RESUMO
Distinguindo o plano estratégico e o táctico, considera-se neste texto que é de resultado incerto discutir a convergência das esquerdas (esquerda radical, ou PCP e BE, e esquerda liberal, PS) a nível estratégico, podendo-se especular que, a prazo, o caminho pada o reforço da esquerda passa por outras soluções ainda não visíveis, com reformulação profunda do sistema partidário e da própria democracia. No plano táctico, e em particular no momento que vivemos, a convergência é importante, como meio de mais eficaz luta contra a política ultraliberal, austeritária e sufocante dos rendimentos e dos direitos mínimos dos trabalhadores, reformados e desempregados. É o resultado da identificação do inimigo principal.
Também se deve ver a questão da convergência no contexto, ofensivo ou defensivo, onde ela mais se coloca e que é o caso actual, perante a hegemonia do neoliberalismo. Os momentos defensivos são aqueles que mais passam pela unidade de esforços, para não abrir brechas nas muralhas da resistência, sem prejuízo de, com isso, se desenvolverem forças que, como mostram exemplos históricos, permitem passar da defensiva à ofensiva e à conquista de avanços não previstos previamente.
Considerando a deriva talvez irrecuperável da social-democracia para a direita e para conciliações com o pensamento liberal, o autor interroga-se sobre como conseguir a esquerda radical evitar a armadilha perigosa, também para as forças populares, de a exigência de compromissos parra a convergência poder conduzir à descaracterização.
Tomando como marco temporal importante as eleições europeias, defende-se neste texto que elas são uma oportunidade para mais fácil entendimento na esquerda, por ser menos profunda a divisão das opiniões. Já a mesma data, por outra razão – o fim do resgate – também é factor importante na questão da convergência, por não parecer viável qualquer passo significativo de qualquer dos três partidos antes de definida a situação do pós-troika.
Não sendo provável que o PS obtenha maioria absoluta, discute-se neste texto a política de alianças do PS, os compromissos nacionais e internacionais em que está enredado e as tendências internas quanto a este assunto. Recorda-se o tipo de eleitorado do PS, do “centrão”, e do risco de confusão, para não dizer mais, pela continuação de uma política austeritária de um governo do PS sozinho ou com a direita.
Alerta-se para que, no quadro actual, a política económica adquiriu um relevo nunca antes visto e que, se por um lado justifica ainda mais uma resistência unitária à brutalidade desta fase do capitalismo e, no nosso caso, ao programa de miséria, é por outro lado uma condicionante essencial dos limites aos compromissos necessários para a convergência.
Passadas em revista as posições de política económica e consequentes propostas para a saída da crise, da esquerda radical e da esquerda liberal, conclui-se que muito dificilmente serão compatíveis, principalmente tendo-se em conta que não há meio termo entre a política austeritária sob as regras troikianas e a necessidade de recursos financeiros para uma política de crescimento e de emprego.
Conclui-se afirmando que a convergência é muito importante, mas está tanta coisa em jogo que não se pode apostar tudo nela. Há outras formas de luta, mesmo que menos eficazes do que uma luta potencializada por uma união de esforços à esquerda. Por outro lado, uma convergência artificial, sem solidez, só porque uma antiga – mas por isso diferente – mitologia a incensa, pode causar graves danos à coesão da esquerda mais consequente.
Na última entrada, tentei esclarecer alguma dúvidas ou críticas que me têm posto acerca de algumas posições minhas. Não coube no espaço disponível a, porventura, mais importante das críticas, de que eu subvalorizo a importância da convergência de esquerda (não o perfilhando por inteiro, uso o termo convergência porque está na moda). É o que tentarei agora esclarecer, mas declarando enfaticamente, desde já, que não entrarei pelo campo das culpabilizações. É mais importante uma análise objectiva, embora não se possam iludir factores subjectivos como condicionantes dos comportamentos práticos.
Comecemos por nos entendermos sobre a nomenclatura, coisa a que dedicarei mais atenção em próxima entrada, ao tentar discutir o que entendo, IMHO, por esquerda. Nesta entrada, vou falar da convergência de que toda a gente fala como “convergência, aproximação, unidade, entendimento, etc. de esquerda” considerando-se como tal o PCP, o BE e o PS (claro que do Livre espero primeiro que apareça). Só estou a falar de partidos, mas sem menosprezar, a importância crucial das forças políticas, sindicais, sociais, participativas, associativas, intelectuais, que embebem o vasto campo da esquerda.
Por razões que me parece serem inteligíveis para toda a gente, quero distinguir o PS, por um lado, e os outros dois partidos, por outro. Hesito entre falar de esquerda (pura e simplesmente) – PCP e BE – e centro-esquerda – PS; e falar de esquerda radical e esquerda liberal. Esta última dicotomia tem a vantagem de permitir usar em comum o termo esquerda, como muita gente faz, mas o adjectivo radical pode ser pejorativo, se não bem entendido.
I
Aspectos gerais; a convergência na época que vivemos
Reconheço sem dúvida a importância de uma convergência desejada por tanta gente. 1. Desde logo, afastaria o PS do canto de sereia do PSD e do CDS para a grande coligação do “arco governativo” (designação desonesta mas hábil do vivaço Portas). 2. Perspectivaria – para muitos, não para todos – uma política de menor submissão aos ditames da troika, de maior respeito pela constituição, de maior afirmação da soberania nacional e de maior defesa do estado social. 3. Permitiria uma situação mais confortável para a acção de movimentos e organizações não partidárias e não comprometidas. 4. Poderia ser uma esperança para os muitos que, aparentemente, engrossam a vaga dos desiludidos com a política e com os partidos, de forma abusivamente globalizante. 5. Também, embora não se veja este risco no horizonte, poderia ser uma válvula de escape da revolta popular emotiva e pouco esclarecida, contra o aproveitamento populista e fascista.
Resta saber é se todos estes desejos não são só isso, “wishful thinking”, desejos sem objectividade. Por isto, compartilhando do desejo bem intencionado da convergência, sujeito-o, para mim próprio, a análise racional exigente.
É do bê-a-bá de todas as guerras – e a política é uma guerra – que há o plano estratégico e o táctico. A questão muito elementar é: quando se fala hoje em Portugal de convergência da esquerda, em qual dos planos está a ser colocada a discussão?
No primeiro, significaria que, até mesmo a um horizonte distante, o movimento popular, a defesa das suas conquistas, algumas já bem antigas, a manutenção do estado social e o desenvolvimento de uma sociedade mais solidária e mais igualitária só seriam possíveis com uma aliança de toda a esquerda, mobilizadora de um bloco social amplo a derrotar a direita hoje hegemónica. Para os mais exigentes, fica a questão estratégica do caminho para o socialismo, no seu verdadeiro e profundo significado de fim do capitalismo. Será assim?
Não vejo, em Portugal, propor-se a convergência de esquerda neste sentido estratégico, a meu ver errado (tanto quanto podemos ver alguma coisa do caminho para o futuro) e, mais importante do que errado, inviável. A prazo, a solução não é de convergência, nem provavelmente deste quadro partidário e da actual esquerda. Ninguém sabe o que será, mas há sinais evidentes da degradação do atual sistema político. Pode ser uma reformulação radical da democracia, pode ser, mais imediatamente, a reconfiguração da esquerda num partido alternativo de tipo novo (não o tratamento cosmético da social-democracia que agora foi proposta como novo partido).
A convergência está a ser proposta é no plano táctico, a curto prazo, e agora principalmente como meio de mais eficaz luta contra a política ultraliberal, austeritária e sufocante dos rendimentos e dos direitos mínimos dos trabalhadores, reformados e desempregados. É o resultado da identificação do inimigo principal, coisa elementar em qualquer combate com múltiplos intervenientes.
Creio que, por todas as razões, históricas, pessoais, de cultura partidária, é o único plano em que se justifica uma discussão, serena. Neste sentido, pedia-se desde logo uma simples declaração de abertura mútua ao confronto de ideias, sem condições prévias (entenda-se: para o debate, claro que não para o entendimento). No entanto, infelizmente, nem isto será fácil, como se viu no episódio trágicocómico de Julho desencadeado por Cavaco.
Finalmente, para muitos, em formulação confusa que não percebo, a convergência é um sonho salvador, uma miragem que serve de álibi para a sua confusão ideológica, eventualmente para a sua “neutralidade” niilista e inoperante, enquanto não há alguma coisa – e quantos estão à espera do Godot Livre? – que lhes permita disfarçar um pouco a ida para o PS. Querem a convergência como um mito, como uma criança quer um rebuçado, quase que porque sim. Não propõem nada de consistente como resultado dessa convergência, não têm programa. Não vou perder tempo com esta posição.
A questão da convergência também deve ser vista em função de outra dualidade: situação ofensiva ou defensiva (sendo que, por vezes, a defensiva – por exemplo, contra o fascismo – se imbrica com a ofensiva, como aconteceu nas frentes populares da década de 30 ou nos governos saídos da resistência, quando a pressão popular obteve avanços não previstos no programa comum inicial).
Não parece haver dúvida de que vivemos uma época que, para a esquerda e para as camadas populares é marcada, essencialmente, pela resistência à enorme e até agora vencedora ofensiva neoliberal (embora trazendo consigo uma crise do capitalismo, nomeadamente do capitalismo dominado pela financeirização). Assim, só por loucura é que se devia abrir brechas nas linhas de defesa. Esclarecendo portanto a crítica errada que me fazem, este vosso humilde escriba não se considera louco, não está obviamente contra a convergência mas também não é daqueles bonecos de corda a patinar contra a parede.
A conjuntura é desfavorável, marcada pela hegemonia do neoliberalismo; portanto, a tarefa central da esquerda seria a luta antineoliberal. Neste momento, em Portugal, a posição da esquerda e do movimento popular ainda é defensiva e, nestas condições, as acções limitadas que têm surgido têm contado com uma vasta frente de esquerda – e até para lá dela – como são exemplos as sessões de protesto patrocinadas por Mário Soares. Dirão que é pouco, mas aponta para uma tendência. E, principalmente, mostra que, em termos defensivos, os partidos das esquerdas convergem (dou de barato que também o PS, mau grado a sua posição nim em relação à Aula Magna).
Mas o que muitos querem é a passagem a um grau maior de acção defensiva, mesmo ofensiva, com conquista de poder, pretendendo que a convergência também aí marque posição. É muito mais difícil. Não se passa facilmente de um plano para o outro e não faz sentido a pergunta porventura bem intencionada mas sem fundamento: "se se entendem para protestar, porque não se entendem para governar?"
Não há interesses fortemente contraditórios, na esquerda, em relação ao protesto contra a política ultraliberal deste governo, mas há-os, e muito, em relação a uma governação de esquerda, desde logo a contradição de interesses nunca resolvida, no PS, entre a captação de votos à sua esquerda e a já consagrada tendência para alianças ao PSD, seu primo na ideologia liberal.
Por toda a Europa, foi tal a cedência da esquerda liberal ao pensamento e hegemonia política da direita que mesmo reformas moderadas que se pretenda agora já exigiriam roturas consideráveis com a política social-democrata. Entretanto, não se vendo que ocorram essas roturas, e apesar de um peso eleitoral não despiciendo, a esquerda radical é condenada pelo eleitorado moderado ou de centrão a desempenhar um papel fictício de “inaptos para governar”. Como é que a desejada convergência pode vencer isto? Não basta aspirar por uma coisa, é preciso dizer como consegui-la e como ela vai resolver os problemas. De outro modo, somos apenas sonhadores.
Não é viável, a curto prazo, um governo das esquerdas sem o PS. Mas sem roturas no PS, a esquerda radical fica entre a necessidade de convergência, tão apregoada, e o risco de descaracterização, com arrastamento de todo o movimento popular. A descaracterização da esquerda radical por seu arrastamento para as posições do PS, conciliatórias, ordoliberais, sempre oscilantes num pântano de interesses e esquemas ideológicos partilhados com a direita, no essencial, seria catastrófica para o movimento popular e para o a capacidade de luta e mobilização dos partidos de esquerda radical, para a sua credibilidade. Seria um grande golpe no sentimento de representação de um sector de esquerda consequente que vale um quinto do eleitorado, com perspectivas de aumento. O exemplo italiano, na década de 90, é eloquente.
Como sair desta armadilha?
II
Condicionantes políticos
A mais basilar das coisas que se devem dizer nesta discussão é que qualquer convergência de esquerda obriga a um programa comum. Isto é tão lapalicianamente elementar que toda a gente fala em “plataforma mínima, com credibilidade”. O que é isto? Programa ou plataforma mínima é qualquer coisa mal definida de que se fala mas nunca se discute o conteúdo, a coerência, a consequência e que pode ser tão mínima, tão mínima, para permitir a convergência, que servirá para tudo e para nada. Credibilidade, muita gente pode facilmente verificar pelo opinião dominante ou então desinformada, é seguir os padrões convencionados pelo sistema como ordenadores da ideologia e da política liberal, é não questionar o euro e o sistema económico financeirizado, é respeitar a banca como vaca sagrada, é sobretudo nem pensar em qualquer rotura ou mudança radical. Ou é ser "esquerda livre", como agora uns tantos vêm dizer?
Por isto, justifica-se uma hierarquização no debate político com vista a um entendimentos generalizado à esquerda. A esquerda é tripolar ou essencialmente bipolar? Mau grado a diversidade na esquerda radical, essas diferenças são menores do que as que, na época actual, separam o todo da esquerda radical e a esquerda liberal. Assim, não se percebe bem porque muitos defensores da convergência a todo o preço, mas dizendo situarem-se num terreno que não tem a ver com a ambiguidade do PS, não começam por desejar a unidade da esquerda radical (como a Esquerda Unida em Espanha), o que a colocaria em posição de maior força para dialogar com o PS, ao mesmo tempo, num patamar relativamente baixo ou, numa fase seguinte, a um nível maior de tentativa de aproximação. Mas não será que muitos não desejam esse reforço, desejando apenas o papel da actual esquerda radical na pequena transformação do PS no "seu (deles) PS". Sempre o "verdadeiro partido socialista"!
Falemos também de compromissos, sem os quais é impossível a convergência. Mas há compromissos e compromissos. Há alguns que são mortais como beijo de mulher-aranha, pelo que é sempre necessário examinar a situação, as situações concretas e o balanço de custos e benefícios de cada compromisso. É o que este vosso humilde servo pretende suscitar neste texto, como contributo para discussão.
Como ponto prévio, anoto que, para mim, há uma data extremamente importante em relação a esta questão da convergência ou seja lá o que quiserem chamar: Maio e Junho de 2014. As eleições europeias e o fim do programa de resgate. Parece-me que, como justificarei já a seguir, que há condições minimamente favoráveis para uma plataforma eleitoral comum – mesmo que sem listas comuns – para as europeias. E também me parece que, até se saber o que se vai seguir ao fim do resgate, não há condições para um entendimento da esquerda. Isto não é contraditório. Embora se influenciem mutuamente, são processos distintos, com lógicas políticas próprias.
Não obstante a aprovação pelo PS do tratado de Lisboa e do pacto orçamental, as divergências em relação à política europeia não parecem ser tão fundas que impeçam uma convergência. Tanto a esquerda radical como a liberal criticam, mesmo que em diferentes graus, a burocracia bruxelense e a falta de democracia das instituições e mecanismos da união, o domínio do eixo franco-alemão cada vez mais reduzido apenas ao polo alemão, a falta de solidariedade para com os países em dificuldades, a assimetria de balanças de pagamentos, etc. Ao contrário de franjas não significativas de esquerda, os três partidos não perfilham teses utopicamente eurofílicas, no sentido de se dar prioridade ao terreno europeu de combate político.
Uma convergência nas europeias de 2014 seria um sinal encorajador, para o eleitorado, em relação à possibilidade de um mesmo esforço para as legislativas de 2015. Mas será possível esse entendimento para as europeias? Pode talvez haver qualquer coisa como um “pacto de não agressão”, uma frente comum de ataque à direita, mas não creio que se vá mais longe. Os partidos, os três – mas principalmente o PS, o mais próximo do poder – vão usar essas eleições para marcar posição para as legislativas, numa espécie de luta por”pole positions”. Realisticamente, não podem ser muito criticados por isto, numa eleições secundárias.
Também disse atrás que, pela mesma altura, se decidirá o que vai ser o pós-troika. A meu ver, isto condiciona determinantemente todo o quadro da possível e desejada convergência. Por muitas razões que discutirei a partir de agora, não vejo condições para que, até lá, o conjunto da esquerda radical se comprometa com o PS para cair numa política de sujeição ao que vier a seguir-se. E vice-versa, principalmente, no caso do PS, porque quererá nestes meses até à decisão do pós-troika manter abertas as portas a uma governação mais “fácil” com o apoio da direita, no caso de um novo programa ou de um programa cautelar com condicionalidades gravosas.
Tudo indica que o PS não vai ter maioria absoluta e que vai ter de procurar apoio, com ou sem coligação formal. A maior probabilidade de o fazer à direita é óbvia, principalmente se “justificada” com a necessidade "patriótica" de uma ampla frente de apoio a mais “ajuda”, seja um novo resgate seja um programa cautelar, tudo sob a grande pressão do presidente, da banca e das pessoas respeitáveis e bem-pensantes. Será um desastre. Os mais pessimistas (ou propositadamente alarmistas) agitarão mesmo o fantasma de isso trazer como consequência inevitável a revisão constitucional (mas como querem então fazer aliança com um PS em princípio capaz de tal malfeitoria?).
O problema central é, portanto, o da política de alianças do PS. A tentação do PS para oscilar para a direita é recorrente. Alguns dizem que, contra essa quase que natural tentação, é preciso ancorá-lo à esquerda. Deixo de lado as propostas dos que acham que, sozinhos, vão ser capazes de tal milagre. Que essa viragem do PS à esquerda é mais do que desejável, ninguém tem dúvidas. Mas nada vive só de boas intenções e a política muito menos.
Não vou cair na extremo-esquerdice de considerar que um governo do PS agiria da mesma forma que este. Nada pode ser pior do que este governo em sanha de destruição do estado social, de ataque à nossa ordem constitucional substantiva, à justiça social, em valorização dos princípios e critérios do liberalismo capitalista mais selvagem, na submissão nacional aos ditames externos. Por tudo isto, é necessário apeá-lo urgentemente, sem considerações sobre o que se seguirá. Quando estou a morrer de fome, não me pergunto se no dia seguinte vou comer carne ou peixe.
Mas também não vou cair no oportunismo perigoso de considerar que o PS, só por ter algum eleitorado de esquerda liberal, a par de muito eleitorado de centro, vai ultrapassar de um momento para o outro os compromissos em que se deixou enredar praticamente desde a sua fundação. Neste sentido, como uma qualquer convergência entre a esquerda radical e a esquerda liberal tem nesta o seu peso principal, não é ajuizado passar um cheque em branco.
Como toda a esquerda liberal ou a social-democracia europeia, o PS está refém de muitos compromissos. Para não ir mais longe, foi o principal negociador do memorando com a troika e é o principal responsável pelas rendas e pelas PPP.
No entanto, apesar de muita gente no PS provavelmente desejar uma grande coligação com o PSD – e agora com o exemplo alemão – e de alguns até o fazerem explicitamente, como Francisco Assis e Correia de Campos, tenho esperança em que a maioria terá a noção de que essa aliança será suicida e que, se esse governo tiver de actuar no quadro de uma situação de resgate ou similar, com uma política de austeridade, isso pode levar a uma “pasokização” do PS, com perda acentuada do seu peso eleitoral. O mesmo, talvez até ainda mais, se o PS governar sozinho mas recorrendo a processos de tipo queijo limiano.
Mais ainda. A repetição inevitável pelo PS, mesmo que em versão atenuada, da política de austeridade poderá causar uma enorme perplexidade e desmotivarão do eleitorado do centrão, vendo fracassar todos os partidos do pântano – “são todos a mesma coisa” – com graves riscos de uma crise de regime, como ainda há dias prevenia Medeiros Ferreira. Se o PS tiver consciência destes riscos, pode-se abrir uma janela de oportunidade para um entendimento na esquerda larga, se habilmente correspondida pela esquerda radical e apoiada pela pressão dos movimentos sociais.
III
Condicionantes económicas
Em épocas anteriores, os determinantes económicos podiam ser secundários aos políticos na luta da esquerda. Hoje, o capitalismo usa os instrumentos políticos, ideológicos e culturais para espartilhar as lutas populares e progressistas num quadro rígido de sistema económico com instituições, ideólogos, académicos e serventuários que põe em execução o modelo económico-social do ultra/neoliberalismo. A globalização e a prisão das interdependência na União Europeia só nos agravam esta situação. Como não podia deixar de ser, as propostas de economia política desempenham hoje também um grande papel na análise das políticas de alianças à esquerda.
Infelizmente, ainda muitas pessoas de esquerda descuram o estudo dos fundamentos da economia política, mesmo que só ao nível acessível a um amador. Creio que ficam presos a um debate político antigo e convencional, sem perceberem o que de mais importante caracteriza hoje a necessária luta contra a ofensiva capitalista.
O centro da discussão da convergência é certamente a opinião em relação às causas da crise (não por razões académicas, mas sim práticas) e quanto ao euro, e a atitude em relação à política da austeridade, aos pressupostos de austeridade expansionista, aos princípios de economia ordoliberal e às regras fixadas pela Alemanha aos outros países e às instituições europeias, em particular o BCE. Como é que cada partido se posiciona nesta discussão? Até que ponto podem convergir? Há cedências que não podem ser feitas sem lesar marcadamente a coerência programática de cada um?
As propostas mais recentes de política económica e social do PS são as referentes ao orçamento para 2014. Como é difícil discutir tantas pequenas propostas soltas, e porque elas reproduzem propostas anteriores mais sistematizadas, são estas que vou recordar, nomeadamente o pacote apresentado no debate parlamentar de emergência, em 1 de Março deste ano, repetidas depois, no essencial, numa conferência de imprensa de Seguro, em 9 de Abril.
No essencial, o PS propõe a suspensão das medidas de austeridade, mormente o corte dos 4000 milhões de euros para trazer o défice para 4%; o estímulo à economia, mediante a restituição da taxa do IVA da restauração, a criação de um banco de fomento para as PME (proposta também do governo), o aumento do salário mínimo e das pensões mais baixas e um programa de reabilitação urbana; e uma política de apoio aos desempregados.
Em relação aos credores, o PS usava por vezes a expressão renegociação da dívida, embora com ambiguidade (por exemplo, recusando sempre um “haircut”, isto é, corte parcial do montante da dívida), mas agora já fala é de renegociação das condições do ajustamento (a pensar já num segundo “reajustamento”?), incluindo as condições, os prazos e os juros, bem como o reembolso pelo BCE do diferencial de lucros obtidos com a compra de dívida soberana portuguesa.
A pergunta que muitos fazem é elementar. Já estão escaldados de tantas promessas falsas e de andar a oscilar, com o seu voto, entre os dois lados igualmente lodosos do pântano do centrão. No quadro defendido pelo PS do respeito do acordo com a troika, de recusa indiscutível de denúncia do memorando, de apoio à manutenção da zona euro e à nossa permanência nessa área, onde vai o PS conseguir o financiamento desse seu programa?
Segundo dados do próprio PS, só a baixa do IVA da restauração, o programa de emergência para desempregados e o programa de reabilitação urbana custariam 420 milhões, fora o aumento das pensões e o financiamento das PME. E, claro, os tais 4000 milhões, a menos que o PS diga à troika que tenha paciência porque não vamos diminuir o défice orçamental, com a troika a dizer logo que sim. Por outro lado, a simples renegociação das condições do empréstimo (o que até o governo tenta fazer e já conseguiu parcialmente) não diminui a dívida, até prorroga e aumenta o seu serviço e, portanto, não resolve o problema da sua insustentabilidade.
Mais considerável, de facto, é o que se poderia lucrar com a devolução de lucros pelo BCE, estimados em cerca de 3000 milhões. Mas como consegui-lo? A Itália e a Grécia, com partidos sociais-democratas no governo, mesmo a França de Hollande, estariam interessadas, mas onde já se viram diligências portuguesas (PS) nesse sentido?
Mas, sabendo que, na zona do euro, não se pode criar dinheiro por emissão clássica ou por alívio quantitativo (“quantitative easing”), que é preciso afrontar os poderes europeus para nos comprometermos com endividamento (e que não é desejável, além de certo ponto), que não podemos usar a desvalorização da moeda nem a taxa de inflação, o PS sabe bem que as medidas que propõe são inexequíveis no seu quadro de posições políticas e compromissos. Neste sentido, a direita tem razão: não há dinheiro. Claro que só não há dinheiro se obedecermos às regras troikianas secundadas religiosamente pelo tal “arco da governação”.
Em contrapartida, a esquerda radical partilha, no essencial, uma visão oposta. Consideram a criação do euro uma aberração impossível de aperfeiçoamento e que, pela sua própria natureza, vai acentuar cada vez mais os desequilíbrios entre o centro e a periferia. Consideram que a austeridade que nos tem sido imposta não só sacrifica brutalmente os mais desfavorecidos, e tendencialmente cada vez mais camadas sociais, como também diminui a produção de riqueza, por diminuição da procura interna, e aumenta o desemprego, gerando um ciclo vicioso de menor produto, menor receita fiscal, maior défice, maior austeridade, menor produto.
Mas, considerando isto como por vezes o PS também afirma, o PCP, ou o BE, ou ambos não propõem como “alternativa” uma “austeridade suave”, antes uma verdadeira reestruturação da dívida, incluindo dos seus montantes, o apuramento de “dívidas odiosas” e a indexação às exportações do serviço da dívida, sabendo que os credores, se pressionados, preferem perder alguma coisa a perder tudo. A par, outras propostas, como o fim das privatizações, a alteração da política fiscal para combate à especulação financeira e ao favorecimento dos bancos. Segundo esta perspectiva de política económica, só uma restruturação permite os recursos financeiros para uma política expansionista e contra o desemprego, promovendo o aumento da procura e o aumento da produção.
A necessidade, mesmo a inviabilidade de reestruturação da dívida é também defendida por diversas entidades não partidárias, como o Congresso Democrático das Alternativas e a Iniciativa para uma Auditoria Cidadã da Dívida, bem como por um número crescente de economistas, de vários quadrantes, portugueses e estrangeiros. Mesmo no PS, algumas vozes, é certo que isoladas e marginais, se têm feito ouvir, como João Cravinho e Ferro Rodrigues.
No entanto, ao contrário do que agita a direita e mesmo o PS, a esquerda radical não propõe imediatamente a saída do euro. Apenas não afasta esta possibilidade e propõe que, pelas suas consequências não subestimáveis, ela seja estudada urgentemente e com profundidade.
Dito isto, que base programática se pode imaginar como cimento minimamente sólido de qualquer entendimento da esquerda, na perspectiva de governação (seja coligação pré ou pós-eleitoral, seja apoio a um governo do PS, eventualmente com independentes apoiados pelos três partidos, etc.)?
O caso grego, nos seus desenvolvimentos mais recentes, mostra que não pode haver solução de meio termo, estando com a troika e tentando jogar contra ela. O governo grego, atemorizado com a previsíveis reações sociais, tem andado a “empatar” a execução de medidas impostas pela troika mas está sem fundos porque a troika cancelou o pagamentos das “tranches”, num braço de ferro com o governo.
Conclusão
A convergência é muito importante, mas está tanta coisa em jogo que não se pode apostar tudo nela. Há outras formas de luta, mesmo que menos eficazes do que uma luta potencializada por uma união de esforços à esquerda. Por outro lado, uma convergência artificial, sem solidez, só porque uma antiga – mas por isso diferente – mitologia a incensa, pode causar graves danos à coesão da esquerda mais consequente.
E se falhar? A história inventa sempre novos processos, com novas dinâmicas, mesmo que, entretanto, perdure o sofrimento. O optimismo é uma atitude de revolucionário, não a impaciência, sem que isto signifique o alheamento idealista e sobranceiro dos perigos que nos ameaçam, com a degradação económica, social, política, com riscos para a democracia. O que vai acontecer? Quando nos libertaremos? Em 2015, nas eleições? Ou só quando houver novos instrumentos políticos de esquerda que superem os actuais bloqueios das esquerdas – sem ser incoerentemente e num regime político caduco?
Mas, sempre, em todos os casos, é urgente e imprescindível traçar claramente a linha que o país não está disposto a ultrapassar. É este, para mim, o desafio a qualquer compromisso, a qualquer convergência.
Há pelo país uma sombra triste e angustiante de ausência de esperança. É tempo urgente de todos os homens e mulheres de esquerda consequente ou que ainda mantêm um fundo de ideais e valores democráticos e progressistas transformarem o desejo de convergência numa força motora de avanços e solidez do bloco social e político de esquerda, com correcção, em espírito de ajuda fraterna, de erros acumulados por uns e outros e, principalmente, sem conciliação espúria, ou mesmo rendição, ao inimigo principal.