sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Férias de namoro com Cabo Verde (IV)

O turismo em Cabo Verde

Logo à chegada ao hotel, prolongando-se a impressão pelos dias seguintes, era manifesto que, para além de alguns grupos de franceses, italianos e alemães, de visível bom nível socio-económico (exceto uns ingleses a tenderem mais para “Liverpool dockers”), a esmagadora maioria era de portugueses.

Exorbitava, com o seu alto tom de voz característico e com palavrões, gente do “Puarto”. Fiquei a pensar porquê. Questão técnica, uma agência portuense mais agressiva? Não me parece. A mesma empresa, a Abreu, organiza o pacote charter-hotel de uma semana, tanto de Lisboa como do Porto. Todavia, perguntando eu quantos turistas vinham no voo de Lisboa e quantos no do Porto, confirmou-se a minha impressão. Muito mais do Porto. Mas há maior poder de compra no Porto, ou há um padrão diferente de compra?

Tendo nós encomendado um esquema fora das normas e mais caro, cerca de 1700 € por pessoa, com escolha sempre top do alojamento, visita a outras ilhas, uma data de voos entre ilhas, só agora, indo à “net”, vejo que uma semana no nosso hotel da Boavista, tudo incluído com voo direto, nas nossas escolhas de nível, custa cerca de 900 euros. Dispensando os nossos requintes, pode vir para 700 euros. Em pacote de família com pelo menos 4 pessoas, quase metade. E biba o Puarto! E carago, não toquem essa tal Cesária, toquem Quim Barreiros!

Alguns turistas nortenhos educados com quem falamos faziam este fim de férias, mas usavam um fim de semana de inverno para irem a Londres ou Paris. Era o que se passava com o casal X, do grupo do "charter" do Porto, com quem conversámos. Disseram logo que, com a  crise, nunca pensaram viajar com tanta gente de nível social e económico evidentemente baixo. E têm dinheiro, nesta crise da austeridade! Por este exemplo, mais do que em Lisboa. Porquê? Não ganham mais, a não ser por economia paralela. Provavelmente têm menor nível de gastos.

Diz-me a morena: “em que gastamos? Cinema semanal, teatro e ópera mas só quando vale a pena, livros é certo que muitos, discos e DVDs também, de vez em quando um restaurante top, uns drinks num bar à beira mar, alguma roupa elegante, duas vezes ao ano nos saldos, alguma coisa de gourmet, mas raramente”. É isto extravagante? Não é, mas é caro para quem compra apenas o nível mínimo da oferta do supermercado e com cartão do Continente.

Assim, há toda uma camada social de pequena burguesia que até pode ganhar bem, em esquemas, que nessas coisas gasta pouco, ao nível dos seus hábitos, que nunca comprou um foie gras, que não lê um livro, que não paga descarga da internet, e que poupa para, em férias, serem senhores. Ainda não sentiram a troika.

Mas, insisto, porquê mais no norte do que no sul?

E confesso-me elitista, o mais aristocrata dos democratas. Depois desta experiência, não me apanham em resort de portugueses em que se grita aos berros para as criancinhas de um para o outro lado da piscina. Em que às 8 já todas as espreguiçadeiras estão marcadas com toalhas de gente que só lá vai a meio da tarde. Em que as criancinhas, com os pais ao lado, dão pulos seguidos para a zona da hidro-massagem. Em que as casas de banho estão inundadas de urina e o assento da sanita está todo regado. Em que quase metade das pessoas estão tatuadas. Em que toda a gente se atropela nas filas do bufete. Em que ninguém fecha a porta de um bar com ar condicionado. Em que se pede um "uisquezinho". Em que as pessoas apregoam em alta voz o seu catálogo nortenho de palavrões. E muito mais.

Uma senhora a quem, muito justamente, alguém tinha surripiado a toalha, deixando depois livre para mim a espreguiçadeira, veio dizer-me, indignada, que eu estava deitado sobre a sua toalha. "Mas julga que eu sou capaz de me deitar sobre a toalha usada de alguém, muito menos a sua?"

É português mediano. Dizer que o português mediano é rasca é coisa reacionária, aceito. É a democratização, com acesso alargado a muito que antes era de elite, e muito bem alargado. Enriqueceu o povo, embora as maneiras, o estilo, o bom gosto mínimo, tardem sempre uma geração em relação à conta bancária. É excelente que a pequena burguesia do meu tempo de jovem, então confinada na Reboleira do J. Pimenta e sem saber o que eram férias, possa hoje ter isto. Por isso lutei muito, mas com a ilusão de que ia ver toda esta gente ao meu nível. Nivelamento por cima. Afinal, sou eu que tenho de viver rasca.

Férias de namoro com Cabo Verde (III)

O turismo em Cabo Verde

O último número do Monde Diplomatique (edição portuguesa) traz um artigo controverso sobre o atual turismo, como forma de alienação e de neocolonialismo. Não concordei em absoluto com o artigo, mas esta nossa viagem fez-me pensar.

O investimento é estrangeiro e manda. Mas o país não deve proteger-se contra a atitude do investidor de matar rapidamente à fome a galinha dos ovos de ouro? Disseram-me lá que há um serviço público de controlo da qualidade dos hotéis, mas que frequentemente fecha os olhos.

O investimento é estrangeiro e manda. Sabe que vai ter uma clientela pouco exigente, tem lá um diretor de hotel em comissão de um ano que só deseja que não haja muitas chatices ou que as possa passar ao sucessor.

É uma clientela sociologicamente muito interessante de análise. Depois direi mais, mas agora uma pérola que ouvi, conversa de mãe e filho. “Mãe, não fiz a cama”. “Filho, aqui não tens de fazer. Pagamos é para sermos servidos, os criados é que fazem a cama”. “Mas vai sempre assim?” “Não, filho, quando voltarmos, como não temos empregada, vais tu fazer a tua cama, como de costume”.

A clientela típica quer piscina (só uma pequena minoria vai à praia), bar aberto e prato tipo gamela cheia de tudo no bufete do almoço e jantar. Quase ninguém se levanta duas vezes - e há dois conjuntos de talheres na mesa - para ir ao bufete, uma para a entrada/salada, outra para o prato. Vem tudo a molho. 

Apesar disto, tendo o hotel (Iberostar Clube Boavista, um dos dois mais caros da ilha) em conta  outros estratos de clientes, o serviço é geralmente bom, embora muito longe do que propagandeiam na net ou das 5 estrelas que o departamento de turismo de Cabo Verde lhe atribui.

“Geralmente bom”, como escrevi, não quer dizer que não haja coisas inadmissíveis. Dois dias sem limpeza do quarto. Muito pior, em outros dois dias, ao fim da tarde, não tivemos eletricidade nem água durante três ou quatro horas, na hora crítica de se querer tomar o duche depois dos banhos de mar e de se querer jantar com ar condicionado, vendo o que se come e com bebidas frescas a sair do frigorífico. Nem velas havia para todas as mesas.

Ontem, no bizarro e bonito aeroporto tropical da Boavista, veio um cabo-verdiano meter conversa, “o senhor não foi o que protestou ao jantar ontem? Gostei muito”. Infelizmente disse mais, que o cabo-verdiano (e o português?) não protesta, porque sabe que não dá nada. O que tinha sido o meu protesto? Simplesmente chamar a encarregada da sala e dizer que exigia que o diretor viesse à sala dar uma explicação e pedir desculpa aos hóspedes. Claro que não veio, mas disseram-me depois que tinha tentado falar comigo, pessoalmente, Respondi que não era ninguém a merecer conversa especial, era só um de muitos hóspedes.

Esta da falha de eletricidade tem que se lhe diga, como apurei, sem revelar a fonte. Com a sobranceria do neo-colonizador (que paga em geral 200 € por mês a cada empregado), mas espanhol, não português, a companhia resolveu ser autónoma. Instalou dois geradores e, deles dependentes, bombas elevatórias da água. Afinal, projeto minimalista de especialistas espanhois, a falhar semanalmente nos dias de maior afluxo de turistas. E eu a ver Sal Rei, a povoação ao lado, sem uma falha do fornecimento público de eletricidade e água.

Acabei também por ver que um hotel com quase um milhar de hóspedes não tem um posto de socorros. Um dos hóspedes fez na piscina - inadmissivelmente, cortando-se numa grelha semiaberta - um grande golpe num pé, sem necessidade de cuidados, como sutura, mas a sangrar bastante, como acontece com uma ferida feita dentro de água. À falta de alguém responsável, apresentei-me como “médico”. Entretanto, estavam a levar o homem em braços, a pingar sangue por toda a parte, até eu mandar embrulhar bem o pé em toalhas, esperando vir um socorrista (que nunca apareceu). Vieram limpar o sangue com detergente banal e esfregona, só depois acatando a minha instrução de usarem o hipoclorito de desinfeção da piscina.

Não é Cabo Verde que tem culpa disto, só os “clubes de férias” que por aí andam. Simplesmente, as coisas misturam-se e sinto que, ao escrever isto, posso estar a prejudicar o país, na dependência que tem do turismo.

Mas, mesmo com estas chatices, não esqueceremos a simpatia e alegria do grupo de jovens responsáveis pela animação (e com quem, em conversas de maior confiança, aprendemos muito), só não desculpando a batota que o Breiman fazia no blackjack ou os quiriquiqui que anunciavam aldrabice divertida no anúncio dos números no bingo ;-) "Quarenta e quatro, thirty four", "setenta e cinco, sixty five, soixante treize". Toda a gente bingava errado!

Bem como a comunicabilidade sorridente de todo o pessoal. Eu não percebo como se pode ir “descobrir” um país metido num resort, sem falar com os “nativos” e hoje, com a facilidade de informação, sem se ter lido uma data de páginas da wikipedia. E sem se ter sentido os dois grandes mundos de vida daquela terra, as cidades da Praia e do Mindelo.

Pode ser que a clientela seja reduzida, mas valia a pena a oferta em pacote do que fizemos: Santiago, S. Vicente, Boavista. Um dia a mais no Fogo ou em S. Antão não calhava mal.

Sobre a simpatia, dou de barato que os profissionais de turismo têm de a manifestar, mas sentimos muito mais, no homem da rua a quem se faz uma pergunta, na empregada que vem arranjar o quarto e fica à conversa, até no miúdo que nos vem pedir um euro e que depois fica no paleio de curiosidade infantil, quem são bôs? O cabo-verdiano é boa gente. Já agora, como outros ilhéus, os açorianos.

Passo para outra má experiência que tivemos, as dos transportes. Creio que da responsabilidade do governo, por não me parecer que haja em Cabo Verde condições para os TACV serem empresa privada. É a bagunça total. Duas horas à espera da bagagem, no fim do voo Lisboa-Praia. Com o plano de viagem cuidadosamente elaborado com a minha agência, devia passar o dia 20 e a manhã de 21 na Praia, chegar ao Mindelo a 21 por volta das 15:00, partir para Boavista com escala na Praia a 22 saindo do Mindelo por volta  das 11:00.

Tudo trocado, por informação apenas da agência de Lisboa, a Abreu (bom serviço), valendo-me ter o iPhone ligado. Todos os voos Mindelo-Praia foram cancelados, devendo nós ir à uma da manhã, perdendo a ligação para Boavista. À última hora, um novo voo às 7:00 (acordar às 5:00, porque o check in, só com um funcionário, exige duas horas). Partida da Praia para o Mindelo na véspera, confirmada, às 15:15. Assim, tempo para uma magnífica visão da ilha e visita ao campo de Chão Bom. Ao chegarmos ao aeroporto, pelas 13:00, pressionando o motorista, surpresa, quando esperávamos algum tempo de espera. Sem sermos avisados, o voo tinha sido antecipado (coisa que nunca vi - como avisam os passageiros?) duas horas e era urgente irmos fazer o check in. Afinal, só partiu às 16:00! E, para tudo isto, duas horas passadas na véspera na loja dos TACV, no Plateau com tanta coisa para se ver.

No entanto, apesar de tudo, Cabo Verde nha cretcheu!

Férias de namoro com Cabo Verde (II)

No voo da Praia para Lisboa, ontem, vínhamos numa das primeiras filas da turística e enquanto a cortina estava aberta vimos toda a cena na executiva de 15 lugares (diga-se que não é grande mais-valia, num A-321). Já toda a gente estava instalada e o avião em condições de partir, quando finalmente apareceram os passageiros retardatários, 17 (dois tiveram de ir em económica): a comitiva de Paulo Portas. Note-se bem: uma delegação de 17 pessoas para dois dias em Cabo Verde, em tempos de teleconferência.

Um único me pareceu ter mais de 40 anos. Os restantes eram betos, irritantemente betos. Meninos do Portas, desfaziam-se em graças para o chefe, sem humor nenhum (ouvi bem, porque esta gente fala alto, gosta de se exibir). Entre vários jornais, todos pediram o Diário Económico. Um, ainda o avião em terra, pediu logo um uisque.

Há tempos, Passos Coelho anunciou que toda a gente do governo viajaria em económica. Cheirou logo a populismo até desrazoável, porque entendo que o ministro e o seu chefe de gabinete devem ter boas condições para trabalhar, em recato e segurança. Mas os outros 13 boys, os meninos do Portas?

P. S. (4.9.2012) - leia-se, a propósito, no Público, "O fabuloso destino dos jovens assessores do Governo Passos". No meu tempo, rapazes na casa dos vintes com prática estudantil associativa, atividade partidária clandestina e aspeto físico ou de modos e trajar simbolicamente um pouco inconvencionais, eram candidatos a Caxias. Hoje, betinhos espertalhaços, jotinhas, presidentes de associação de estudantes, abanando os bons fatinhos em modos metro e cultivando o arzinho bonito, vão para assessores. Como o mundo rola e rebola...

Férias de namoro com Cabo Verde (I)

Cabo Verde, nha cretcheu!

Passamos férias em Cabo Verde, país lusófono que não conhecíamos. País de interseção para  estes dois nós, tão díspares em origem, tão próximos no que a origem traça de linha de rumo de encontro. Ilhéu atlântico e branco, mas ilhas são sempre igualmente ilhas, na formação do espírito. Angolana dos grandes espaços continentais, a respirar savana, mas que descobriu agora em ilhas tão bizarras a alma de toda a gente africana. Da morena, metade da sua gente, com outra metade que fez na vida com gentes do mundo, no encontro também com as minhas ilhas, que adora.


E que mais não seja, o irresistível abanar de corpo na dança que vem lá dos dentros, seja merengue ou kizomba lá na terra da morena, seja coladera ou funaná em Cabo Verde. E muito dançamos, ela a olhar desculpantemente para velhote que já não podia mais - mas que mesmo assim podia muito mais do que outros cá, porque ir atrás do abanar de morena é irresistível.

Não podemos deixar de escrever sobre isso, mas onde e como? Para quem tem dois blogues, um de notas políticas, sociais, culturais, e outro de gastronomia (onde também cabe o lazer), é um desafio: em qual escrever isto ou aquilo?

Esta primeira entrada é fácil, vai aparecer em ambos, com algum desconchavo, porque ainda venho dominado pelo gosto de férias de pensar ligeiro, solto, em notas esvoaçantes. Como gosto muito de conversar com M. de la Palisse (ou com o antigo e venerando cabeça de abóbora), começo por dizer que Cabo Verde são ilhas. Mas não é patetice de todo. É preciso entender as ilhas, senti-las. De certa forma, tenho algumas coisas mais em comum com um cabo-verdiano do que com um minhoto. Insularidade! O que fez o regresso às origens de Antero e o defrontou com a sua alma, até ao gesto fatal.

Os quatro pilares da Macaronésia fizeram-se de povoamento duro, nuns casos por europeus brancos, Açores e Madeira, mistura grande nas Canárias, escravos negros em Cabo Verde, desde tempos em que, segundo livro do séc. XVII que lá comprei, havia 30 brancos. Não foi colonização e exploração fácil de habitantes, foi desbravar terra inóspita. Foi gente que sentiu sempre a contradição entre tanto mar e tão pouca terra. E que, no caso dos açorianos, sentiu os mistérios e terrores da natureza vulcãnica e sísmica. Dessa gente herdei os genes e a cultura, a de “ilhéu tosco”.

Em Cabo Verde, a miscigenação foi forte, passou por lá marinhagem diversa europeia - principalmente no ciclo económico do carvão no Porto Grande - mestiço feito regado com grogue e, hoje, quase que se fica com a noção de haver uma tipologia física cabo-verdiana, embora diversa. Altos e magros, pele pigmentada mas frequentemente cabelos pouco encarapinhados, até olhos claros, anatomia da laringe com pouca guturalidade e falar doce (ao contrário da Guiné e Angola), corpos femininos de grande esbelteza, muitas vezes feições tão caucasianas que só a cor de pele trai. Da gente africana mais bonita que conheci.

Disse que são ilhas, também a lembrar-me de coisa minha de açoriano, a pluridimensionalidade, sobreposta, dos afetos. Primeiro Cabo Verde, mas depois a ilha materna. “Vieste de Portugal para Boavista para praia?” “Não, quisemos conhecer a tua terra, andamos primeiro em Santiago e em S. Vicente”. E aí, sorriso rasgado, ou Santiago, minha ilha, é o máximo, ou S. Vicente não é capital mas merecia, “minha ilha”. Só um ilhéu tosco - como alguém insiste em pensar que este tratamento é o mais terno que há… - compreende outro ilhéu ainda mais tosco.

A paisagem mostra as diferenças de antiguidade vulcânica na Macaronésia (não falo das Canárias, que não conheço). Não é nada difícil ver-se logo que o magnífico Porto Grande do Mindelo é uma enorme cratera vulcânica semi-submarina, à Santorini. Sobrevoando a costa leste de Santiago, vê-se os recortes quase circulares da costa, velhas crateras. O Fogo obviamente não engana, como vulcão stromboliano, como o da minha ilha açoriana do Pico. Boavista parece uma placa lisa, mas mostra bem os seus dois baixos estratovulcões, a emergir da lisura desértica. Mais difícil é perceber-se que a Serra Malagueta em Santiago ou as suas montanhas já muito carcomidas pela erosão, assim como as cristas montanhosas de S. Vicente, deixando magníficos recortes de rocha, imaginação de escultor, são restos de vulcões. O que não engana é o omnipresente basalto e as magníficas hematites.

Aliás, é o mesmo na Madeira. Fora algumas formações do litoral (Câmara de Lobos, Machico), qual é o amador de geologia que apostará em que os grandes picos, Ruivo e do Areeiro, são vulcânicos? Nada comparável com as crateras/caldeiras jovens e suas lagoas da paisagem romântica e suave das minhas ilhas açorianas.

Não posso continuar sem referir o que direi mais tarde e depois. Um país, “nôs téra”, é a sua gente. E, tanto quanto conheço razoavelmente África, Cabo Verde é um exemplo. A gente, muita, com quem falei, só podia andar de chanatas e vestir modestamente. Mas tinha um considerável nível de educação, de articulação de conversa, de observação e de reflexão crítica sobre a sua sociedade. E um evidente patriotismo e orgulho nacional, coisa que não fica mal a ninguém.

Desgostou-me só, mas compreendo, o esquecimento ou ignorância do passado, mesmo que recente. Até a memória de Amílcar Cabral me pareceu um pouco esfumada. A visita a Chão Bom é um episódio de passagem, quase uma curiosidade turística, numa volta pelo interior montanhoso de Santiago - muito bonita com a vegetação húmida a contrastar com a secura das zonas baixas. Embora visitantes como nós verguem por igual a cabeça, o campo evoca hoje muito mais a reabertura por Adriano Moreira - agarremos os bois pelos cornos! - para os presos dos anos 60, dos movimentos de libertação, do que a geração de três décadas antes, dos portugueses, em especial dos que lá morreram. Até, irmanados na morte lenta, os dois maiores adversários - fraternalmente adversários -na política operária portuguesa, Bento Gonçalves, comunista e Mário Castelhano, anarquista.

NOTA - “nha cretcheu”: minha amada, minha muito querida.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Sr. Monti, sabe o que é a democracia?

O Sr. Monti, primeiro ministro italiano, sucedeu ao inefável Berlusconi e beneficia disto; parecia que ninguém depois daquele palhaço podia ser pior. Mas pode, num aspeto, o da sua inserção no sistema democrático que, mesmo com muitas entorses, Berlusconi tinha de aceitar.

O Sr. Monti foi uma imposição dos poderes centrais europeus, à margem das normas democráticas, como o seu então homólogo grego. Esperava-se que fosse um serventuário do poder consensual que domina a Europa, na lógica dos velhos protetorados. 

O Sr. Monti deu provas dadas na sua carreira de aplicado funcionário do sistema, um dos muitos economistas brilhantemente formatados que começam por beber a escola de Chicago, passam pelos grandes bancos, a terminar como alto quadro do Goldman Sachs e vão até comissários europeus.

Se a UE fosse uma construção política democrática, esperar-se-ia o primeiro exemplo de respeito pela democracia e seus valores por parte dos comissários. O Sr. Monti não é um bom exemplo, comporta-se e fala como um tecnocrata, com uma cultura política enviesada pelos dogmas do neoliberalismo.

Ontem, o Sr. Monti disse que "as tensões acumuladas nos últimos anos na zona euro acarretam riscos de uma dissolução psicológica da Europa" - concordo - e que “é exactamente essa desconfiança [exigência de resgate e medidas de controlo para ajuda na dívida] que nos impediu de encontrar uma solução clara para esta crise. Temos de a superar e voltar a confiar uns nos outros.” Concordo.

Mas disse também uma coisa espantosa: "Se os governos se deixarem vincular e condicionar pelos Parlamentos, sem guardar espaço de negociação, então será mais provável a Europa desmoronar-se do que haver maior integração". Como é possível que um chefe de governo de um país democrático diminua de forma tão ostensiva a base representativa da democracia? Não parece um apelo à ditadura, mesmo que numa versão suave, inicial e provisória, de governo de “iluminados”? Ou a suspensão da democracia de que falava Manuela Ferreira Leite? Os tempos estão perigosos!

Claro que se percebeu logo que estava a apontar para a Alemanha, mas acabou por lhe oferecer uma boa oportunidade de brilhar. Hoje, vem o ministro dos Negócios Estrangeiros alemão dizer candidamente que “o controlo parlamentar das políticas europeias está para além de todas as discussões, precisamos de reforçar a legitimação democrática, e não de a enfraquecer”, (…) “As decisões dos Governos devem ter uma legitimidade democrática. A chanceler tem consciência de que na Alemanha os textos legislativos devem ser apoiados pelo Parlamento e que este deve participar na sua elaboração”. Por uma vez, concordo com o governo alemão.