terça-feira, 25 de junho de 2013

Estar meia grávida

RESUMO: Já é recorrente: a culpa do actual impasse político à esquerda, cada vez mais dando espaço à direita ultra(neo)liberal, é de os partidos de esquerda não se entenderem para uma alternativa credível (o que é credível e para quem?) de esquerda. Há dois grupos de pessoas a espalhar essa virose. Uns são verdadeiros doentes da crise e merecem toda a simpatia e compreensão. São a gente anónima que sofre, que protesta, que dá a cara na rua mas que, sabendo que quer ver este governo pelas costas, não vêem outra forma que não a eleitoral, resultando esta, realisticamente e na melhor das hipóteses, num governo de alternância, do PS, senão do PS coligado à direita. É natural que estas pessoas, confusas e perplexas, manifestem o desejo de uma verdadeira alternativa, independentemente de saberem ou não se ela é viável a curto ou médio prazo. Os outros são tipicamente os independentes de esquerda, de quase tantas esquerdas quantos os independentes, alguns julgando-se com mandato para obrigar os partidos a se entenderem. Mandato que lhes será conferido pelos movimentos inorgânicos, pelos jovens, pelos desempregados, pelos justamente enraivecidos, etc. São os messias da esquerda.
Assim, a meu ver, qualquer acção realista de independentes de esquerda ou de novos movimentos e grupos de pressão deve considerar que, neste ciclo político, com ou sem eleições antecipadas, os protagonistas institucionais – os actuais partidos – não mudarão, manterão as suas divergências (até para individualização eleitoral) e não farão qualquer esforço de unidade. Pensar em contrário parece-me “wishful thinking” irracional. Muito menos assinarão qualquer forma de programa comum, ou de programa mínimo. Como é possível haver qualquer aproximação entre posições radicalmente opostas em relação ao essencial de hoje, a crise, a austeridade e a questão do euro? Dir-me-ão que é sempre melhor fazer metade do caminho do que nada. Nem sempre é possível. Uma mulher pode estar meia embriagada, mas nunca pode estar meia grávida. E será que essa unidade teria resultados a curto prazo, por exemplo eleitorais? Não estou convencido. 
(…)


*  *  *  *  *


Já é recorrente ou, como está na moda dizer-se – moda tonta, como em geral são as modas – já é viral:  a culpa do actual impasse político à esquerda, frustrante e desmobilizador, cada vez mais dando espaço à direita ultra(neo)liberal, é de os partidos de esquerda não se entenderem para uma alternativa credível (o que é credível e para quem?) de esquerda. Alguns, mais subtis, omitem a referência aos partidos. É a esquerda que não se entende, o que permite a leitura de que são tão honestos e humildes que confessam a sua corresponsabilidade, como homens de esquerda, nesse impasse. Joguinho infantil.

Há dois grupos de pessoas a espalhar essa virose. Uns são verdadeiros doentes da crise e merecem toda a simpatia e compreensão. São a gente anónima que sofre, que protesta, que dá a cara na rua mas que, sabendo que quer ver este governo pelas costas, mais os seus patrões da troika externa, o mais urgentemente possível, não vêem outra forma que não a eleitoral, resultando esta, realisticamente e na melhor das hipóteses, num governo de alternância, do PS, senão do PS coligado à direita. É natural que estas pessoas, confusas e perplexas, manifestem o desejo de uma verdadeira alternativa, independentemente de saberem ou não se ela é viável a curto ou médio prazo.

Os outros são tipicamente os independentes de esquerda, de quase tantas esquerdas quantos os independentes, cada um com a sua, e por isto com coesão de fio de costura. Especialistas em discursos redondos de homem de estado com sensatez senatorial, em redacção de manifestos, em proclamação de propostas políticas sem fundamentos objectivos e com evidência de reduzida experiência das artes e ciências da política. Felizmente, são a minoria deste amplo campo da esquerda.

Quando protestam contra a incapacidade de os partidos de esquerda se entenderem estão é a dar a entender que toda a impureza dos partidos só será lavada e transformada em nova força unida pela sua pureza de independentes que, com a sua típica arrogância de intelectuais, vão receber um mandato para obrigar os partidos a se entenderem. Mandato que lhes será conferido pelos movimentos inorgânicos, pelos jovens, pelos desempregados, pelos justamente enraivecidos, etc. São os messias da esquerda.

Claro que estou a caricaturar e seria injusto não reconhecer que a maioria dos que têm apoiado as variadas iniciativas e tomadas de posição – eu próprio – são gente de esquerda empenhada, convicta e coerente. Mas também sabemos que há sempre nestas coisas oportunismos, vaidades, protagonismos, carreirismo, dor de orfandade política. Por isto também, e por grandes diferenças de experiência e coesão, o sucesso de algumas das iniciativas dos últimos anos tem sido tão díspar

A Convergência e Alternativa, saída em boa parte da candidatura de Manuel Alegre, apareceu antes do tempo e não considerou a natureza diferente em relação àquela candidatura. O M12M desvaneceu-se, com os seus principais activistas absorvidos por partidos, o 15 de Outubro e os acampados foram um fiasco, o Que se Lixe a Troika tem altos e baixos. A Iniciativa Cidadã da Dívida vai indo com segurança, mas não pretende mais do que pode realisticamente fazer. O Congresso Democrático das Alternativas tem tido alguma acção e com o bom senso de não hostilizar os partidos, embora deixando-se conotar demasiado com o BE. Já o esquecido Manifesto para uma Esquerda Livre não dá sinal de si desde há bastante tempo. 

Também não era difícil adivinhar o desfecho deste Manifesto, em relação a uma iniciativa que começa por caracterizar os seus membros como as pessoas de esquerda livres, como se todos os restantes fossem cúmplices ou prisioneiros “do sectarismo e do feudalismo político”. Ou que proclama vivamente, nestes tempos de escuridão europeia, o empenho na sua “transformação numa verdadeira democracia, apoiada na solidariedade e na coesão”. 

Em muitos casos, os promotores destas iniciativas estão em posição privilegiada para exercer pressão efectiva, podendo chegar com sucesso ao que continuo a entender sumamente desejável, a criação de um novo partido de esquerda (ver nesse "post" ligações a anteriores). Ou, para os muitos que ainda não se revêem nesse qualificativo mas que a crise faz olharem o novo partido como a alternativa eleitoral que agora não têm, um partido dos trabalhadores, reformados e desempregados, um partido das forças populares.

Com efeito, as grandes dificuldades práticas de criação de um partido quase que limitam isso à iniciativa de centros de poder muito pessoalizado (caso do PRD), a cisões nos partidos ou a iniciativa de pessoas especialmente bem colocadas institucional e mediaticamente. Cisão no PS, que esteve na criação, por exemplo, do Parti de Gauche francês, ninguém está a ver. A ala esquerda do PS está amorfa, a perder toda a credibilidade que ainda lhe vinha de nomes históricos hoje abafados pelo aparelho. Em relação à área tradicionalmente comunista, as cisões alimentaram o PS ou deram na Renovação Comunista, de velhos amigos que muito estimo mas hoje bem sentados no sofá de uma boa cavaqueira política.

Assim, a meu ver, qualquer acção realista de independentes de esquerda ou de novos movimentos e grupos de pressão deve considerar que, neste ciclo político, com ou sem eleições antecipadas, os protagonistas institucionais – os actuais partidos – não mudarão, manterão as suas divergências (até para individualização eleitoral) e não farão qualquer esforço de unidade. Pensar em contrário parece-me “wishful thinking” irracional.

Muito menos assinarão qualquer forma de programa comum, ou de programa mínimo. Tão mínimo que me faz logo recordar a anedota do agachar. A discussão fica para depois, mas desde já registo o essencial da minha opinião. Como é possível haver qualquer aproximação entre posições radicalmente opostas em relação ao essencial de hoje, a crise, a austeridade e a questão do euro? Pode-se recusar liminarmente a lógica do euro, defender a reestruturação da dívida, estar pronto a estudar a saída do euro e, ao mesmo tempo, tentar pontes programáticas com quem defenda apenas uma tímida renegociação dos prazos e das metas, mas sem pôr em causa o pagamento escrupuloso da dívida e vendo o diabo na simples ideia da saída do euro? 

Dir-me-ão que é sempre melhor fazer metade do caminho do que nada. Nem sempre é possível. Uma mulher pode estar meia embriagada, mas nunca pode estar meia grávida.

E será que essa unidade teria resultados a curto prazo, por exemplo eleitorais? Não estou convencido. Podem dizer que é mero palpite, mas creio que o fiel da balança, em próximas eleições, será um grande número de pessoas que dificilmente se podem chamar de esquerda nem são sensíveis a uma unidade de esquerda que não compreendem, que consideram irrealista. Mais, aos olhos desses eleitores gente comum, de classe média (precisaria de definir isto; será noutro dia), habituados às regras de uma sociedade capitalista, com que não querem romper, nem sequer com o euro – vejam-se as sondagens, também na Grécia do Syriza – para esses eleitores essa frente, coligação, plataforma, chame-se o que quiser, inclui partidos “insensatos”, “radicais”, que ainda podem indispor os “nossos amigos”.

O protesto e a indignação com o que estão a sofrer é cada vez maior mas todas as conversas que tenho com pessoas comuns me mostram que, apesar disso e da angústia em relação à falta de alternativas eleitorais, dificilmente votarão, a curto prazo, fora do arco a que estão habituadas. Do PS para o PSD, porque já não podiam com as aldrabices de Sócrates e não perceberam as desavergonhadas mentiras de Passos Coelho. A seguir no sentido inverso, do PSD para o PS, porque já não suportam Passos, Gaspar e “todos os gatunos” e porque, sabe-se lá porquê, só lhes resta acender uma velinha por Seguro. Isto não significa derrotismo, da minha parte. Creio que é lucidez, admitindo que possa estar errado. E tendo alternativa, como direi no fim.

Também o que escrevi não significa menosprezo pelas movimentações sociais ou iniciativas não institucionais, muito menos que devam deixar mãos livres aos partidos. O que acho é que uma revolução – não tenhamos medo da palavra – que se prepara não se faz com estereotipos lidos nas revistas pernósticas de teoria social, nem com experimentalismos imaturos, nem com ataques inglórios contra entidades com grande força institucional. A gente da esquerda, toda, tem de contribuir seja de que forma for e preferir, partidariamente, em movimentos, em acções pontuais, na luta comunitária, na defesa de causas, mas com empenho, humildade, sentido democrático, aquisição progressiva de maturidade ideológica e política e de capacidade de diálogo.

Nada disto é para amanhã, mas tem de começar hoje, sem que a falta de efeito hoje justifique o desânimo. Os grandes revolucionários sempre perceberam que o factor momento é crítico no rebentar uma crise revolucionária. Julgar que tudo se pode fazer em qualquer momento é voluntarismo.

No imediato, a tarefa é derrubar este governo, porque seja o que vier depois não pode ser pior. Contra a posição de Cavaco e provavelmente as pressões da troika, isso exige – aqui concordo – uma forte unidade.

Quanto às eleições seguintes, como já aqui escrevi, creio que o próximo ciclo eleitoral pode e deve ser visto como bifásico. Só assim poderá fazer sentido muita coisa de que duvidei nesta crónica: a possibilidade de um novo partido, a aliança para-eleitoral entre partidos e movimentos, eventualmente uma plataforma política democrática, popular e anti-ultra(neo)liberalismo, um programa económico concreto com fundamentos científicos sólidos articulados com pressupostos ideológicos de defesa dos trabalhadores, reformados e desempregados.

De forma “politicamente incorrecta”, não receio dizer que, em minha opinião, o PS, tal como é actualmente e com toda a sua história e compromissos com o capitalismo, em particular com o sector financeiro e das grandes empresas, com o seu clientelismo sempre factor de corrupção, com o seu carreirismo limitante da escolha dos mais capazes, é parte do problema e não parte da solução. Não sei mesmo se é justo fazer como muitos, atribuir de forma salomónica iguais culpas de falta de entendimento ao PS e ao PCP (curiosamente, esses habitualmente deixam de fora o BE).

Creio que o PS ficará em primeiro lugar e a formar governo, mas sem maioria absoluta, aliando-se à direita. Espero que a restante esquerda, institucional ou não, evite a imagem de oposição por tudo e por nada, com vitimização do PS, mas sem prejuízo de “encostar às tábuas” o PS perante o grande eleitorado moderado mas queixoso, mostrando que austeridade com açúcar não é muito diferente de austeridade com picante. A pasokização ou hollandização do PS não será hipótese irrealista e poderá ser então tempo mais favorável ao aparecimento de novas alternativas partidárias, inclusivamente a partir do interior do PS.

Claro que tudo isto se, entretanto, a economia não rebentar. Ou se o povo entretanto não se zangar a sério. E muitos outros ses.

P. S. – Há dias critiquei Rui Tavares, hoje também chamado à pedra por Nuno Teles, que lhe apontou alguma ignorância económica. Para mim, não é nenhum "ódio de estimação" (há outros messias de esquerda mais acacianos e oportunistas), mas é um bom exemplo, felizmente raro, do que critiquei neste texto. Para além do tal epíteto de "esquerda livre", tem vocação para o insulto a outras esquerdas, que pecam por "moleza" ou "inconsequência" ou por não terem coragem. Convenhamos que não é bonito para quem tanto quer a unidade.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Coisas que se dizem (II)


“A culpa da crise é de os governos se terem endividado”. Não é verdade. Não sou economista mas até aí chego. 

Começa por ter de se falar da totalidade da dívida externa, envolvendo também a banca, as outras empresas e as famílias, e não só da dívida pública (do Estado). Por razões que têm sido amplamente divulgadas e explicadas por muitos economistas, o que debilitou a nossa economia, tornando o seu financiamento (impossível por emissão de moeda, por estarmos no euro) pelo mercado muito vulnerável à especulação e subida de juros foi principalmente o brutal endividamento da banca junto da zona euro, com transferência dessa dívida, a juros muito maiores, para os particulares. Pelo menos é isto que me tem sido ensinado.

Se olharmos só para a evolução da dívida pública, surpreendemo-nos. Veja-se a figura, extraída da análise das contas públicas de 2012 pelo Conselho das Finanças Públicas. Entre 2000 e 2008, a dívida pública oscila não significativamente à volta de 62% do PIB, quase igual ao critério de Maastricht. Sobe consideravelmente depois do início da crise, em 2008, quando a Comissão europeia, ao contrário do que defende agora, incentivou uma política de despesa pública expansionista (neokeynesiana). E sobe aceleradamente no último ano, já em época de “assistência financeira” com austeridade recessiva, passando da tal média de 60% para inimagináveis 123,6% do PIB, coisa que devia fazer pensar os Rehns e Gaspares ainda agarrados aos 90% de Reinhard e Rogoff.

Afinal, como o ovo e a galinha, foi a dívida pública que causou a crise ou foi a crise que causou o remédio que está a fazer explodir a dívida? Se a responsabilidade vem de antes de este governo, porque é que a sua política catastrófica nem sequer conseguiu corrigir a evolução da dívida?

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Sair do euro é sair da União?

Em termos políticos, aqueles a que me atrevo como cidadão, sou favorável à saída da zona euro, embora, como é natural, desejando a minimização do custo dessa decisão: que só se necessário é que decorra da imprescindível – essa sim – denúncia do memorando e da reestruturação da dívida; que seja negociada, se possível; ou até que se enquadre num processo mais geral de transformação da moeda única em moeda comum. No entanto, todas estas alternativas me parecem pouco viáveis e com escasso grau de liberdade pela nossa parte. Por outro lado, falta-me informação sólida em termos económicos. É o que cada vez mais espero dos amigos economistas.

Como eu, mas com opinião diferente, muitos não têm informação económica suficiente e, por isto, opondo-se à saída do euro, também circunscrevem a sua argumentação à esfera política. Creio que a sua posição é frágil porque nada de substantivo suporta o euro, politicamente, principalmente quando a sua defesa é apresentada como uma posição de esquerda. Mais ainda, dizem, como a única posição moderna, aberta, liberta de fantasmas e de teias de aranha de “esquerdas fósseis” já esquecidas do internacionalismo agora redescoberto. Curiosamente, redescoberto por esta “nova esquerda” no território que também é de outro internacionalismo, o do capitalismo financeiro. Como escrevi há dias, é a eurofantasia, uma história para crianças políticas em que pontifica a fada europeia.

Com a sua varinha mágica, a fada virará a tendência dominante para governação à direita na Europa (ou para a direitização da social-democracia), combaterá a “constitucionalização” à escala europeia do ordoliberalismo alemão (escreverei sobre esta tendência evidente), corrigirá o crescimento do egoísmo e xenofobia que desmentem a ilusão dos “pais fundadores” europeus.

Os que defendem a saída do euro têm deixado em aberto a questão da concomitante saída da União Europeia (UE). Não é questão urgente; os problemas são diferentes e também o é a sua percepção pública. No entanto, esta diferença não seria válida se a saída do euro só fosse possível com saída simultânea da UE. Por isto, o argumento é brandido pelos políticos eurofílicos, a começar, como é seu dever, por Durão Barroso, acompanhado, por exemplo, por Francisco Louçã (Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, Junho de 2013) ou por Rui Tavares.

Pessoalmente, tenho dúvidas sobre se uma saída da UE é uma catástrofe. Em termos de construção histórica e simbólicos, pouco me diz, como obra sem raízes, artificial, desligada do processo histórico popular. Acho vantajosas as suas aquisições em termos de alguma redistribuição de investimentos (fundos comunitários) e de solidariedade – cada vez mais posta em causa nesta crise de norte contra sul. Economicamente, parece-me que tem sido importante a livre circulação de pessoas e bens, menos a de alguns serviços e certamente menos a de capitais. Simplesmente, não é coisa que agora me preocupe, preocupa-me é o euro.

Não concordo de todo com o que já referi num “post” recente:
“a única saída do euro que depende de nós é a saída da União Europeia. Acarretaria também a saída do mercado único, do espaço Schengen, da cooperação judicial, e de mais outras centenas de instrumentos que fazem o nosso quotidiano mais do que imaginamos, em cada tribunal, empresa ou departamento universitário. Para recuperar uma parte, estando fora da União, precisaríamos de um novo tratado para cada tema e demoraríamos mais de uma década — sem veto nem voto no Conselho ou no Parlamento Europeu. Esse é o modelo norueguês, pouco menos improvável que o dinamarquês. Enquanto isso, a nossa fronteira passa a acabar em Badajoz, deixamos de ter liberdade de circulação no espaço europeu e os nossos emigrantes passam a cidadãos extra-comunitários. Todas essas consequências têm, depois, mais consequências.”
Esta é uma posição tipicamente institucional e formalista, sem consideração por processos dinâmicos, sem compreender – à esquerda… – o que é a dialéctica. Como não sou jurista, nem o são os meus oponentes, só vou ver esta questão pelo lado político.

Juridicamente, só direi coisas banais e bem sabidas. É certo que o Tratado de Lisboa ou Tratado da União Europeia (TUE) só prevê (artº 50º) a saída da UE, a pedido de um membro e num processo negociado com os restantes. Também que a participação no euro, após cumprimento de algumas condições mínimas, é uma obrigação a que só se podem eximir os estados membros que, logo na aprovação do TUE por unanimidade, tenham obtido uma derrogação nesse sentido (Reino Unido e Dinamarca).

Significa isto que a aprovação de uma nova derrogação, para Portugal, tenha de seguir todo o processo moroso de aprovação e ratificação? Antes disso, teríamos morrido da doença da austeridade. O que sei é que toda a construção europeia sempre se fez com bastante elasticidade no entendimento das cláusulas processuais – e não só – do TUE. O célebre artº 136º dá para tudo e mais alguma coisa, em termos da defesa do euro, o que, no limite, até pode significar que a defesa do euro justifica a saída de membros da zona euro, a seu pedido.

Não é da minha lavra a expressão “no limite”. Ela é usada repetidamente por João de Menezes Ferreira, um dos mais experientes diplomatas em matéria europeia, em relação à possibilidade de saída de um membro do euro por via de decisão intergovernamental, à margem do TUE. Não exclui também um novo tratado complementar, só sobre o euro e assinado pelos 17, provavelmente com maior facilidade e rapidez. Vão no mesmo sentido, embora com menores efeitos benéficos para Portugal, propostas como a de Jean-Claude Piris de uma zona euro a duas velocidades, em que medidas mais extremas, como as actuais, seriam objecto de um processo restrito de cooperação reforçada.

Houve sempre entorses aos tratados. Coisas tidas como consagradas e aprovadas foram modificadas para, depois de nova aprovação, poderem ultrapassar referendos negativos. Nesta crise, escandalosamente contra os tratados, a UE financiou os estados em dificuldades com empréstimos do SEEF, o que é proibido pelo TUE. Proibido é também outro papel do BCE que não seja apenas o de controlo dos preços e da inflação, e afinal o BCE andou a comprar dívida no mercado secundário. E se desceram as taxas de juro foi porque o BCE, no verão de 2012, assumiu inequivocamente essa actividade de compra ilimitada. Da mesma forma, a saída da Grécia, a tão falada “Grexit”, certamente seria negociada, como de interesse mútuo, à luz de qualquer parágrafo legal descoberto pelos burocratas juristas de Bruxelas.

Como disse o ex-juiz europeu Cruz Vilaça em entrevista a Ana Isabel Travassos,
“Nada no mundo é irreversível, nem mesmo no quadro da União” (…) “Não está previsto expressamente, nem nos Tratados, nem nos regulamentos da UEM, a saída de um Estado da Zona Euro. Esta saída pode ser uma saída com dois significados: ou uma saída empurrada porque já não respeita os critérios da Zona Euro, ou uma saída voluntária. A expulsão não está prevista. (...) Se os Estados, se os políticos, decidirem sair da Zona Euro, saem, até porque nem todos os Estados da União pertencem à Zona Euro, seja porque não respeitam os critérios, seja simplesmente porque não querem, querem manter a sua soberania monetária e cambial. (...) Uma questão é a realidade política, outra questão é a realidade jurídica. Não é possível raciocinar em relação à União Europeia apenas com base na interpretação formal do que está nos Tratados. (...) É indiscutível que um dia se um Estado quiser sair, sai mesmo”.
Também não me parece acertado pressupor que esta questão nunca se tenha posto a tanta e tanta ilustre gente que, em Portugal, noutros países, nos organismos internacionais, tem discutido a saída unilateral do euro por iniciativa de um ou mais dos seus membros. Ajuízo que tendem a pensar mais em termos políticos e dinâmicos do que jurídicos e formais.

O que é essencial é ter em conta, acima de tudo, que o poder político necessário para o confronto negocial para a saída tanto quanto possível ordenada do euro é uma manifestação da força de todo um povo, trabalhadores, desempregados, reformados, e da soberania – não quero dizer que ignorando as interdependências, antes as utilizando – e só possível com nova política assegurada por um governo que não seja um lacaio de interesses estranhos ou de fanatismos ideológicos importados

Como já uma vez aqui lembrei, escreveu Camões que “Dizei-lhe que também dos Portugueses / Alguns tredores houve algumas vezes” (L., IV, 33). 

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Coisas que se dizem

1. Cavaco Silva defendeu que o FMI devia sair da troika e que os problemas financeiros e económicos dos países europeus em dificuldades deviam ser resolvidos exclusivamente por meios europeus, porque, na União Europeia, “temos objetivos de desenvolvimento harmonioso, de coesão e de crescimento económico”. E eu a pensar que a principal preocupação da comissão e do BCE era restritiva e austeritária, centrada na redução a todo o custo da dívida pública e do défice orçamental…

2. No Diário Económico de ontem lê-se que sem o programa de OMT (Outright Monetary Transactions) do BCE, “Portugal perde um dos maiores trunfos que tem em mãos para conseguir o acesso pleno aos mercados e evitar um segundo resgate”. Não vou agora perguntar aos economistas o que significa a obsessão com o acesso aos mercados (continuarmos a endividarmo-nos) mas admitamos que a possibilidade de compra directa de dívida pelo BCE é um respaldo e um factor para a baixa das taxas de juro, como aconteceu com a declaração de Draghi em 2012. Mas evita um segundo resgate? Eu julgava que a entrada de um país no programa cautelar das OMT exigia fortes condicionalidades, com novo controlo da troika e política austeritária para controlo do défice, nomeadamente no que respeita ao cumprimento rigoroso do tratado orçamental. E eu a pensar que, na prática isto era um segundo resgate...

terça-feira, 11 de junho de 2013

Pode explicar, Rui Tavares?

Rui Tavares (RT) é um homem de esquerda, estimável, e não tenho razões para pensar que não seja um homem sério. É certo que, a meu ver, deve explicações sobre a quebra de compromisso eleitoral com o BE e passagem para um eurogrupo parlamentar rival. Que, a meu ver, não foram claros os seus objectivos na sua iniciativa congregadora de que resultou apenas um manifesto anódino e até ambíguo. Que RT se dispersa por coisas inconsequentes e de albergue espanhol (até com Veiga Simão), como o Manifesto pela Democratização do Regime. Que exprime opiniões com as quais concordo muitas vezes e na generalidade mas que, frequentemente, me parecem ter uma carga demasiada de retórica política sem boa base teórica e suficiente suporte de economia política. Em contraponto, admiro a sua motivação e militância e, por exemplo, iniciativas tão louváveis como a de criação de bolsas de estudos com parte do seu rendimento de eurodeputado.

Por tudo isto, fiquei abismado com o seu “post” recente, intitulado “A Grande Valorização”. Parece uma habilidade, um truque mental; ou então um grosseiro erro de raciocínio. Não quero crer que seja intencional, até porque RT é suficientemente inteligente para não fazer propositadamente coisa tão primária. De qualquer forma, mais uma vez, parece-me que RT deve uma explicação. 

Como introdução-resumo, escreve RT que 
“Antes de ter de optar entre desvalorização interna e desvalorização externa, seria necessário refutar a possibilidade de outra saída da crise: a Grande Valorização. Essa Grande Valorização seria prolongada, passo a passo, e teria três aspectos: a valorização financeira, a valorização da economia e, finalmente, — porque é aquela que mobilizará as pessoas para as outras duas, — a revalorização democrática.” 
Troquemos por miúdos. RT explica que, “ao que dizem”, há duas maneiras de sair da crise. Uma é a que temos seguido. A outra é a saída do euro. Passemos de lado pela incrível simplificação desta afirmação, porque é mais incrível ainda o que RT escreve a seguir. De facto, para RT, não há, à partida, razão para discutir esta dicotomia

Para RT, ambas as vias são formas diversas de desvalorização para aumento da competitividade e só assim as designa, muito sintomaticamente. A austeridade é simplesmente (RT) uma desvalorização interna: “baixar salários, cortar prestações sociais e baixar na exigência ambiental ou laboral.” O oposto, mais vulgarmente a luta anti-troika, é (RT) a desvalorização externa: “implica sair do euro para voltar a imprimir a nossa moeda e desvalorizá-la. A proposta aparece como uma rutura inevitável e até de emergência perante a brutalidade da desvalorização interna.”

Em ambos os casos, tratar-se-ia de um "retorno ao passado", numa perspectiva comum de “ambas serem económicas, num sentido muito estrito”. Percebe-se que RT continua a ter dificuldades em lidar com a economia política – e não é por não ser economista, porque muitos outros opinadores políticos consistentes também não o são. O seu terreno por excelência é o da política, numa mistura tradicional de ideologia pura e de acção institucional, em que se vê que se sente bem.

Considerar as duas políticas irremediavelmente antagónicas, pró e contra austeridade como reduzidas – afinal como que convergindo para o mesmo objectivo! – a meras políticas de desvalorização competitiva é espantoso. Não estou a deturpar. Adiante veremos que RT as contrapõe, às duas, a uma sua proposta, até verbalmente oposta em designação (parece brincadeira mas não é). 

Não cabe aqui a discussão, mas como pode um eurodeputado de esquerda omitir todos os aspectos ideológicos neoliberais do austeritarismo, a destruição propositada do estado social, o benefício, à escala europeia, dos estados ricos, o papel do capital financeiro, etc.? É só economia?

E a luta contra a austeridade, a denúncia do memorando, a reestruturação da dívida, a eventual saída do euro, a defesa do estado social e da solidariedade, reduzem-se a aumento da competitividade por desvalorização monetária? E a capacidade de emissão de moeda, de dispormos de um emprestador de última instância, de melhor regular a banca, de combater a especulação financeira, de determinar as taxas de juro e de inflação, afinal, de colocar a economia ao serviço do povo e de defender os interesses nacionais? É tudo economia?

Falando só do que mais me motiva, é rotunda falta de verdade que a alternativa à austeridade seja obrigatoriamente a saída imediata do euro, com desvalorização da moeda, embora seja eventualidade a analisar e ponderar. RT devia saber que o que diz não é verdade.

Continua RT: 
“Ambas as soluções são, de forma mais ou menos admitida, um regresso ao passado. (…)  A ideia de que a presente situação só apresenta duas possibilidades — ou austeridade ou saída do euro — empresta-se facilmente à frustração e ao derrotismo. Dificulta a criação de um programa comum da oposição e a criação de alternativa, pois paralisa o povo — quando mobilizá-lo é condição essencial para qualquer saída da crise. As pessoas querem dar a volta a isto, mas não querem necessariamente voltar para trás.”
Repare-se, novamente: ou austeridade ou saída do euro!

E como não voltar para trás, antes avançando? A resposta para RT é tão simples como tirar um coelho da cartola. É que, afinal, as tais duas desvalorizações – como o próprio termo indica! [observação minha, JVC] – não são a verdadeira alternativa. Discuti-las só faz sentido depois de discutida a oposição entre elas (presume-se que em conjunto) e a sua verdadeira antítese, a grande descoberta de RT, a Grande Valorização (com maiúsculas e tudo…). 
“Essa Grande Valorização seria prolongada, passo a passo, e teria três aspectos. A valorização financeira, através de uma reforma fiscal, de instrumentos que atraíssem capitais, e do combate à lavagem de dinheiro e à evasão fiscal. A valorização da economia, através da aposta no capital humano e na reconversão do nosso perfil produtivo. E, finalmente, — porque é aquela que mobilizará as pessoas para as outras duas, — a revalorização democrática. Para devolver às pessoas confiança na ação política como forma de resolver os seus problemas.” 
Não quis crer nisto que li, montanha que pariu um rato. Valorização como, com que meios, com que políticas, com que instrumentos económicos, reais e institucionais, com que aproveitamento de contextos internacionais, etc.? E tem RT a certeza de que a “revalorização democrática” é a que mobilizará as pessoas para as outras duas, afinal as que mais as afectam na sua crise de economia familiar, senão de pobreza?

De facto, o que RT está a fazer, com este jogo de palavras em que acaba por contrapor a “grande valorização” às duas desvalorizações, é recusar a saída do euro – mesmo como hipótese – por ele identificada como desvalorização externa e retorno ao passado. Isto é demonstrado por outro seu “post” posterior, em resposta a João Rodrigues

Outra possibilidade razoável, atendendo a muitos escritos de RT e à sua posição como eurodeputado, é que esteja também a pensar numa “grande valorização” essencialmente enquadrada, mesmo dependente, de uma revolução europeia, dos povos, (à 1848?...) ou, mais prosaicamente mas mais miraculosamente, por conversão ideológica de Merkel, Barroso, Rehn e tutti quanti. É o grande sonho da fada europeia, mas cada um lê os livros infantis de que gosta, desde que não passe a vida a recitá-los aos outros.

No entanto, afinal, RT está sozinho? Esta vacuidade de propostas está a caracterizar a posição de muitos políticos de esquerda que, em prol de uma unidade que tenho por irrealista, se arriscam a esterilizar a luta contra esta nunca vista ofensiva do grande capital. Voltarei a isto.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

É preciso ser mentiroso para ser político?

Em comunicação a empresários japoneses, o presidente francês, François Hollande, afirmou em Tóquio que “O que vocês têm que compreender, aqui no Japão, é que a crise na Europa acabou”. Segundo o Público, Hollande, para sustentar a afirmação, acentuou que a Europa tem, agora, todos os instrumentos de estabilidade e de solidariedade. E lembrou, a este nível, que “há melhorias na governação económica, avanços na união bancária e novas regras em matéria orçamental que permitem uma melhor coordenação e novas formas de convergência”.

Quem tem o direito de duvidar do que disse Hollande? “Yet Brutus says (…), and Brutus is an honorable man”. Hollande disse isso e Hollande é um homem honrado. Mas também a Comissão europeia disse coisas e a Comissão europeia é uma entidade honrada. 

O que disse a Comissão europeia, na sua recente estimativa para 2012 e previsão para 2013? Queda do PIB em todos os países exceto a Alemanha e, nesta, apenas um ligeiro aumento de 0,1%. Mesmo a estimativa para os ricos Finlândia e Holanda é, respetivamente, de queda de 0,1% e 0,9% do PIB. Em 2013, dos maiores europeus, descerão os PIB da Holanda, da Itália e da Espanha em 0,6%, 1% e 1,4%, respetivamente. De Portugal, diga o que disser Gaspar (e “Gaspar is an honorable man?”), nem falar: recessão de 3,2% em 2012 e previsão de 2,3% em 2013, com o desemprego a atingir em 2013 os 17,3% da população activa.

E o que se passa na própria França? Queda do PIB em dois trimestres seguidos, donde, tecnicamente, recessão; desemprego recorde de 10,8%; perda de poder de compra dos franceses em 2012 de 0,9%; queda de 0,4% do consumo das famílias.

Além de tudo isto, toda a zona euro já vai com um nível recorde de desemprego, com quase 20 milhões de pessoas sem trabalho, e o PIB já vai no seu sexto trimestre consecutivo de recuo. Mas nada disto é crise, porque a crise já acabou, como bem sabe e diz o meu vizinho desempregado. “And my neighbor is an honorable man”.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

It's politics, stupid (II)

Continuando o texto de ontem, sobre as relações por vezes complicadas ou menos transparentes entre a política e a economia: encontrei um “post” recente de Krugman em que, com o título que usei por coincidência, “It’s The Policy, Stupid”, em que ele escreve (tradução minha)
“Como provavelmente vamos ter uma data de histórias sobre economistas em luta e tudo o mais, só uma nota: não se trata de coisas pessoais. Trata-se da volta desastrosamente errada que levou a acção política em 2010, em todo o mundo desenvolvido. Os economistas só contam até ao ponto em que ajudaram e foram cúmplices com essa mudança errada. As suas opiniões (e as minhas) não interessam nada.”
Igualmente frontal é Dani Rodrik, outro de Harvard, ao escrever “The Tyrany of Political Economy” no portal do Project Syndicate
“Houve um tempo em que nós, economistas, nos mantínhamos longe da política. Para nós, o nosso trabalho era descrever como funcionam as economias de mercado, quando falham, e como as políticas bem planeadas podem aumentar a eficiência. Analisávamos os ‘trade-offs’ entre os objectivos concorrentes (digamos, a equidade versus a eficiência) e recomendávamos políticas que atendessem os resultados económicos desejados, incluindo a redistribuição. Cabia aos políticos aceitarem o nosso conselho (ou não) e aos burocratas pô-lo em prática. 
Foi então que alguns de nós se tornaram mais ambiciosos. Frustrados com a realidade de grande parte dos nossos conselhos ter sido ignorada (tantas soluções para o mercado livre ainda à espera de serem tomadas!), desviámos o nosso jogo de ferramentas analítico para o próprio comportamento dos políticos e dos burocratas. Começámos a analisar o comportamento político utilizando a mesma estrutura conceptual que utilizamos para as decisões dos consumidores e dos produtores numa economia de mercado. Os políticos tornaram-se nos fornecedores que maximizam o rendimento dos favores políticos; os cidadãos tornaram-se nos lóbis dos lucros monopolistas e em interesses especiais; e os sistemas políticos tornaram-se nos mercados onde os votos e a influência política são negociados para benefícios económicos.”
“(…) Uma coisa que os especialistas sabem e que os não-especialistas ignoram, é que a extensão do seu conhecimento é mais limitada do que os não-especialistas pensam. As implicações vão além de não sobrevalorizar o resultado de uma determinada investigação. A autoridade e precisão que os jornalistas, os políticos e o público em geral têm tendência para atribuir ao que é dito pelos economistas é superior àquela que os próprios economistas deveriam realmente aceitar. Infelizmente, os economistas raramente são humildes, especialmente em público. 
Existe ainda outro pormenor relativamente aos economistas que o público deveria conhecer: a progressão na carreira dos economistas académicos é feita por meio da astúcia e não da sabedoria. Actualmente, os professores das melhores universidades distinguem-se, não por estarem certos a respeito do mundo real, mas por criarem deturpações teóricas fantasiosas ou por desenvolverem novas evidências. Se estas competências os tornarem igualmente em observadores perspicazes das sociedades reais e lhes propiciarem uma sólida capacidade de discernimento, não será certamente resultado de uma intenção nesse sentido.”
No lugar que ocupa, Gaspar não é um economista errado, é um político e ideólogo ultra-reaccionário e antipopular, e em nenhum dos casos é um louco inimputável. Da mesma forma, a UE não é a academia da ciência política, é (novamente o humor de Krugman) o Rehn do terror político.

P. S. (7.6.2013) – Sobre este tema, um artigo apanhado hoje que me pareceu interessante embora, como leigo, não o possa criticar devidamente: D. Acemoglu e J. A. Robinson, "Economics versus Politics: Pitfalls of Policy Advice" (pdf, descarregável).

(Imagem de Paul Lachine)

terça-feira, 4 de junho de 2013

It's politics, stupid

RESUMO. No início da crise, chamei aqui a atenção para a necessidade de um novo discurso político bem alicerçado em estudos económicos. Hoje talvez esteja a acontecer um pouco o contrário. Uma parte considerável dos blogues, dos textos de opinião e dos manifestos políticos são de natureza predominantemente económica e da autoria de economistas que, principalmente à esquerda, têm tido assinalável protagonismo político (ninguém pode levar isso a mal), como independentes ou como membros conhecidos de um partido. Ao contrário do que se podia entender erradamente que defendia antes, como predomínio da necessidade de uma grande reflexão económica, creio que ela deve ser condicionada à política e, para o cidadão comum, espelhar-se em propostas políticas. A discussão económica é fundamental, como é fundamental a informação dos cidadãos. Mas não dispensa a mensagem de que a solução é sempre, no fim, política e social. Social também no sentido de que não se esgota na política institucional e partidária. Estão em causa – e com riscos – grandes bandeiras das lutas populares e da esquerda, e as suas conquistas.

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No primeiro texto deste blogue, “Escrever à esquerda, hoje”, em 5.1.2011, escrevi que 
“(…) um ano que promete muito pouco. E que vai ser, palpita-me, o primeiro de um ciclo de anos “en la calle”, novo ciclo de 1848. Por isto, um enorme desafio à esquerda, que entre nós - veja-se o tom do debate presidencial - continua a ter um discurso tradicional. Veja-se a quantidade de gente do meu tempo que anda a escrever posts em blogues no mais velho estilo de política retórica. Ainda não perceberam que hoje o discurso político domina bem a economia política ou não tem credibilidade contra esse horroroso emprenhamento pelos ouvidos que os "economistas" de serviço estão a fazer?”
E, sobre os economistas e opinadores de serviço que já então formavam (ou deformavam) a informação:
“O que está aqui em causa, nesta enorme coligação de mediocridade e cobardia política, de submissão aos poderosos - desde os banqueiros a nível local até à chancelerina a nível europeu - é pura e simples aldrabice descarada, em que tudo o que há de pior na qualidade intelectual e ética se mistura: falta de sentido ético e da solidariedade social, conservadorismo, interesses pessoais e grupais, deslumbramento com a riqueza, mentalidade de escudeiro (à Gil Vicente), falta de rigor e de profundidade de pensamento, ir com a moda, cobardia, chico-espertismo.”
Assim, repetidamente chamei a atenção para a necessidade de a esquerda ter posições bem fundamentadas cientificamente na economia política, vendo-se que era a área de malabarismo retórico da direita, tirando partido da falta de informação da maioria das pessoas. A grande maioria dos blogues políticos descurava a abordagem de problemas económicos, quando não os menosprezavam abertamente. Também é sintomático, pelo que me toca, que este blogue tenha inserido desde o início, na barra lateral, uma coleção de ligações a sítios e blogues de economia, parodiando (com sentido diferente) a célebre frase de Clinton, “it’s the economy, stupid”.

Talvez tenha havido uma viragem exagerada. Com a agudização da crise, a discussão política à esquerda passou a ter um conteúdo cada vez mais económico, centrado na crise e no combate à política austeritária. Mesmo no que a política tem de mais essencial, a sua base programática, o que está hoje em confronto é a escolha entre duas propostas marcadamente económicas, de tal forma que até podemos usar uma nomenclatura económica para opor os dois lados: monetaristas ou neoliberais de um lado; neokeynesianos, marxianos e outros, no outro terreno. Com isto, uma parte considerável dos blogues, dos textos de opinião e dos manifestos políticos são de natureza predominantemente económica e da autoria de economistas que, principalmente à esquerda, têm tido assinalável protagonismo político (ninguém pode levar isso a mal), como independentes ou como membros conhecidos de um partido.

Note-se que, como acontecia com o debate político tradicional, pré-crise, a direita é mais homogénea do que a esquerda. Difere em pequenos aspectos tácticos, mas nada que se compare com escolhas tão radicalmente opostas, à esquerda, como o europeismo utópico com manutenção numa eurolândia recuperada e a denúncia do memorando com risco de eventual saída do euro. A supervalorização, natural, do económico levou também à diminuição do debate “das políticas”. Quando há considerável diminuição e desmotivação dos recursos humanos, quando há corte de 10%, a eito, nos consumos intermédios, imagina-se que a dimensão e qualidade da prestação de serviços não se ressinta, nos hospitais, nas escolas, nos transportes, nas infra-estruturas? No entanto, tudo isto que enchia jornais banalizou-se porque, obviamente, mesmo para os sindicatos e outras forças que lutavam por essa qualidade, há hoje prioridades sistémicas muito mais agudas.

Por isto mesmo, ao contrário do que se podia entender erradamente que eu defendia antes, como predomínio da necessidade de uma grande reflexão económica, creio que ela deve ser condicionada à política e, para o cidadão comum, espelhar-se em propostas políticas. Veja-se um exemplo: propor a saída do euro tem a oposição clara de cerca de 60% dos inquiridos. É natural, quando bombardeados com o anúncio por especialistas de todas as desgraças que daí virão, quando todos esses inquiridos não fazem a mínima ideia do problema. Mas terão de ser eles a decidir, directa ou indirectamente, para o que o contributo esclarecedor dos economistas de esquerda é imprescindível mas de forma alguma dominante, nem sequer por via da influência interna nos seus partidos.

Ressalve-se que a discussão económico-política à esquerda é, a meu ver, mais honesta do que à direita. Neste segundo campo, a economia, apresentada quase que dogmaticamente ou como uma cadeia de fatalidades, escamoteia a ideologia política. A austeridade é apresentada como uma política financeira e orçamental para redução da dívida (principalmente pública) e do défice orçamental, tidos como a principal causa da recessão (veja-se o recente caso Reinhart-Rogoff). Não é assim. Muito mais do que uma política económica, é uma ideologia política, que impregna difusamente a formação académica dos economistas modernos, como entre nós na forma(ta)ção na Nova e na Católica. 

O neoliberalismo (e a sua variante alemã, o ordoliberalismo) não é apenas a visão económica da supremacia absoluta dos mecanismos de mercado, tidos como “inteligentes”, a defesa da total liberdade do mercado, com intervenção reguladora mínima do estado. De facto, e como claramente defendido pela escola austríaca, com Hayek como expoente, é uma filosofia política, uma ideologia e um programa, concebidos como contraponto ao “welfare state”, estabelecido em Inglaterra e nos países escandinavos, com influências do keynesianismo. A versão americana do neoliberalismo, levada para o palco político por Reagan (assim como por Thatcher no Reino Unido) é personificada por Milton Friedman e escola de Chicago, os que ajudaram a implantação da política económica de Pinochet.

À defesa da total liberdade dos mercados é inerente a correspondente redução do papel do estado, com apropriação privada de tudo o que é essencial ao estado social (o “welfare state”): educação, saúde, segurança social, rendimento mínimo, protecção ambiental, garantia dos recursos naturais e das fontes de energia, etc. Ninguém mais claramente o afirmou do que o próprio Hayek. A vitória trabalhista depois da II Guerra retomou o relatório Beveridge, propondo um conjunto de leis fundadoras do estado social – educação, serviço nacional de saúde e segurança social. Contra o programa trabalhista, escreveu Hayek, no seu livro principal, “O Caminho da Servidão”, que o programa levaria a civilização ao colapso, à perda da liberdade, à submissão ao Estado e até ao caminho para o nazismo! Repito: não são posições exclusivamente baseadas na economia científica – aliás posta em causa nesta crise – antes incorporam, essencialmente, um grande componente político-ideológico.

Não quero carpir, não quero induzir em desânimo, quero pelo contrário transmitir o entusiasmo, talvez ingénuo, que desde jovem me moveu. Mas com lucidez. Nunca, desde o fim da II Guerra, o capitalismo (sem eufemismos; deixo a “sociedade de mercado” para quem não tem coragem de chamar os nomes aos bois) foi tão ofensivo, tão arrogante e também tão hegemónico, alienando (outra das tais palavras) as pessoas, roubando-lhes a cidadania, estiolando a democracia, nesta pós-democracia. A canga dos sacrifícios, o medo de perder recursos vitais mínimos, a incerteza do futuro, está a fazer temer, 30 anos depois do ficcionado ano de 1984, uma sociedade de zombies, anestesiados, desesperançados, desanimados.

A discussão económica é fundamental, como é fundamental a informação dos cidadãos. Mas não dispensa a mensagem de que a solução, no fim, é sempre política e social. Social também no sentido de que não se esgota na política institucional e partidária. Estão em causa – e com riscos – grandes bandeiras das lutas populares e da esquerda, e as suas conquistas: os direitos dos trabalhadores, desempregados e reformados, a justiça social, a garantia de subsistência e benefício dos direitos sociais e económicos, a luta contra as desigualdades, a garantia do exercício da cidadania, a solidariedade intergeracional, a inclusividade social, o respeito pelos direitos da mulher e das minorias, e até a dignidade nacional.

Isto é a democracia, é o programa mínimo de esquerda. Mas que meios para o concretizar? Como pescadinha de rabo na boca neste “post”, entra aqui novamente a economia, também no quadro de um programa político de esquerda. Voltaremos a isso.