domingo, 20 de março de 2011

12/(3 (VI)

Com o que julgo ter sido alguma precipitação, o movimento “geração à rasca”, no entusiasmo do sucesso da manifestação, substituiu a sua página de mobilização no Facebook por um fórum de debate. Com isto, perdeu a sua força, o grito de revolta, o passa palavra para ir à rua. Perdeu para uma discussão confusa, pobre, compreensivelmente pobre porque nunca na história se passou imediatamente do grito para o pensamento. Antes o contrário, com 1789 precedido pelos grandes filósofos iluministas franceses; 1848 pela segunda vaga de democratas e principalmente pelos primeiros socialistas, Louis Blanc e Proudhon; depois a comuna de Paris e, é pena, o conflito ideológico entre marxistas e anarquistas. 
Nunca na história um movimento de revolta pura e simples, de zanga, levou a alguma coisa se não alicerçado em longo, paciente, aparentemente inglório trabalho anterior de construção de ideias. Nem se pense que isto é novo nestes tempos de Avenida da Liberdade. Há vinte ou trinta anos que muita gente, memso em Portugal, vem difusamente a pensar e a escrever sobre a “esquerda alternativa”, que não é, para mim, o BE!. Sabem quem foi, fora de tempo, pateticamente, em 1987? O MDP libertado da prisão da CDU mas já sem fôlego e depois, exauridos, a submissão à OPA da Política XXI, depois o BE.
O fórum 12/3 é uma grande confusão, difícil de seguir, desorganizado, uma mistura de coisas infantis que fazem sorrir pela sua candura inocente mas bonita e generosa, outras tontas ou irrelevantes, outras muito interessantes mas lamentavelmente diluídas em toda aquela torrente de comentários e “posts”. O trabalho que tenho tido para compilar coisas interessantes, e que até não são poucas, a desafiar-me os neurónios! Pior, algumas outras coisas verdadeiramente tóxicas, em termos de mínima sabedoria política. Vou dar um exemplo, a ver se ajudo a alguma “vacinação”. Falo de uma cadeia sobre democracia direta, originadas por um psicólogo já de idade respeitável, o Doutor Patrício Leite (doutor por extenso quer dizer que tem doutoramento, coisa que não consegui confirmar, ou é só entitulamento irrelevante num escrito político?).
A sua tese é simples. A Assembleia da República (AR) é um desperdício, uma fonte de corrupção, inteiramente substituível pela “democracia online”. Depois das convocatórias pelas redes sociais, agora a decisão política virtual. Nada mais simples. Qualquer cidadão com acesso à net (todos os cidadãos?! os infoexcluídos, muitos, por falta de recursos materiais ou culturais, são coisa sub-humana, sem direitos cívicos?) “posta” uma proposta de lei. Abre-se um fórum de discussão e, no fim, clica-se ou não no botão “concordo”. Nada mais simples, pois não? E nada de mais democrático?
Comecemos pelo sério, pelo que já há de conhecido sobre a democracia direta. O melhor exemplo, que eu conheci bem por lá ter vivido, é a Suíça, com os seus referendos e iniciativas populares. Parece que funcionava bem no tempo medieval das assembleias cantonais, alpinas, de duas centenas de pessoas (só os homens, claro), na manhã de domingo. No meu tempo, eram votações muitas vezes importantes, vinculativas, mas sempre com características comuns: alta taxa de abstenção; manipulação demagógica, porque muitas vezes assuntos tecnicamente difíceis, sem debate verdadeiro antes da votação; por isto, geralmente, vitória de posições xenófobas, reacionárias. Saliento o xenófobas, porque era "leitmotif" a rejeição do estrangeiro. A propósito, falta nos textos de 12/3 alguma coisa de solidariedade com o miseravelmente excluído terço dos imigrantes. Estão a esquecer o que é a sociedade dos dois terços? Quem é que está mesmo à rasca? O licenciado quinhenteurista ou a minha empregada africana? 
No entanto, ao contrário da proposta do defensor da "democracia direta", havia e há algum bom critério neste processo suíço tradicional. Como também em algumas experiências pontuais americanas, por exemplo os caucuses ou a participação decisiva na vida comunitária do interior americano, escolas, obras públicas, administração. Na Suíça, as iniciativas são populares mas não de qualquer maluco que “posta” um delírio, exigem alguns milhares de proponentes. Em alternativa, são propostas pelos partidos. Passam pelo filtro legislativo e são suieitas a debate organizado. E, obviamente, não é coisa de clicar num botão, é voto tradicional, porque só quem fala tão primariamente em democracia direta pela net é que não percebe o risco de insegurança e de ilegitimidade do voto que isto tem. Mesmo assim, o resultado é criticável.
Depois, tão bom que seria eu e os meus leitores conseguirem perceber um projeto de lei, neste tempo de enorme complexidade técnica e económica, a possibilitar o “concordo”! Ou haverá alguém a fazê-lo por nós, também com toda a manipulação mediática e nética, qualquer Padre Malagrida senil mas até há pouco acarinhado por essa abencerragem que pontifica na SIC Notícias, ou qualquer Big Brother à espera do aplauso de milhares de "à rasca" que clamam por um Salazar que até foi "um homem sério, protetor da Pátria", embora defensor de uns "abanões a tempo"?
Depois ainda, o autor esquece que o parlamento é muito mais do que um órgão legislativo. É o órgão de fiscalização do governo, com poderes até de sua demissão por moção de censura. É um órgão de contra-poder em relação ao PR, podendo sobrepor-se aos seus vetos. É um órgão com competências muito importantes em relação à nomeação de figuras decisivas do Estado e a inquéritos sobre assuntos de grande relevãncia política. Como é que isto se faz pela net? 
Fico por aqui, acho que já basta. Estou muito interessado na potencialidade de emergência de novas ideias fecundas no fórum 12/3, mas não desejo ver-me submerso por um tsunami de coisas sem sentido. Amigos, 4, do 12/3, ficaram reféns de uma grande iniciativa para cuja sequência não estavam preparados, para a qual não têm ideias, nem se espera que as tenham. Mesmo assim, ou por isso, espero que organizem e filtrem melhor a discussão. Sei que estou a dizer coisa horrorosa: "filtrem". Coisa afascistada, a lembrar lápis azul. Um dia destes dar-me-ão razão. Limpidez e eficácia do debate, a caminho de rápida construção dialética de uma opinião mobilizadora, não tem nada a ver com censura. “Bom senso e bom gosto".


P. S. - Não se confunda democracia direta com democracia participativa. Sobre esta, muito importante, espero ter tempo de ainda vir a falar, antes das eleições, embora já a contra-relógio.

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