O voto branco é tão significativo, como sinal de rejeição do apodrecimento do sistema partidário, que eu próprio já estava a habituar-me a ele. No entanto, pelas razões que aduzi, desta vez quero votar no que, sem ambiguidade, significa a rejeição do austeritarismo, da sujeição quase (?) colonialista à santa trindade resgatadora, acolitada pela sua trindade interna. Aparentemente, isto significa votar PCP (não quero falar em CDU…) ou BE. Em qual?
Pensei até há pouco, até um “clique” final, que ia ser muito difícil a escolha. Quantas coisas a ponderar! Num caso e noutro, a modernidade ou não da ideologia, a sua correspondência às enormes mudanças sociais derivadas da evolução do capitalismo, da estrutura social, da técnica e da estrutura do trabalho, à alteração da atitude psico-social em relação às aspirações sociais, etc. (vantagem para nenhum). O posicionamento internacional, em relação às escolhas de “partidos irmãos” (ponto claramente negativo para o PCP) ou ao maior ou menor realismo de uma luta por uma União Europeia diferente, num caso vista com reserva talvez extremada, noutro caso como ideal. O comportamento interno, que de certa forma faz prever o comportamento no poder (vantagem para o BE?). Claro que também as propostas concretas, noutros domínios (também vantagem para o BE). E até, porque não, a minha reação intuitiva em relação à personalidade, temperamento, caráter adivinhado dos dirigentes, até porque conheço bem muitos, e de um lado e outro (vantagem para o PCP)?
Por toda esta complexidade, pensei que não iria escrever sobre isto, por risco de azedume de críticas e por não ser possível, neste espaço, analisar todas aquelas questões. Todavia, pensei que era atitude sem muita coerência. Então digo que nenhum dos partidos me agrada muito, digo que votaria branco como protesto e que só não o faço porque o crucial domingo é o “não” ao resgate, porque quero dizer claramente “sim” à reestruturação, digo tudo isto e vou ficar limitado por toda essa misturada de razões de dúvida? Parece-me que o lógico é votar, mesmo que de olhos fechados a muito lastro negativo, naquele partido que melhor me responda a esse meu objetivo central de votar “não”.
No meio de tanto jogo de palavras, repito o que quero que me proponham como reestruturação (ou renegociação se, honestamente, estiverem a dizer a mesma coisa): 1. Um processo com vários componentes, não obrigatoriamente todos necessários, mas nenhum excluído à partida: anulação da dívida odiosa, redução do valor de parte da dívida (“haircut”), redução das taxas de juro, dilação dos prazos de amortização. 2. Um processo em que o devedor não se limita a pedir respeitosamente um jeitinho, mas em que ele decide, obviamente que tentando ao máximo negociar a aceitação pelos credores, mas com capacidade de ter soberanamente a última palavra, claro que pesando e assumindo os custos.
Então o que dizem os dois partidos sobre a reestruturação?
Do compromisso eleitoral do PCP/CDU:
“A renegociação imediata da dívida pública portuguesa – com a reavaliação dos prazos, das taxas de juro e dos montantes a pagar (sublinhado JVC) – no sentido de aliviar o Estado do peso e do esforço do serviço da dívida, canalizando recursos para a promoção do investimento produtivo, a criação de emprego e outras necessidades do país. Esta decisão, condicionando desde já o pagamento de parte dos compromissos de curto prazo da Dívida Pública e a tomada de outras medidas – por exemplo, a transformação de créditos externos de entidades públicas, expressos em obrigações e títulos de dívida de longo prazo, em títulos portugueses – permitiriam responder às preocupações com as dificuldades de financiamento/liquidez imediatos do Estado!
A intervenção junto de outros países que enfrentam problemas similares da dívida pública – Grécia, Irlanda, Espanha, Itália, Bélgica, etc. – visando uma acção convergente para barrar a actual espiral especulativa, a par da adopção de medidas que libertem os países visados das inaceitáveis imposições e políticas da União Económica e Monetária e do BCE, da Governação Económica e do Pacto para o euro mais, e visem o crescimento económico, a criação de emprego e a melhoria dos salários.
A diversificação das fontes de financiamento, retomando uma política activa de emissão de Certificados de Aforro e de Tesouro e de outros instrumentos vocacionados para a captação de poupança nacional, bem como o desenvolvimento de relações bilaterais encontrando formas mais vantajosas de financiamento. Uma política de diversificação também das relações comerciais, mutuamente vantajosas, com outros países designadamente de África, Ásia e América Latina.”
Do compromisso eleitoral do BE:
“Auditoria à dívida: (…) é necessário conhecer a composição das dívidas pública e privada, a sua origem, os seus prazos e os seus juros. A dívida deve ser paga por quem a cria. A parte do Estado é a mais pequena, mas inclui já hoje parcelas ilegítimas, resultantes de juros abusivos e negócios de corrupção e favorecimento. Para decidirmos sobre a dívida, é necessário separar o trigo do joio.”
Concordo, mas quais as consequências práticas da auditoria? Por exemplo, ainda hoje um comentador do Público acha que a auditoria deve servir para “identificarmos os erros do passado, e responsabilizando politica e legalmente os eventuais transgressores que tenham ajudado a aumentar a dívida (…) e compreendermos se é justificável, ou não, a imposição de um Estado social, económico e político cada vez mais austeritário”. É curto. Vejamos então o que diz o BE sobre a renegociação (dou o benefício da dúvida de que significando reestruturação), na sequência da auditoria.
“O Bloco propõe uma renegociação que estabeleça novos prazos, novas taxas de juro e condições de cumprimento razoáveis, que acompanhem a recuperação económica, e que anule a dívida inexistente. Em vez de ser uma oportunidade de negócio para os credores dos países da periferia, as presentes dificuldades devem mobilizar uma política de cooperação europeia contra a especulação.”
O que é a dívida inexistente? Admite o BE também a redução do montante (“haircut”) de dívida existente? Só das "parcelas ilegítimas" (a dívida odiosa, presumo)? A renegociação é com a “troika” ou com todos os credores, incluindo os bancos portugueses? Quais as fontes alternativas de financiamento?
Mesmo assim, ainda estava em dúvida até ouvir ontem Louçã: “se contassem todas as opiniões que defendem a sensatez da renegociação da dívida o partido já tinha maioria absoluta”. Quais são todas essas opiniões sensatas (!) e identifica-se o BE com elas? Louçã estava a referir-se a Nogueira Leite e a muitos economistas de variados quadrantes que começam a defender a “renegociação”. Imagina-se facilmente que essa renegociação sensata, ao estilo desta recente convergência espúria, não é certamente a que me faz votar no “não”.
Mas não se ficou por aqui. Fiquei sem margem para dúvida sobre a renegociação ao gosto de Louçã (até duvido que seja ao gosto de todo o BE), dando "o exemplo dos portugueses que têm uma dívida de habitação e, desempregados, negociaram com o seu banco a taxa de juro ou o prazo de pagamento, (…) defendendo que renegociar a dívida é simplesmente proteger as pessoas do calote.” E puderam também negociar com o banco o montante da dívida?
De fora, compreendo racionalmente a habilidade eleitoralista de Louçã (que lhe deu problemas na convenção do BE, mas em que ele reincide) de aparecer como bem comportado, razoável, sensato. Mas, com tudo isto, claro que, pela primeira vez em 30 anos, vou votar no PCP.
NOTA - Chamo a atenção para a mesma atitude, de votação num dos partidos do "não", proclamada por Daniel Oliveira no Arrastão, embora a sua escolha seja oposta à minha. O que interessa é o objetivo comum.
NOTA - Chamo a atenção para a mesma atitude, de votação num dos partidos do "não", proclamada por Daniel Oliveira no Arrastão, embora a sua escolha seja oposta à minha. O que interessa é o objetivo comum.
Eu também.
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