quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Acordo ortográfico

Vou dar a mão à palmatória, embora não renegando muito do que escrevi sobre o acordo ortográfico (AO), certamente não renegando o essencial.

Essencial do essencial é sempre ter considerado que a ortografia é uma convenção, um fato que se veste sobre o corpo da língua. Preocupa-me muito mais que ela seja bem falada e que eu não possa ouvir, como ainda ontem ouvi, uma personagem notável da nossa vida política e social esperar que, em 2013, “póssamos” ter um ano melhor. Que alguém disse um célebre “há-dem ver”. Que “hão-de haver coisas boas”. “Que tenho que fazer isto” (no sentido de devo fazer). Ou que tenho um site com muitos links de onde faço muito downloads de files quando estou conectado e a net a funcionar.

Fui fazer um teste. Herança de avô com alma de renascentista, tenho algumas coisas de Camões em edições muito precoces (por exemplo, uma edição dos Sonetos de meados do séc. XVII). Tenho também coisas facsimiladas de Gil Vicente e de António Ferreira – não de Sá de Miranda – e, claro, a primeira edição dos Lusíadas. 

É certo que sessenta anos separam os dois génios, Camões e Gil Vicente. Mas, se pensarmos que Gil Vicente, culto, escrevia como era uso então corrente, que transgressões cometeu Camões! Ele não é só o poeta genial. É, para mim leigo, e como os italianos reconhecem em Dante, o inventor do português moderno, com os seus companheiros renascentistas portugueses (por isto referi António Ferreira ou poderia ter referido Sá de Miranda, mas deste não conheço escritos na sua ortografia pessoal).

Refletindo sobre os últimos desenvolvimentos do AO e sobre a minha experiência de escrita segundo ele, começo a pensar que tem muito menos importância para a unidade da língua – e até que ponto deve a língua ser única? – que todos escrevam acto/ato da mesma forma do que os portugueses não consigam entender uma evolução de língua que mete bonde, trem, chope, chácara, aeromoça, quilombo; ou que um brasileiro não saiba o que é chana, muceque, cabrito (não estou a falar no bicho) ou machimbombo. Ou que até, neste canto primevo, muita gente não saiba o que é semilha ou – desculpem-me! – o duo blica e pinta.

Sendo uma convenção, eu  – não especialista – simpatizo muito mais com uma lógica fonética do que com a etimológica, com a qual ainda estaríamos a escrever pharmacia. Também me parece paternalismo infantilizador defender que preciosismos de ortografia são necessários para a boa aprendizagem. E então os homónimos e homógrafos? Alguém tem dúvidas, no contexto de uma frase, se banco é de sentar, de ir a dinheiros ou de urgência de hospital? Para voltar ao exemplo a meu ver desonesto do “cagado”, só um idiota não percebe quando se fala de um animal ou de um borrado. Quantas línguas há no mundo que não têm acentos, a começar pelo inglês? 

Alguma criança que aprende inglês tem dificuldade em perceber esta palavra esquisita, “through” ou pior ainda “throughout”, em que os dois “ou” se leem de forma inteiramente diferente e outras duas letras ("gh") não se pronunciam de todo? Coloquialmente, os americanos escrevem "thru".

Com o meu sentido prático, encarei esta coisa do AO principalmente do ponto de vista de rendimento de trabalho e de ergonomia: quantos caracteres ia ter de teclar a menos? Vou mais longe, podia ser mais radical, porque ter de escrever 5 para “homem” em vez de 4 para “omem”, coisa que não faz nenhuma impressão aos herdeiros mais diretos do latim, os italianos, que escrevem “uomo”?

E isto para não esquecer o “SMSês”! Tb keres ir? Ke k dizes?

Para além dessa minha concordância prática com o AO (“ce eu levaria mais lonje em lojica fonetica como no ruso ce Sirilo normalizou em escrita”), tive razões práticas para adotar o AO. Com a sua identificação emblemática com a lusofonia, a U. Lusófona adotou oficialmente o AO e, em princípio, devemos escrever os textos oficiais e didáticos segundo ele. Como uso muitos destes textos na minha escrita pessoa, não fiquei nada na disposição de ter de usar dois corretores e a estar a pensar a cada momento como escrever. Adotei o AO, já que era na ULHT, também em casa, com a facilidade de o corretor de Português do Brasil funcionar muito bem. Note-se que, com isto, estou a dar razão a muitos adversários do AO: tenho já suficiente experiência do AO para saber que um texto escrito de acordo com o AO é, essencialmente, escrito em português do Brasil, tal como demonstrado pelo "spelling" do Word ou do Pages.

Mesmo assim, muitas vezes tenho dúvidas e tenho de ir ao Lince. E, para minha surpresa, cada vez mais me deparo com ainda mais dúvidas, com grafias duplas permitidas pelo acordo ou com a nota de que o termo ainda não figura no inexistente vocabulário comum. Então o uso do hífen dá-me cabo da cabeça.

Também a ambiguidade política na CPLP, com Moçambique a ratificar relutantemente, com o gigante angolano a recusar, com o Brasil a adiar agora por mais uns anos, com semanas de férias de leitura de jornais caboverdianos no velho português. Começo a duvidar. Acho que há em tudo isto interesses de mercado livreiro a abafarem um esforço possível de entendimento baseado em critérios científicos e de sentido das realidades do uso da língua em cada país, principalmente naqueles em que o português é apenas um unificador político.

Também aceito o argumento que me têm contraposto ao AO, que não há necessidade absoluta de uma norma comum para textos oficiais ou de negócios. Afinal, que inglês é língua oficial da ONU? O americano, o britânico, o australiano, o canadiano? Abram um processador de texto e veem lá a possibilidade de escolhas por cada um destes dicionários de inglês. Claro que, sendo a Apple e a Microsoft o que são, a opção americana é aquela que aparece sem adjetivação, simplesmente “English”.

Assim, até se ver, este é o último texto meu em que o “defeito” (“default”) será o dicionário eletrónico “Português do Brasil”. Não recuso o AO, mas talvez seja prematuro aplicar este. Isto não quer dizer que me vá meter em discussões linguísticas para que não estou habilitado. Simplesmente, quero ser prático. É evidente, porém, que, nos documentos oficiais da minha universidade seguirei as suas normas e usarei o AO, que ela adoptou, com total legitimidade e base legal. Vai dar algum trabalho, mas é dever de ofício.

NOTA 1 – Esta entrada (aqui está, nunca escrevo post ou, mais execravelmente posta! "Blog" vem do velho "Logbook" de marinha, o diário de bordo, onde se faziam entradas) foi-me suscitada por uma artigo de Vasco Graça Moura. Tenho-o considerado como um fundamentalista nesta questão, claro que contra o AO. Este seu artigo parece-me mais sereno e sensato, embora baseando-se sempre em argumentos científicos que provavelmente nenhum de nós domina (não basta ser um muito bom homem de letras para se ser linguista). A novidade deste artigo, para mim, é analisar objetivamente fatores políticos importantes. Merece que eu ache que, se calhar, não estamos irredutivelmente contrários.

NOTA 2 – Não se entenda deste texto que me oponho a um AO. Como já tenho dito, até iria mais longe em coisas hoje foneticamente sem sentido, embora com muito sentido na história da língua e até tão recentes, como fonemas diferentes, que Verney criticava que se estivessem a perder. Por exemplo, a assimilação dos sons que justificavam "x"[x] e "ch" [tx], "ss" [s] e "ç" [ts], "jeito" e "gesto" [j e dj]. O que acho é que o atual AO é divisor em coisa tão importante que é um espírito de família, com o afeto estranho entre colonizadores e colonizados. Não se perde nada em usar mais alguns anos para se estudar este assunto.

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