É falacioso o argumento, muito usado pelos militares, da especificidade institucional em relação à homossexualidade masculina, agora em foco com o caso do Colégio Militar (CM) e da demissão do Chefe de Estado Maior do Exército (CEME).
As relações afetivas íntimas podem criar problemas institucionais, funcionais, em certas atividades, principalmente se envolverem pessoas com subordinação hierárquica uma à outra, tão importante nas forças armadas. Mas não só: a própria ciência – em que agi durante tantos anos – é uma atividade que mistura uma forte articulação horizontal, de colaboração, e uma necessidade de liderança, com relações verticais. Por isto, é frequente que instituições científicas, claro que autorizando a contratação de cônjuges, até a favorecendo como segurança da família, não permitirem que trabalhem na mesma unidade e no mesmo tema de investigação. Sei bem como isto é sensato.
No caso das forças armadas (FA) acresce à dependência hierárquica normal, como conhecemos em quase todas as atividades, a obediência e a disciplina estrita. Não é difícil aceitar que uma relação conjugal ou mesmo uma ligação amorosa possam dificultar a prática dessas características funcionais da vida militar. Outra dificuldade, nesses casos, pode ser a suspeita, mesmo que infundada, de falta de isenção, coisa muito importante no comando respeitado de homens.
Simplesmente, o CM não é uma unidade militar, não se organiza e funciona em lógica de preparação para o combate. Portanto, sob a capa de preparação militar e educação em valores, está-se a incutir em jovens o hábito de atitudes profissionais, confundidas com valores, e de facto a treinar a maioria, que não seguirá a carreira militar, a serem civis-soldados, com comportamentos que, se aceitáveis ou mesmo necessários na vida militar, não o são de todo, pelo menos da mesma forma, na vida civil.
Depois, trata-se de jovens em idade em que muitas vezes a orientação sexual ainda tem alguma ambiguidade e a sua punição pode ser um ferrete para a vida, Para além da ilegalidade e imoralidade da segregação e punição, a expulsão do CM é certamente tida como vergonha, em particular tendo em conta a cultura própria de quem ou os seus pais escolheu tal colégio invulgar.
Por outro lado, tudo o que escrevi acima sobre os possíveis problemas militares de uma relação conjugal ou amorosa vale para qualquer relação, hetero ou homossexual, incluindo entre lésbicas, agora que já há tantas mulheres militares. Limitar o problema à homossexualidade masculina (e agora o CM até também tem alunas) não traduz uma preocupação militar justificável, mas sim pura e simples homofobia.
Outra falácia é a da necessidade de respeitar a “sensibilidade militar”. É coisa que precisa de ser escalpelizada. Essa sensibilidade é compreensível quando significa a preocupação dos militares em verem reconhecida, por exemplo pelo poder político, a especificidade da sua profissão. Na maioria dos casos, todavia, tende a ser apenas manifestação de espírito de corpo ou de casta.
Pode mesmo chegar a coisas que, mesmo que legítimas, dificilmente deixariam de ter consequências para outros servidores do Estado, como o apelo à recusa concertada de todos os generais de aceitarem a nomeação como CEME. Afinal, um tiro de pólvora seca, já que o novo CEME foi nomeado em prazo curto após a demissão do anterior.
Claro que uma desautorização pública de um militar tem consequências muito negativas, mas também a de qualquer dirigente político e da administração pública. Mas foi desautorizado o ex-CEME? Entendo que não, que foi ele que não se deu ao respeito quando, durante dias depois das inconcebíveis declarações públicas do sub-diretor do CM, ficou silencioso, podendo daí deduzir-se a sua conivência e concordância. O Ministro fez o que devia, e que se teria evitado se o CEME também tivesse feito o que devia. O Ministro, pelo que li, não ameaçou demitir o CEME nem de forma alguma o repreendeu. Limitou-se a interrogá-lo sobre o que se passava no CM e sobre o que o CEME pensava fazer.
Falou-se também, até eu me referi a isso, de inabilidade do ministro. Claro que todas as sensibilidades têm aspetos políticos que, taticamente, devem ser tidos em conta, por simples razão de eficácia. Mas isto vale também para todas as profissões com peso mediático ou com capacidade de influência, de pressão policia ou sindical: juízes, policias, professores, etc. O que esta atenção prática à “sensibilidade” não pode ser confundida é com receio, com limitação do dever de atuação de um governante.
Nem tudo o que é essa sensibilidade é razoável e muito menos se pode converter em fundamento mais ou menos assumido de corporativismo. E, sendo uma questão cultural (e não de essência da “psicologia dos militares”, como diz o comunicado da Associação 25 de Abril), pode sempre e deve ser analisada e corrigida, com outra cultura, ainda que com respeito pelas especificidades funcionais (e não psicológicas…) da vida militar.
Finalmente, lamento que a minha Associação 25 de Abril, que não representa militares nem sequer os capitães de Abril, fundadores, é certo, mas agora seus membros como tantos civis, tenha vindo a imiscuir-se neste assunto corporativo. O seu presidente é um militar respeitado, a quem a democracia muito deve. Individualmente e como militar reformado, já se tinha pronunciado, como é seu pleno direito. Não o devia ter feito em termos da Associação.
Além do mais, são muito lamentáveis os termos do comunicado. A questão para a direção da A25A resume-se a uma manipulação pelos lóbis (presume-se que o lóbi gay ou talvez um desconhecido lóbi anti-CM), com aproveitamento partidário. Tudo indefinido, sem dar o nome às coisas, hábito nosso tão vulgar e detestável. E não há o lóbi, ou irmandade de proteção mútua, dos ex-alunos do CM?
Pior é dizer-se que as declarações do subdiretor do CM “podem ser” (ou são?!) “imprudentes e não politicamente corretas”, assim como terem sido deturpadas. É falso; não houve qualquer deturpação, como se vê inequivocamente pela leitura da entrevista do Observador.
E, a propósito: pode um subdiretor de um estabelecimento militar conceder entrevistas a um jornal sem autorização superior, desde logo do diretor? Não é apenas questão militar; eu fui diretor duma instituição pública e não aceitaria que o meu subdiretor falasse do instituto sem primeiro me consultar. Não o proibiria, mas podia eventualmente tirar consequências em termos de confiança.
Subscrevo por completo João
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