muda-se o ser, muda-se a confiança; 
Todo o Mundo é composto de mudança, 
Tomando sempre novas qualidades.

Lembrar a história

Dezenas de milhares de mineiros espanhóis em luta. Cerco às Cortes em Madrid. Um milhão nas ruas de Barcelona a quererem a independência. Muitos confrontos em Atenas. Mais pacificamente, centenas de milhares de pessoas na rua em Portugal, no dia 15 e certamente também sábado, 29. Digo mais pacificamente porque ainda não nos apertaram tanto a corda, porque essa da brandura dos nossos costumes tem muito que se lhe diga (guerrilhas das lutas liberais, patuleia, 1ª república, etc.).

Leram a história europeia, 1848 e 1918? 2013, quando muito 2014, também ficará nessa história revolucionária? 

Assim é que é!

“Manifestantes de 15 de Setembro apelam à participação maciça no protesto da CGTP”, é notícia hoje no Público:
Os subscritores do manifesto “Que se lixe a troika! Queremos as nossas vidas!”, que convocaram as manifestações que levaram centenas de milhares de pessoas às ruas a 15 de Setembro, pedem aos portugueses que “esqueçam eventuais e pontuais divergências e se unam”. No imediato, isto significa participar na manifestação da CGTP convocada para este sábado, em Lisboa. 
A construção de uma “frente de resistência comum” é uma preocupação dos 29 activistas que assinaram o documento original e que, nesta segunda-feira, emitiram um comunicado conjunto a apelar a uma “participação maciça” no protesto do próximo sábado.
No dia 15, devem ter estado na rua muitos apoiantes da CGTP. No dia 29, estarão no Terreiro do Paço muitos manifestantes do dia 15, mesmo que não se revejam na CGTP. Assim é que é. Lá nos encontraremos.

No sábado 15, reencontrei passado ao ouvir tanta gente voltar a gritar “o povo unido jamais será vencido”. Muitos não saberiam que o slogan não foi nosso, herdámo-lo do Chile. Simplesmente, lá, ele foi sabotado por grupos sectários e dogmáticos que tudo fizeram para, em nome da revolução que queriam só deles, torpedearem a unidade de esquerda em torno de Allende e abrirem as portas ao pinochetazo. 

Cá, também foi um pouco o mesmo, com o esquerdismo (e a otelopatetice) a sabotar o que podia ter sido a última possibilidade de unidade, depois da cisão entre gonçalvistas e os nove. Pior ainda, porque ao menos, no Chile, PC e PS estavam bem unidos, o que não se passava cá. Não permitamos mais isto.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

O génio colossal de Vítor Gaspar

1. Segundo o Público, referindo-se às Grandes Opções do Plano,
“O Conselho Económico e Social (CES) avisa que o agravamento da Taxa Social Única dos trabalhadores (TSU) de 11% para 18% irá penalizar "fortemente" a procura interna", contribuir para a quebra das receitas fiscais e que se corre "o risco de uma espiral recessiva" nos próximos anos em Portugal.
(…) Os parceiros sociais lamentam que o executivo não apresente "nenhum impacto [da subida da TSU] no que se refere aos efeitos na procura interna" e, consequentemente, não tenha em conta os seus efeitos nas receitas do Estado. "Tendo em conta a experiência recente, não é feita a análise da incidência desta medida na degradação da receita fiscal e consequentemente no défice das administrações públicas."
O quê? O governo, o brilhante economista Gaspar, não entraram em conta com o que o senso comum de tanta gente não economista, eu incluído, faz logo pensar, em relação a uma economia muito mais dependente da procura interna do que das exportações? Que o hipotético efeito da redução da contribuição patronal, em termos de competitividade exportadora, é mais do que anulado pela retração da despesa de todos os que viram o seu poder de compra diminuído em 7% pela subida da TSU? O ódio dos neoliberais a Keynes é assim tão cegante? Não dá para acreditar!

2. Também no Público,
O ministro das Finanças elogiou esta quarta-feira a “tolerância e maturidade” dos manifestantes contra as medidas de austeridade e sublinhou que a troika sairá mais depressa de Portugal se o programa de ajustamento for concluído. (…) O ministro defendeu que para terminar a intervenção externa da Comissão Europeia, BCE e FMI, “a única hipótese é concluir com sucesso o processo de ajustamento, para não ser necessário mais tempo”. Tudo o resto, advertiu, “só fará a troika ter de ficar mais tempo em Portugal”.
Surrealista! Como, para Gaspar, a manifestação era pela saída da troika, vá de virar completamente a argumentação, apoiar a sua saída, “como os manifestantes”, mas por rápida e dura aplicação do programa da própria troika. Ela vai sair quando já lhe tivermos dado tudo.

Gaspar não pode ser tão obcecado que não tenha ouvido, nas reportagens sobre as manifestações, que os clamores mais fortes não eram contra a troika, eram a mandar para a rua o seu governo, eram a chamar-lhe ladrão (ouvi  muitos a mudarem o “l” para “c”). Está a brincar conosco, a ofender a nossa inteligência? Não dá para acreditar.

“Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?”

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Un Grande de España!

Santiago Carrillo, acima de tudo um homem de enorme coragem. Em 1934, na revolta asturiana, em que foi preso. Em toda a guerra civil espanhola. Em 1968, a oposição ao brejnevismo rupestre, à morte da primavera de Praga e, com Berlinguer e Marchais, a criação do eurocomunismo. Depois do franquismo, a clarividência do apoio à transição baseada na monarquia, com a coragem de afrontar toda a tradição fortemente republicana do seu partido. E, simbolicamente, a coragem daquela figura solitária, ou quase, que vimos orgulhosamente sentado na sua bancada de deputado, no 13 de fevereiro, sob ameaça dos tiros de Tejero. Só lhe vejo paralelo em Mandela.

Também valia a pena saber bem a história de quanto o antifascismo português, e principalmente o PCP, deve a Carrillo e aos partidos comunistas do lado do eurocomunismo. A URSS e seus satélites davam meios financeiros, estação de rádio em Bucareste (a tal Roménia pouco simpática ao movimento comunista moscovocêntrico a que o PCP era tão leal), estudos a clandestinos portugueses, assistência médica. Mas as verdadeiras condições de trabalho e de organização, em clandestinidade, fora o caso especial da Argélia para o trabalho frentista, estavam em França (um pouco também na Itália) e com a enorme ajuda do PCF e do PCE (também clandestino em França), este último nomeadamente na passagem de clandestinos através da Espanha.

Muita gente, depois do 25 de abril, estranhou ver Cunhal regressar num voo de Paris. Esperavam que de Moscovo. Conhece-se bem a lealdade de Cunhal ao sol soviético, a sua crítica aos eurocomunistas, mas com toda a sua enorme capacidade política, foi a estes que mais recorreu. Era de Paris, não de Moscovo, que Cunhal dirigia o PCP.

Isto faz-me lembrar duas experiências pessoais. Primeiro, em 1972 ou 73, em Genebra, o enorme comício do PCE, em que dezenas de milhar de espanhóis imigrantes na Suíça não tiveram medo de serem filmados. Como não tinham, como eu vi, de se concentrarem em S. Fançois, em Lausana, a apoiarem os seus camaradas italianos que iam embarcar no "treno rosso". Nesse comício de Genebra, a inesquecível subida ao palco da Passionaria, pessoa que eu, depois de alguns anos de luta e leitura, nunca tinha pensado ver ao vivo. Além do mais, a pose e até a  Já repararam como Cunhal é parecido com ela? A seguir um empolgante mas ao mesmo tempo sereno e objetivo discurso de Carrillo

Outra experiência, numa visita a Moscovo, em que fiquei alojado no hotel onde viviam grandes dirigentes comunistas: Prestes, Corvallan, o dirigente grego no exílio, de que não recordo o nome, já não me lembro quem mais. Via-os a conversar na sala do hotel e reverenciava-os, mas, ao mesmo tempo pensava: “o que estão a fazer aqui? Razão teve Cunhal em sair deste repouso dourado e ir clandestino para Paris, onde também estão os dirigentes espanhóis”.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

O Monti português

A direita luta, honra se lhe faça, vai a todas. Tem faro político. Já percebeu que a solução Passos Coelho tem dias contados e já prepara outra. Começam a aparecer os lamirés de um governo tecnocrático. Leia-se um blogue do Expresso, online. Mas, como sempre, "a direita portuguesa é a mais estúpida do mundo", vem com atraso de meses em relação a Monti.

E quem é o Monti português? Deixem-me adivinhar e deixem-me rir. Borges? É deitar mais gasolina na fogueira deixada por Gaspar (reparem que, ao contrário do primo, eu falo mais de Gaspar do que do tonto Coelho). Constâncio? E foi secretário geral do PS, este redondo “intelectual” nunca desafiado pelos ângulos da nossa inquietude? Etc.? Ou, para terminar delirantemente, aquele que um caro amigo, antifascista de sempre, me disse que era um homem muito clarividente que eu injustamente ridicularizava, Medina Carreira? Ou Manuela Ferreira Leite? Mal por mal...

A jornada de 15 de setembro

Há sempre a guerra dos números. Desde há muitos anos que aprendi a medir manifestações, normalmente sempre muito por baixo do que depois apregoavam os organizadores. Na velha manifestação da fumaça, um milhão a encher o Terreiro do Paço que, no máximo dos máximos, apertados, 3 pessoas por metro quadrado, leva 150.000 pessoas. Um milhão de peregrinos em Fátima, segundo a Igreja, num recinto com capacidade para 300.000 pessoas. Outra técnica é a da amostragem de quantas pessoas passam por minuto e depois multiplicar pelo tempo de passagem da manifestação. Com tudo isto, para mim, e dividindo metodologias de cálculo com a minha mulher, tentando sermos objetivos, a manifestação de Lisboa, sábado, envolveu cerca de 200.000 pessoas.

Mas interessa mais ter uma ideia qualitativa. Saíram à rua muitas e muitas famílias com crianças ao colo e carrinhos de bebé. Coisa desconfortável, sinal de nem terem meios para contratar a entrega das crianças, exige forte motivação. Viam-se pessoas - principalmente com alguma idade - vestidos modestamente, outras notoriamente de burguesia até agora relativamente protegida. Via-se gente de todas as idades. Via-se gente com hábito de manifestações, respondendo sempre às palavras de ordem, muitos outros com um não sei quê de atitude que dava a entender ser a primeira manifestação a que iam. Via-se espontaneidade, no humor de muitos pequenos cartazes que cada um preparou em casa.

Principalmente notório, o caráter inorgânico da manifestação. Nenhuma “cabeça” com notáveis organizadores, apenas meia dúzia de anónimos com a bandeira portuguesa. Na praça de Espanha, nem havia o tradicional palco para os discursos finais. Houve-os, mas sem que eu conseguisse perceber quem os proferia. Dois colegas meus, ontem, diziam-me como comentário mais importante para eles: “lá estivemos, sem ser à ordem de partidos”. Quantos eleitores do arco troikiano, os tais 80%, estarão hoje a dizer o mesmo?

Não é difícil ter uma ideia. Nas últimas eleições, os que votaram protestando foram 20%, 1,5 milhões. Se em Lisboa saíram à rua 200.000, não é abuso pensar que, em todo o país, foram 400.000. Também não me parece irrazoável pensar que, da grande massa um pouco amorfa de descontentes, só saem à rua 1/8 ou 1/10. Significa que a rejeição sociológica da certeza da política do governo e da troika passou de 1,5 milhões para cerca de 3 ou 4 milhões, metade do eleitorado. O país está dividido a meio. E sempre que se passou isto, veio uma revolução ou, pelo menos, uma crise insurrecional.

Onde está já a legitimidade democrática do apoio acrítico à política de austeridade, até para além troika? Na votação de 2011? Como o tempo passa depressa!

O PSD e até o CDS não percebem que estiveram na rua muitos dos seus eleitores? E o PS não percebe que muitos dos seus eleitores que estiveram na rua quiseram dizer “a troika que se lixe”, querem uma alternativa à política do memorando que o PS subscreveu e que continua a não renegar? E alguma coisa pode mudar na enorme inércia da outra esquerda, PCP e BE? Fica para a próxima entrada.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Alcácer Quibir

Estudos anteriores do Banco de Portugal e outros, até apoiados pelo grão-”nerd”, indicavam que a mexida na TSU era ineficaz ou mesmo perigosa. Tanto quanto sei, não quantificavam os efeitos no emprego.

Um estudo recente que ninguém conhece e que ele não divulga, lá do seu círculo pseudo-académico de iluminados, diz o contrário e ele, sem mais ponderação, sem comparação crítica dos dois estudos, apenas com a fé dos fanáticos que o move, inverteu o rumo. Anuncia efeitos no emprego: criação de 50.000 novos postos de trabalho.

Hoje, um grupo de professores portugueses de economia (pelo menos um dos quais, Luís Aguiar-Conraria, doutorado nos EUA - vejam o seu blogue, “A Destreza das Dúvidas”), publicou no sítio da U. Minho um estudo de contradita, “Emprego e TSU - O impacto no emprego das alterações nas contribuições dos trabalhadores e das empresas”. Anuncia efeitos no emprego: destruição de 68.000 postos de trabalho.

Em que ficamos?

Não sou economista, não sei quem tem razão, embora o meu senso comum me diga que o excedente de tesouraria com que vão ficar as empresas não vai ser aplicado em criação de emprego. Com ou sem mexida na TSU, qual é o empresário que arrisca contratar novos trabalhadores em época de tal crise? E em que é que essa mexida altera a situação das empresas, a maioria, que produzem para o mercado interno, um mercado em depressão? Vão baixar preços, para compradores que viram proporcionalmente muito mais agravado pelo mesmo processo o seu poder de compra? Afinal, a economia é coisa muito difícil de entender?

O que vejo é que esta medida de economista louco e à Frankenstein, posta em prática pelo seu chefe governante pouco dotado e inculto, não tem obviamente fundamentação técnica, que nunca foi experimentada, que é contradita por estudos científicos como este de hoje.

Gaspar é um fanático, talvez mais desviante do que isto, um homem que usa o poder para experimentações de “comprovação” da sua fé, vendo só números no que todos chamamos gente. Nunca um tresloucado teve tal poder em Portugal, desde D. Sebastião. Vamos outra vez para Alcácer Quibir? 

O direito à asneira

Parece que ninguém duvida de que a jornada de protesto (e espero que luta) de sábado foi um êxito. Nem mesmo o governo a diminuiu, atirando com números ridículos, como faz nas greves. Pudera. Pois se foi o próprio governo que esteve por detrás das manifestações! Não acreditam? É o que escreve o inefável “Sol”, por confidência de um ministro (!):
“Era preciso mostrar à troika que os portugueses não aceitavam sem protestos uma austeridade sem limites, bem como a inflexibilidade quanto às metas. A onda de protestos que a comunicação do primeiro ministro desencadeou terá atingido esse propósito e aberto os olhos aos representantes do BCE, FMI e CE, que perceberam que a contestação social também podia tornar-se uma realidade em Portugal”.
Espantoso! Ou talvez não, se tivermos presente o que habitualmente destila a cabecinha do diretor do jornal.

domingo, 16 de setembro de 2012

E continua

O movimento inorgânico “Que se lixe a troika” convocou nova manifestação para o dia 21, em Belém, às 17 horas, por ocasião do Conselho de Estado. Nenhum dos conselheiros ou dos assessores presidenciais deixará de dar uma olhadela pela janela (vejam o vídeo ao lado, “Ça ira”) e de deixar uma alusão nas suas intervenções. Portanto, como objetivo acertado da manifestação, nada a dizer.

Mas é uma aposta arriscada. Dias depois do enorme impacto da manifestação de ontem, não pode haver “flops”. Há muita gente que ontem foi pela primeira vez na vida a uma manifestação, precisam de pausa para outra. E viram quanta gente levava crianças? Era sábado. Numa sexta à tarde, onde as vão deixar para ir a Belém?

Com isto, não estou a ser pessimista nem derrotista. Pelo contrário, o que quero dizer é que estas prováveis dificuldades nos exigem o máximo de esforço de mobilização, sem descansar sobre os louros de sábado. É o que estou a tentar fazer aqui. E a pedir que todos façam.

sábado, 15 de setembro de 2012

O povo disse "não!"



Os próximos tempos vão trazer muitas surpresas. Não digo que seja a revolução, seria profecia sem ainda suficiente fundamento. Mas - não sei bem de quê - hoje foi o primeiro dia.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Que medo!...

Veremos amanhã, mas tudo me leva a crer que as manifestações, principalmente a de Lisboa - claro que lá estaremos - vão ser um sucesso. Depois comentarei. Para já, uma breve nota. É de calcular que o governo, acossado por todos os lados, com a própria coligação a ameaçar rotura, tenha o realismo mínimo de não se refugiar numa atitude sobranceira de desvalorização da rua, contrapondo a sua legitimidade eleitoral (quanto vale ela hoje?).

Por isto, denotando preocupação, lá vem hoje com coisa já velha no grupo político de Passos Coelho. Lembram-se da manifestação dos pregos, de Ângelo Correia, tutor do nosso primeiro? Já se começa a ventilar para amanhã o risco de violência, de infiltrações de grupos ninguém sabe quais, que a polícia vai fazer sair o corpo de intervenção, etc.

O mais triste é que um jornal - tanto quanto vejo um só - tido ou autoconsiderado como de referência, o Público, dê cobertura destacada a esta manipulação. Veja-se o título, “Manifestações de sábado em todo o país motivam receios de violência” e a notícia, que, digo em abono da verdade, até nem corresponde ao alarmismo do título.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Recordando

Escrito por Nicolau Santos, no Expresso de 30 de junho, o que nos deveria ter feito prever as medidas de agora:
Se fosse outro Executivo, cairia o Carmo e a Trindade com acusações de incompetência e incapacidade para travar o despesismo do Estado. Ora perante um Governo que calculou que o IVA ia crescer 11,6% e está confrontado com uma descida de 2,8% até maio; com uma quebra nos impostos sobre veículos que estava prevista ser de 6,5% e já vai em 47% (!); com um recuo esperado de 2,1% no imposto sobre produtos petrolíferos, que ascende já a 8,4%; com um aumento no subsídio de desemprego de 23%, quando o Executivo apontava para 3,8%; e com uma quebra nas contribuições para a segurança social de 3%, quando se esperava apenas 1% - o que se pode dizer se não que se trata de um falhanço verdadeiramente colossal da equipa das Finanças e, em particular, do brilhantíssimo e competentíssimo ministro Vítor Gaspar?
Também para mais tarde recordar, tomar nota de que, com a mesma infalibilidade “científica”, o ministro garantiu agora que as mexidas nas contribuições laborais e patronais para a segurança social vão criar 50000 novos empregos e que o PIB crescerá 0,5% em dois anos só no que se deve a estas medidas.

Da mesma forma, as promessas, há meses, de que 2012 seria o fim da crise, com retoma em 2013 (embora com nuances de discurso entre Passos Coelho, Gaspar e o obscuro Álvaro), que tenho algures mas que agora não encontro. Também, ainda há dias, o anúncio de que o governo estava em condições de se apresentar no mercado primário de títulos de dívida já no segundo semestre de 2013, com emissão a curto ou médio prazo, para pagamento de dívida em vencimento.

É bom começar a fazer a lista de promessas e falhanços de Gaspar. Politicamente ou de outra forma, ele não poderá deixar de vir a ser responsabilizado pela sua irresponsabilidade dogmática, que lhe permite usar o país como cobaia para pôr em teste a sua ideologia (com a cumplicidade da troika, que também deseja este teste, ainda por cima em país alheio).

Gaspar começa a ser um problema de saúde pública, “um foco de infeção, peixe podre num bairro onde miam gatas”.
NOTA - Entretanto, num destes últimos dias, o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, afirmou no seu parlamento que “os resultados macroeconómicos em Portugal mostram que as reformas do programa de ajustamento financeiro estão a surtir efeito”. A Europa política entrou em loucura? Como é que fanáticos ideológicos podem negar tão convictamente a evidência? Estamos nas mãos de quem?

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Intoxicação mental

Dormir mal pode ser sinal de Alzheimer. É uma descoberta científica que poderá levar à detecção e tratamento do Alzheimer numa fase ainda precoce da doença (...)”. Esta notícia do Expresso pode parecer uma coisa menor nas preocupações gerais, mas quantas pessoas com insónias não ficarão preocupadas? E até, em ciclo vicioso, com mais insónias (provadamente, neste caso, efeito de a notícia agravar a ansiedade, como eu e muita gente sabe, nesta vida "stressada"), logo mais preocupação, logo mais insónias, logo mais pavor do Alzheimer ao dobrar da vida. Já estão a pensar no futuro num lar, na demência, na tristeza de vida, até no abandono pela família.

Isto não é formalmente criminoso, não aparece no Código Penal, mas é irresponsável e imoral. É como os políticos que dizem que cumprem a ética porque não cometem ilegalidades. 

Devem ser censuradas notícias destas? Obviamente que não. Só aceito a censura [ver nota 1] em casos expressamente previstos pela Constituição, como seja a apologia de crimes ou de ataque a valores civilizacionais consensuais. O que está aqui em causa é outra coisa de que muito me queixo, com frequência: a irresponsabilidade e incompetência da comunicação social. 

O nosso “quarto poder” não fica nada a dever em mediocridade aos poderes formais e institucionais que tanto  critica. E as universidades que deitam cá para fora, com muito sucesso - quer dizer, muitas inscrições de alunos, muitas receitas - toda esta nova vaga de jornalistas, assessores de relações públicas, multimediáticos, comunicativos, inventores (ou copistas) de joguinhos infantis para entretenimento grupal de reuniões de empresas, deviam pensar no que estão a fazer.

Um jornalista competente deve ser um pedagogo. Pelo menos um autocrítico consciente do que de pedagogia perversa pode ter a sua notícia, ou aquela que acriticamente transcreveu de uma agência que, por sua vez... 

Neste caso, relataria o achado mas chamando a atenção para que ele é de simples correlação (como tanta coisa na medicina); que a insónia é muito frequente e que se deve na maioria dos casos a situações sem grande ou nenhuma importância patológica; e que de forma alguma esta coincidência tem o significado, por exemplo, de expetoração com sangue, dores fortes e frequentes no peito, icterícia, sangue na urina, falta de sensibilidade nos pés, etc., sinais de alerta para doenças graves (não estou a falar de Alzheimer). Obviamente que, na constelação de sintomas e sinais do Alzheimer, a insónia, a confirmar-se este resultado, é sinal menor, a não justificar alerta ou a permitir diagnóstico precoce e de forma alguma sinal patognomónico (um palavrão médico que podem ver na Wikipedia).

Mesmo assim, não basta o aperfeiçoamento da qualidade da comunicação tradicional para nos proteger. Os meios profissionais, como o da ciência, sujeitos hoje a enormes e perversas tensões competitivas, assim como as suas instituições, têm comportamentos que vão ao encontro da quase desonestidade na informação académica [nota 2]. E a net?

No campo da saúde, não se recebem quase todos os dias (ainda não percebi porquê, é geralmente a partir do Brasil) as coisas mais inimagináveis de desinformação, mesmo perigosa ou, pelo menos, traumatizante para pessoas com problemas médicos? Como poderei classificar a perturbação de uma amiga, com carcinoma da mama, tratado e com boa evolução, que estava angustiada por “ter sabido” pela net que o seu cancro era causado pelo consumo de leite? Claro que compreendeu o que lhe disse, que, ao seu mal não devia acrescentar uma osteoporose!

Ou a campanha contra as vacinas, que já causou o reaparecimento de doenças praticamente já extintas, como o sarampo - que pode ser mortal? Ou a apologia de medicinas alternativas que, mesmo que não lesivas diretamente, têm o risco de afastar o doente da verdadeira terapia, deixando-o entregue a um simples efeito placebo? Ou campanhas de denegrimento de um produto (por exemplo, o recente alerta contra o risco cancerígeno dos desodorizantes, ou há tempos contra o SDS componente de alguns cremes cosméticos - curiosamente, é em geral na área dos cosméticos), que tresandam a ação encoberta de empresas rivais?

Os governos, as organizações internacionais de saúde, algumas grandes fundações, têm feito um trabalho notável para reduzir o flagelo das intoxicações - drogas, álcool, tabaco. Mas quem e como nos pode proteger desta “net-toxicidade”? Até porque, ao contrário do tabaco que não tem qualquer benefício, a net contrapõe a esse lado do mal, tóxico, as enormes vantagens que conhecemos. Senão, não podia estar agora a escrever-vos neste “blogue”.
NOTA 1 - No caso em que disse que aceitava a censura, até há muita gente, e meus bons amigos, que não concordam comigo, achando que a proteção da sociedade se faz a posteriori, por condenação do ato criminoso de expressão. De facto, invoquei incorretamente a Constituição, que pune mas não previne. Tenho dúvidas da eficácia disto, depois do mal estar feito. Mas também é verdade que fica sempre questão importante: quem decidiria a priori, como censura? E quem guardaria os guardas, "quis custodiat ipsos custodes?", velha questão que os romanos, pela voz de Juvenal, punham no centro da sua conceção da democracia?


NOTA 2 - Para ser justo, devo também culpar a minha comunidade científica. Um dia escreverei a sério sobre isto, mas aqui deixo alguns apontamentos. De certa forma, alegra-me já estar fora da investigação. Era coisa em que o mérito era estritamente intelectual, reconhecido pela estima dos pares, pelo significado indiscutível da autoria de bons artigos, em lista de três ou quatro autores, no primeiro lugar quando se era jovem e se fazia todo o trabalho duro de bancada, no último lugar quando se dirigia o trabalho. Orgulhávamo-nos de trabalho que era simplesmente bom, era cientificamente "bonito" e relevante, não era preciso que servisse para mais do que aumentar o conhecimento e educar cientificamente. 

Não havia conferências de imprensa antes de o artigo estar publicado, não se anunciava que um mero resultado científico modesto ia permitir curar o cancro ou permitir o seu diagnóstico precoce. Não havia comunicados a anunciar projetos que ainda nem começaram mas que já se sabe que vão dar prémio Nobel. Não se valorizava estar na 59ª posição da lista de 120 autores de um mega-artigo de "colaboração" internacional (de facto, frequentemente, de exploração internacional). Ríamo-nos de quem publicava muito porque tinha uma "caixa negra" (por exemplo, uma tecnologia avançada) por onde entrava produto químico e saia artigo, sem que o autor percebesse minimamente o que era o problema científico em causa. Enfim, a pequena comunidade científica não era a atual feira de vaidades. Em suma, estou velho e fora desta carroça. Mas também não quero estar nela.

Sem comentários

Excelente texto, a ler e reler, combinando a dureza do murro político de quem tem todas as credenciais para o dar com a grande escrita que se espera de Mário de Carvalho: "Denegação por anáfora merencórica" (mais facilmente legível aqui). Não tem a ver diretamente com a pobre polémica em curso no Público sobre a crítica de Manuel Loff ao denegador do salazar-fascismo e hoje menino-bem de toda uma ex-"esquerda" (?) de grémio literário, Rui Ramos. Mas lá que põe essa polémica no são é inegável.

E aproveito para chamar a atenção aos "posts" que sobre isto tem escrito Joana Lopes no "Entre as brumas da memória".

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Economia sociopática

No seu último artigo no “i”, escreve Jorge Bateira que “na realidade, a despesa de uns é, ao mesmo tempo, o rendimento de outros”. Lapidar, simplesmente elementar, meu caro Watson, para quem é minimamente inteligente como são quase todas as pessoas. Desde logo, os alemães, ao menos os que não leem o Bild e que deviam pensar que a nossa dívida é o excedente deles.

Quantas vezes já eu li isto escrito pelos mais reputados economistas (com destaque para os keynesianos e economistas “de esquerda”, principalmente americanos), mas sem sucesso! Sem mais dizer, logo duas observações básicas. 

Primeiro, a falácia da alegoria da economia de uma boa família honesta, coisa que Salazar usou e de que abusou, como agora fazem os troikianos da nossa praça. Na economia familiar, só se lida com os rendimentos e despesas da família, não com a economia do que fica fora de portas. Dizer que “somos pobres mas honestos, não nos podemos endividar, temos de pagar as dívidas” é estupidez, ignorância rupestre da economia ou demagogia. Não há economia de casa fechada, sem trocas, a menos que se viva em comunidade primitiva de auto-subsistência.

Segundo, na mesma ordem de razões, os economistas da escola dominante ou são aldrabões ou demonstram que a economia não é uma ciência, antes um instrumento ideológico. Fora os políticos que não sabem nada de finanças, como Merkel e Passos Coelho e que “emprenham pelos ouvidos” pelos seus gurus economistas, a generalidade dos agentes do sistema económico são considerados - e como tal mostram currículos - grandes expoentes da economia.

Não se pode acreditar facilmente que, sendo assim, tudo catedráticos e banqueiros de topo, possam ignorar, experiência após experiência, o que a história recente demonstra: o sucesso, contra as suas profecias, das reformas argentina, equatoriana, islandesa; o descalabro da austeridade imposta à Grécia, e vamos a ver Portugal; o aumento do flagelo do desemprego, que consideram uma espécie de acidente de percurso; a falta de resultado da “fada de confiança” do mercado; o reforço do poder do capital financeiro, à custa do empobrecimento geral; a debilitação da própria democracia.

É que esta gente não atua como economistas, como cientistas, como analistas rigorosos de experiências concretas. Eles são apóstolos fanáticos de uma nova religião, querem instaurar no mundo real a ideologia e conceção de mundo que têm na cabeça, que aprenderam como estudantes e que transmitem como professores, Gaspares, Borges, Nogueiras, Belezas (e até, como em todo o sistema aristocrático, a tolerância com os "classe mais baixa", Álvaro, Pina Moura, Duque e outros). E, com outro tipo de obsessão, Medina a ajudar à festa.

É gente que praticou na grande casa mãe comum, o tenebroso Goldman and Sachs, onde começaram a ter enormes benefícios pessoais que querem manter e aumentar, como nunca nenhuma aristocracia conseguiu em toda a história. Até com o aspeto psicológico de ânsia de se sentirem na elite da aristocracia mundial, passearem-se em Davos. Comparados com eles, Coelhos e outra bicharada são pobres diabos.

Como todas as religiões, têm os seus mandamentos ou dogmas. Os mercados são divinamente inteligentes e têm sempre razão. O capital financeiro é o ex-machina milagroso a que tudo é devido. Se não se respeita o capital, ele emigra e todos nós empobrecemos. Os homens não são imanentemente iguais, merecem mais os que vencem na luta pela vida. Quem quer ter benefícios de educação, saúde, reforma, deve pagar. Etc.

Nunca se viu tal ofensiva dos poderosos, poucos, contra conquistas populares que se julgavam irreversíveis, até desde a Revolução francesa, e principalmente desde o estabelecimento do estado social. Será essa gente louca, malévola, estruturalmente criminosa? Também o seriam Savonarola, Torquemada, Pombal, Salazar? Ou mesmo as aberrações fascistas e estalinistas? Não, o que têm em comum é o fanatismo, a maior doença da mente humana, que mistura irracionalidade, insensibilidade, crueldade, egoismo, vaidade. Viva S. Gaspar!