Ser colonizado sempre foi mau (nunca houve bom colonialismo). Ser colonizado, aceitar passivamente como ordem natural das coisas, é pior. Ser colonizado, aceitar a ordem colonial e ainda por cima pensar que, de facto, o colonizador é mais civilizado, mais evoluído, menos preguiçoso e mais sério, é muito pior. Ser colonizado e tudo isso mais e, ainda por cima, proclamar alto que se é mais venerador e admirador do dono do que o outro vizinho colonizado - não haja misturas com esse preto selvagem - é sórdido.
A tudo isto estamos a assistir, se olharmos em particular para Portugal e a Grécia. Portugal está a aceitar a nova ordem, como se viu pelos 78% de votantes na trindade interna espelho da trindade externa. A Grécia talvez tenha começado assim, mas agora que já alombou com um ano de austeridade, está a gritar na rua e, apesar de o plano sufocante de resgate ainda ontem ter sido ratificado no Parlamento, dizem as sondagens que cerca de 70% dos gregos estão contra.
Portugal acha que é mesmo mal comportado, merecedor de castigo, de juros de punição exigidos pelos seus “amigos europeus” mais altos do que os do FMI. Julga que não se pode comparar aos nórdicos trabalhadores, sérios, civilizados, como direi adiante. Muitos gregos acham já que, mais do que pagarem os erros dos seus governos, que reconhecem, estão a salvar os bancos franco-prussianos (expressão que, de guerra, passou a aliança).
Portugal (e já também a Espanha, a que se seguirá a Itália e sei lá quem mais) acha que ainda se pode safar se bater as todas as capelinhas dos poderes políticos e financeiros a garantir que “vejam bem, nós não somos a Grécia, até o programa de governo vai mais longe do que o memorando com a troika”. Os espanhóis vão dizer “nós não somos portugueses”, os italianos vão dizer “nós não somos espanhóis”, até os alemães acabarem a dizer “nós não somos europeus”.
Nos últimos dias, eu - e certamente que muita gente - tenho recebido informações “indiscutíveis”, daquelas que um mínimo de juízo crítico e sensatez levam, pelo menos, a dizer que quero primeiro confirmação. Confirmação que ainda não consegui em nenhum dos vários jornais europeus (ou o NYT) que leio diariamente, claro que na diagonal. Até me dizem que jornalistas da TV destacados em Atenas andam a reproduzir tais coisas.
“Um hospital de Atenas emprega 45 jardineiros para cuidar de quatro palmeiras. Os cabeleireiros são considerados como profissão de risco, com a possibilidade de se aposentarem aos 40 anos (com reforma por inteiro). Mais de 25% dos gregos não pagam impostos. As filhas de funcionários públicos que morrem, recebem pensão vitalícia de € 1000, etc.”
Ontem, ouvi um famoso economista dos que estão de serviço à TV dizer tudo isto e mais. Que, assim, os gregos não merecem a ajuda dos países amigos (!?). Passo melhor com os meus inimigos. Os nórdicos (digo assim para simplificar) estão a ajudar-se a si próprios. Em política, não há caridade, há defesa dos seus próprios interesses, muitas vezes dissimulando como interesses dos outros os seus próprios.
Não é preciso ser-se economista para se saber algumas coisas básicas. O euro é uma construção assimétrica, em que os periféricos entraram com sobrevalorização, e são o principal destino das exportações dos parceiros ricos, com os quais nem conseguem competir em relação a outros mercados. O euro foi um negócio franco-alemão em troca da unificação, mas em que a Alemanha impôs as regras viciosas do espaço do euro: falta de orçamento comum, obsessão com o controlo da inflação, falta de mecanismos de compensação intra-espaço euro, impossibilidade de emissão de dívida comum, etc.
A manutenção do euro não é vital para os periféricos, mas sim para os europeus ricos, que arriscam um desastre económico e financeiro se o euro ficar fragilizado, muito mais se desaparecer. Mas, note-se bem, o maior desastre não é, diretamente, para os estados e os povos. Só indiretamente, porque sujeitos ao domínio dos que seriam primeiramente atingidos, os bancos.
E a dívida dos PIGS (não consigo deixar de pensar na possível intenção ofensiva com que foi criada esta sigla)? Parece uma coisa abstrata, a entidades míticas que ninguém parece saber o que são, os tais “mercados nervosos”. Não, têm nome. No caso grego e português, não são Gekkos à Hollywood, são fundamentalmente bancos franceses e alemães (também espanhóis, no caso português). Afinal são esses tais nossos amigos? São os que vão ser “caridosos” quando forem confrontados com incumprimento? Para não encher isto de citações, apenas uma, com toda a informação e a mais autorizada no atual momento político: “Portugal na hora da verdade”, o recente livro de Álvaro Santos Pereira, ministro da Economia (2011, Gradiva, ISBN 978-989-616-413-3).
Mas também os bancos nacionais. Não tenho números, mas é voz corrente que detêm boa parte da dívida, como credores. Aliás, foi a sua decisão de não aceitar mais dívida que levou ao resgate pela “troika”. Também é público e não desmentido que essa dívida comprada pela banca portuguesa foi a que estava em leilão já a juros agiotas, de mais do que 10%, quando esses bancos a compraram com dinheiro emprestado pelo BCE a 1%. Grandes patriotas! Bem, emendo a mão: o que têm a ver os negócios com o patriotismo?
Passou-se o mesmo na Islândia. A sua enorme dívida, mas neste caso dos bancos islandeses, não estava difusa, era altamente centralizada em bancos ingleses e holandeses, a quem eles bateram o pé e não vão pagar sem grande discussão. Mas o que fizeram aos seus banqueiros? Nacionalizaram a banca e despediram-nos.
Centremos a atenção agora na nossa dívida. Muitas pessoas estão a incorrer no erro básico de só olhar para os cerca de 90% do PIB da dívida pública, do Estado. Com isto, dão ênfase, e obviamente com razão, às responsabilidades dos governos, pelo menos desde a época da adesão à então CEE. A despesa pública tem sido um escândalo, mas na velha tradição de toda a gente, no novo rotativismo, se “sentar à mesa do Orçamento”. Longe de mim desculpar o despesismo irresponsável dos sucessivos governos, sem exceção. Mas não é tudo. A dívida externa bruta, a nível nacional, é muito maior (ASP, pág. 222). Em 2010 era de 2235 do PIB, muito maior do que a da Espanha (164,7%) e mesmo, pasme-se, da falida Grécia (167,1%) (ASP, pág. 222). Mesmo em relação à dívida externa líquida, a nossa comparação com a falida Grécia é desfavorável: 109% contra 88% (ASP, pág. 227). Então em que é que somos diferentes dos gregos?
Voltando à dívida privada, quantas das pessoas que mandam mensagens e mais mensagens indignadas com os abusos do Estado ou com o consumismo dos gregos são grandes devedores, já não digo da casa, bem essencial (representando 75% da dívida das famílias, quase que única dívida das famílias de menores rendimentos; ASP, pág. 235), mas das férias anuais nos paraísos, dos cartões de crédito descontrolados, do plasma cada vez maior, do carro trocado ao fim de poucos anos, dos carros para cada um dos meninos? Isto não é dívida? E é a principal dívida, direta e indiretamente. Afinal, a dívida total (dívida externa bruta) vai para mais de 220% do PIB. Parte é de empresas (151% do PIB, ASP pág. 235), parte é dos particulares, através dos bancos (100% do PIB, ASP, pág. 235).
Quem foi na campanha agressiva de crédito feita pela banca, aos baixos juros permitidos pela adesão ao euro, não pensou - e nem sabe de economia política para pensar - que estava a alimentar esse monstro que é hoje a nossa dívida total. Claro que principalmente a dívida externa, porque os bancos, com pouco capital próprio (calcula-se que menos de 10% dos seus ativos), não alimentaram esses empréstimos com depósitos. Não estimularam a poupança, não a premiaram com retornos aliciantes, financiaram-se foi no exterior.
Portanto, senhores gastadores sem critério, com alto padrão de consumo, que hoje acusam o pobre zé de ter endividado o país, olhem primeiro para si e para os seus venerados banqueiros. Só depois digam que essas generalizações abstratas de “Portugal” ou da “Grécia” se portam mal, são irresponsáveis, merecem a falta de paciência e o castigo dos nórdicos bem comportados.
E será que os triplo-A são assim tão bem comportados? Em que se baseia o seu sucesso? Primeiro, houve momentos na sua história recente em que a propagandeada capacidade nacional de esforço patriótico, de construção da economia, escamoteia a grande participação financeira estrangeira (novamente, claro que por razões políticas, não desinteressadas): a grande ajuda à Finlândia depois da guerra com a URSS, a reconstrução das duas Alemanhas e da Áustria no pós-guerra, a ponte de Berlim, até a reunificação alemã.
Em segundo lugar, a competitividade destes países em relação às exportações, na impossibilidade de desvalorização da moeda, tem-se feito por desvalorização interna, por diminuição dos custos de trabalho, numa espécie de “dumping” social. Ser bem comportado, em termos do trabalhador alemão, é aceitar menores salários reais, menores benefícios sociais, menores regalias, em troca de um crescimento económico de que ele beneficia, é certo, mas em menor grau do que os empresários seus patrões.
Tudo isto só é possível pela hegemonia da ideologia dominante. De certa forma, cumpriu-se perversamente o “fim da história” anunciado por Fukuyama. Conjuntamente, o nascimento das ideias de Chigago que conduziram ao reaganismo-thatcherismo e a implosão do mundo comunista, perdendo-se a miragem de uma alternativa ao capitalismo, levaram a uma crença irracional no neoliberalismo, na primazia do capital financeiro, do papel “nacional” dos bancos. “Without you…”, já protestava Eliza no My Fair Lady.
E têm presente que essas santas instituições valem 47 mil milhões dos 78 que recebemos de empréstimo da “troika” (12 em recapitalização e 35 em garantias)? Estou a ser primariamente hostil aos bancos? Vejam o memorando trinitário e o programa do governo e tentem encontrar uma única medida de contenção dos lucros da banca, da distribuição de dividendos, do aumento dos impostos que pagam. Nem sequer o tal imposto extraordinário de que se falou no primeiro PEC e que ficou esquecido. Austeridade é para as pessoas.
Ninguém sabe o que vai ser a Europa e o seu euro daqui a um ano, daqui a um mês. A Grécia vai para o incumprimento? Ou, antes disso, para a reestruturação, "selvagem" ou controlada? E nós? Vai continuar a dizer-se na UE que os resgates tipo greco-português são dogma, que não há plano B, coisa que só pode ser afirmada por mentirosos, porque idiotas não são? Quem vai ganhar nesta divergência que se apercebe entre um governo alemão sem rumo e um BCE com rumo fixado por baias? Parece-me que, nesta incerteza, só haverá certeza no dia em que os bancos disserem “é assim que queremos que seja”.