sábado, 3 de dezembro de 2011

Um conto de fadas

Era uma vez uma terra chamada Europa... 

Esta é uma história de fadas, embora com bruxas. Comecemos por estas. A maior parte eram de outra terra e algumas das fadas diziam que não se lhes ligasse, porque tinham era inveja, mesmo que algumas das bruxas tivessem sido premiadas com o Nobel dado por entidade da terra das fadas. Bruxas eram Krugman, Sitiglitz, Roubini, até mesmo Soros. Também os comerciantes do G20 que disseram “se vocês não compram aos vossos amigos, somos nós que vamos comprar?”. Mas também as havia na própria Europa, como Jacques Sapir, aqui e aqui, os “economistas estarrecidos”, W. Munchau.
A fada da confiança
Em todo o grupo há quem domine e, por enquanto, esta é a fada rainha. Chamo-a de confiança em homenagem a Paul Krugman, que assim a crismou. Tem às suas ordens um exército de peões que invocam uma troika e que são  muito eficazes porque onde aterram nas lonjuras da Europa encontram logo outros gnomos locais. O que ela diz é muito simples. “O problema é só teu, não há nada de errado no sistema. Tens dívidas, tens de as pagar rapidamente, sem querer saber se os teus credores foram usurários ou não, se vais ter de contrair mais dívidas para pagar este empréstimo que te damos para pagar as dívidas anteriores, se vais morrer de fome a pagar cada vez mais dívidas”.
“Principalmente, tens de estar em condições de poder sempre pedir novos empréstimos. Bater à porta do mercado e mereceres confiança. Se cumprires o plano de austeridade e empobrecimento que te exigimos, vais ter esta confiança dos mercados” [é mentira; temos sido pateticamente cumpridores do plano e os juros continuam a subir, porque os mercados confiam é no crescimento económico e correlativa garantia de cumprimento, não em parâmetros artificiais como os de défice/PIB].
Os tais gnomos são perigosos porque vestem a couraça da infalibilidade. As suas opiniões não se discutem, são assim porque são assim. E onde aterram todos dizem que é assim porque tem de ser assim e o ter de ser assim tem muita força.
A fada é uma hipócrita moralista. É moralista porque abusa do sentido de honestidade das pessoas comuns, "és honesto ou não, és caloteiro ou não?". Mas é hipócrita, nunca vê os pecados da ganância, do egoismo, das gentes que se rebaixam para que os donos do seu grupo ganhem mais dizendo-lhes que os estão a enriquecer. Os pecados são os dos tais devedores que se portam mal, gastam demais, são irresponsáveis, não são gente séria. Tudo dito em linguagem para criancinhas, que só assim percebem a economia política, coisa que um velho ditador beirão já tinha dito que não era mais do que uma família saber governar a sua casa.
A fada é mentirosa, como os seus gnomos. Diz que só quer é resolver crises, contrita dos sacrifícios que com isto vai causar. De facto, é uma fanática religiosa de uma nova crença, o neoliberalismo e, como todos os fanáticos, o que deseja é ver o mundo transformado segundo as suas crenças pessoais, em que, obviamente, o fim do Estado, da segurança social, da educação e da saúde sustentadas publicamente, a inclusão mesmo que como lacaio na corte do grande império da finança, lhe dá um enorme prazer quase sádico e claro que não a afeta nem aos seus gnomos.
Claro que nem todos julgam dançar inteiramente ao compasso da fada. “Era melhor se também houvesse crescimento, se se cortasse só um subsídio e não dois, se não houver muita recessão e desemprego”. E a fada ri-se…
A fada da boa Europa
A visão eurófila, na crença na fada da boa Europa, com muitas variantes, parte de um princípio correto, de que a crise é sistémica, coisa que hoje até empedernidos econocratas do consenso de Bruxelas já reconhecem. Portanto, para esta fada, o mau euro resolve-se com o bom euro. É quase uma homeopatia económica, em que o veneno se transforma em remédio. Das variantes, vejamos principalmente duas, que por simplificação chamo a de esquerda e a de direita (mas só por simplificação!).
Em algumas esquerdas, reconhecem-se os malefícios do euro, a sua insustentabilidade como projeto económico e político, sem um orçamento comum, sem uma política fiscal comum, sem um banco central que seja “o último emprestador” e financiador da economia e dos equilíbrios intra-espaço monetário, à maneira da Reserva Federal, e não só o garante da não-inflação. Para este setor, virá o quinto império do grande desígnio europeu, que fará renascer os “grandes políticos europeus” (por sinal, os que inventaram e desenharam o euro) e criará uma Europa que nos resolverá a crise porque será solidária, fraternal, avançada social e civilizacionalmente.
É claro que nada disto é acreditar em fadas. A Europa atual dos egoismos, da xenofobia, da mentalidade de punição puritana e protestante dos pecadores periféricos, a Europa atual dos dirigentes políticos mesquinhos, claro que de uma penada, por boa ação política dessas esquerdas no parlamento europeu, vai converter-se à grande missão da sua reconstrução. A começar por aquilo que está mesmo à vista, governos portugueses a dizerem que não são gregos, italianos a dizerem que não são portugueses, espanhóis a dizerem que não são italianos. Já ouvi propor a frente dos periféricos. Dá-me vontade de rir, mais agora com dois dos seus governos presididos por homens do sistema financeiro internacional e os outros por neoliberais retintos, Coelho e Rajoy.
No entanto, esta perspetiva tem tido sucesso apreciável. Em Portugal, tem uma origem bem delimitada. O PS será sempre "a Europa connosco", coisa da guerra fria. O PCP foi sempre ferozmente anti-europeista, por razões bem conhecidas e, com alguma moderação, continua a sê-lo. Os seus dissidentes de 1990, que deram depois a Política XXI, no seu grande afã de se desmarcarem, assumiram um idealismo europeista, que hoje mantêm agora como bandeira de luta. (Abro parênteses para destacar o trabalho parlamentar de Miguel Portas, mas pergunto com que resultados). Os louçã-trotsquistas foram nessa porque sim, porque ficava bem; como sempre é seu costume, vai-se na moda, transversalmente, é giro, mesmo que não dê depois para compensar o esgar de Savonarola. Os albaneses não sei porquê, vai com a pobreza ideológica do clube. Com tudo isto, o BE acredita na fada Europa.
O lado de direita da fada europeia é a fuga para a frente do aparelho do euro e do eixo Mer-k-ozy. A crença é a mesma, tudo pelo euro. Mas à boa maneira autoritária, afinal de pés na terra: disciplina orçamental à alemã, porque crise sistémica resolve-se é marchando todos ao toque do tambor mais sonoro. O rapazinho francês atrás, à "petit fifre". 
No entanto, esta história da fada europeia ainda está muito longe da última página. Estou a recolher, de uma pilha cada vez maior de papéis, as contradições, guinadas, incoerências do discurso oficial europeu nos últimos meses. Sairá em próxima entrada e certamente muito incompleto em relação ao que será idêntica escrita daqui a um ano.
A fada boazinha
Simplifiquemos: aparece como uma fada mas com uma grande saia, sob a qual se escondem muitas fadas irmãs. Algumas estão a piscar o olho à fada da boa Europa.  É o caso da mais mediática dessas filhotas, a “proposta modesta” de Varoufakis-Holland (uma paródia, a meu ver inadequada, ao título da célebre sátira de Jonathan Swift). Tudo “soft”, a ver se aceitável pelos poderes.  Essencialmente, apenas a transferência das dívidas nacionais para uma dívida europeia garantida por euro-obrigações (“eurobonds”), mas, atenção, só até ao tal limite maastrichtiano de 60% do PIB. O resto da proposta são amendoins: investimentos aumentados do BEI, testes de “stress” mais rigorosos e recapitalização da banca, tudo coisas consensuais. Euro-obrigações é que não são nada consensuais, a Alemanha não quer ouvir falar. Como é que a “proposta modesta” resolve isto? Porque, sem Alemanha, é chover no molhado, a não ser que se proponha uma forma de luta eficaz contra o novo Reich. No entanto, o homem viaja por todo o mundo, dá entrevistas, deve estar rico. Quem tem interesse em pagar-lhe tudo isto?
Também temos entre nós vários reflexos da fada boazinha. Reestruturar a dívida não, mas pode ser “renegociar”. Vai isto desde coisas ambíguas do BE até coisas de típica piedade política de um PS "contrito". Ainda só consegui ver nisto uma diferença real: esta renegociação seria de tudo menos do montante da dívida, nenhum “corte de cabelo”. E tudo amigável, nunca imposições dos devedores.
Outra é a auditoria cidadã. Tenho de ter cuidado ao escrever isto, porque é uma ação da maior importância política, que apoio sem reservas, no quadro de um amplo leque possível de ações contra a fada da confiança. O problema poderá estar - espero que não - em considerar esta ação como acabada em si própria, como a solução do problema. Ou mesmo, em versão mais suave, como passo prévio indispensável a outras ações ou estratégias de maior fôlego, como a reestruturação da dívida. Quero crer que os promotores da Iniciativa para a Auditoria Cidadã, em que me conto e com quem sou solidário, não cairão nestes erros.
A fada preta
Coitada desta minha fada. Vem de preto, magrinha, triste, desiludida com a sua aparente falta de poder mágico. Calma, espera e verás!

Ressalve-se que só lhe chamo de fada por congruência com a história. Ela quer ser racional, objetiva. Por exemplo, ela rejeita qualquer tom de “economia moral” que parece evidente em algumas propostas e posições da “nova esquerda”, para mim tão errado como o da punição dos incumpridores e coisas do género, do outro lado. A meu ver, decisões como a reestruturação da dívida ou a saída do euro são objetivamente determinadas. Por exemplo, como acabei de escrever, uma auditoria cidadã é muito importante como ação política no quadro geral da luta do “não”, mas é instrumental, não é um componente obrigatório do eixo principal do processo de luta contra a política de austeridade. 
Porque, corrigindo, nem sequer é a luta contra a política geral de austeridade que é central, mas sim a luta contra o processo bem definido na prática que é o plano consagrado nos memorandos e exagerado pelo governo. Essa luta, repito, é norteada por critérios políticos objetivos, não morais (claro que não estou a dizer que não haja uma dimensão moral na política). E não pode ficar limitada ao registo político tradicional, exige uma linguagem político-económica.
Voltando à questão “moral”, deixo um exemplo que me parece demonstrar o risco de ambiguidades deste processo: a dívida para com a troika. Quando recebermos a totalidade dos 78 mM €, representa 45% da atual dívida pública. Não é dispiciendo. Mas vamos falar dela em termos de legitimidade ou ilegitimidade? É evidente que, num processo de reestruturação, é um problema estritamente político, considerando a natureza muito especial desses credores. Não porque, em termos morais, ela foi legitimada, a posteriori e na prática, pelo resultado das eleições.
Da mesma forma, vamos discutir o valor moral da dívida pública esquecendo a dívida privada, mormente a da banca? E como se discute o valor moral da atuação bancária fora de uma perspetiva ideológica sobre o capitalismo nesta fase moderna da supremacia do capital financeiro e da especulação não produtiva? E mais comezinhamente, da responsabilidade partilhada de credores e devedores no endividamento interno, que os bancos foram buscar ao endividamento externo? E à posse pela banca de dívida pública a 75 e mais comprada com empréstimos do BCE a 1% de juro?
Esta fada também está muito atenta ao fator tempo. O euro está a desmoronar-se, já é truismo dizer isto. O que será de propostas “modestas” da fada boazinha ou de propostas baseadas na fada da boa Europa se o euro se for pelo alçapão daqui a um ano ou dois? E em que fase de trabalho e com que resultados estará qualquer auditoria? E entretanto a esquerda preparou e propôs algum plano de emergência ou de contingência - como o presidente do Banco de Inglaterra confessou que está a fazer? Como somos poucos e não podemos ir a todas, não era bom pensarmos em prioridades? “Think tanks”, apareçam com urgência! Para sair à rua, felizmente há hoje muita gente capaz e disposta. É preciso mais.
Também o tempo nacional. Quais as consequências, vistas no tempo, do plano da troika? Lembram-se de que a Grécia só vai com ano e meio de troika? Podemos arriscar ações que, com a vantagem de serem congregantes, mediáticas e na moda internacional, correm o risco de se fecharem inconsequentemente, sem darmos tanto ou mais atenção a outras atuações? E, principalmente, sem definição de uma estratégia conjunta para a luta consequente e com possibilidades práticas de sucesso contra a ameaça do nosso empobrecimento?
Esta fada negra só ainda não me conseguiu convencer de coisa bem importante, de entre duas que há tempos pensava serem coisas intimamente relacionadas, não alternativas. Reestruturação da dívida ou saída do euro. Ou uma e outra? Ou ambas?
Parece que até podem ser soluções contraditórias entre si, como se pode ler aqui e aqui. E há quem se mantenha em alguma expetativa, pensando o nosso futuro depois do euro.
Sair do euro parece uma heresia, ao que se lê por toda a parte. Talvez não e talvez não se leia por toda a parte. Vejam-se as propostas/planos de Sapir, de Mosler e Pilkington ou de Alain Parguez. E, se quisermos ver do outro lado, para não desconfiarem de vícios de simpatia ideológica, a preparação de planos de contingência pelos principais bancos europeus.
E se nada disto se colocar como questão, sair ou não do euro, pelo simples facto de o euro se dissolver? Coisa impossível daqui a um par de anos? Ou até daqui a um par de meses? Só para quem anda desatento ou está completamente dominado pela fada da confiança e pelas suas outras amigas. Andamos a viver tempos que consagram a velha máxima “nunca digas nunca!”. O que fazer nessa situação? Ainda não vi os nossos economistas tentarem imaginar planos de contingência. Desafio-os a esta tarefa urgente, porque creio bem que a direita, o governo, os fanáticos à Gaspar tão cega e radicalmente recusam esta ideia que nunca se prepararão para ela.
A fada do novo partido
Pouco tenho a dizer sobre esta fada, quase invisível, infelizmente. Estamos, no melhor das hipóteses, a três anos e meio de chamada democrática às urnas a que desejaria responder com uma alternativa hoje inexistente. Não há o partido da fada negra. Mas é preciso um partido, dirão os novos movimentos? Claro que sim, embora um partido diferente. Como? 

Vai haver uma revolução que destrua o nosso sistema político? Não creio e até a recearia. Vão-se transformar os atuais partidos de esquerda? Não acredito em milagres. Então como vou votar na próximas eleições? Para que servirão coisas inegavelmente muito importantes mas limitadas, coisas de centenas ou alguns poucos milhares - manifestações, acampamentos de protesto, assembleias populares, auditorias, etc. - se não houver uma possibilidade de elas se traduzirem rapidamente em poder político. E rapidamente é hoje a palavra chave! A crise vai a velocidade imparável. Podemos conceber uma estratégia de desenvolvimento e de libertação do espartilho neoliberalismo-euro-troika mas não a concretizaremos sem uma nova força política que lhe dê corpo.

Eu sei que fazer um partido custa muito. Como dirigente do MDP, sei como foi bom para os plataformistas saídos do PCP (Miguel Portas e outros) fazerem-nos a OPA para dar a Plataforma XXI, e até acho - o que não pensava na altura - que foi o fim mais digno do MDP. Neste momento, não há nenhum partido de esquerda à venda (ou melhor, talvez haja). Mas a principal dificuldade não é esta, prática. É a ideia tonta, generalizada nos "novos movimentos", de que partidos são coisas inaceitáveis, como se eles pudessem riscar de um momento para o outro a ordem constitucional.
NOTA 1 - Segundo a Eurosondagem (28.11.2011), 3/4 dos portugueses querem manter-se no euro, mas 52,5% rejeitam o preço que o sistema nos está a impor. Onde vai a tal maioria dos 80% que votou na troika interna e no plano de resgate? E esses 3/4 querem manter-se no euro porquê, quando tudo lhes mostra que o euro e a nossa situação são indissociáveis? É a hegemonia gramsciana do falar da fada da confiança, mas com os números a prenunciar mudança.

NOTA 2 - A vulgarização do termo "fada da confiança" deve-se a Paul Krugman.

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