sexta-feira, 6 de julho de 2012

Voltando a olhar para a universidade

Há muito tempo que não escrevo sobre o ensino superior (ou educação superior, como prefiro dizer). Faz-me falta, tenho saudades. Afinal, foi um campo de intervenção em que, modéstia à parte, creio que ganhei prestígio, fui seguido e respeitado, mostrei estudo e reflexão sobre a prática de muitos anos. Publiquei um livro que julgo ter tido algum impacto, recolhi num livro eletrónico e noutro muitas crónicas e comentários. Ao aceitar um contrato com uma universidade, achei que essa intervenção era geradora de conflito de interesses e suspendi-a.
Hoje, e adiante em tempos próximos, vou relembrar esses tempos, com uma ressalva: não escreverei sobre coisas concretas, tentarei olhar num plano de generalidade que não se misture com a minha atividade prática quotidiana e com os meus deveres contratuais, enquanto os tiver.
A minha escrita, interrompida há anos, desdobrava-se por um blogue, “Professorices” e por artigos no meu sítio. Começo hoje por duas entradas do blogue, que desejo relembrar porque mostram o que penso sobre a universidade, pública ou privada. Elas vêm transcritas (os “links” já não funcionam) num artigo, “Reforma universitária: da retórica às propostas práticas” que, provocadoramente, ao falar de “elite”, expõe o que então, e hoje, entendo por uma universidade de alto nível. É por tal universidade que luto a cada momento, onde julgo, pragmaticamente, que tenho possibilidades de maior sucesso - ou do sucesso possível, sejamos realistas.
Claro quer isto não tem nada a ver, diretamente, com público ou privado. Há entidades privadas que estão em melhores condições de cumprirem esses requisitos do que algumas universidades públicas, designadamente as pequenas universidades periféricas. O que define uma universidade de elite? Essencialmente, o que se segue:
  • Começo por uma coisa pomposa. Uma universidade de elite está sempre na fronteira do que a sociedade necessita como formações e educação. Hoje, é uma universidade com formações modernas, generalistas e de largo espectro, mais orientadas para a aquisição de competências, formadora de mentes e caracteres destacados, líderes sociais também impregnados de uma cultura de cidadania e de combate à exclusão.
  • Tanto professores como estudantes são impregnados de uma cultura de exigência e de alta qualidade, e que se rege por padrões estabelecidos em códigos de boas práticas.
  • Um código ético rigoroso: faltas deontológicas, fraude ou negligência científica, mentira, aldrabice nos exames, etc, são indesculpáveis por toda a comunidade e conduzem frequentemente à expulsão.
  • A cultura é acentuadamente "scholar": os professores não esgotam a sua função no ensino tradicional ou na orientação científica, são formadores e "mestres" (e, daí, os tutores).
  • Sem prejuízo de uma lógica empresarial de sustentabilidade económica, a universidade não é uma empresa com lógica de propriedade privada. É uma entidade de natureza fundacional ou comunitária, que responde perante a sociedade e não perante uma entidade proprietária.
  • A governação não está subordinada ao espírito corporativo, segue as normas de eficácia ditadas pelas teorias organizacionais e membros externos têm um papel essencial na definição de estratégias e politicas. A lógica nominatica domina a electiva, em função das competências, mas em compromisso eficaz com o debate interno e a participação na construção da opinião.
  • O ensino e a aprendizagem decorrem da criação científica, de alto nível. Não pode haver um professor que não seja também ou tenha sido um excelente investigador. A ciência é transmitida, no ensino, com o sentido de como se faz na prática, de como valorizar quase no momento as roturas científicas, mas também com o sentido crítico de como subalternizar muita ciência rotineira.
  • A actividade pedagógica e a científica estão intimamente articuladas, à escala do departamento, que é o principal nível de organização. O director de departamento, com audição dos colegas, tem grandes poderes. Por isto, é recrutado geralmente de fora da universidade, para não estar comprometido com as relações já estabelecidas.
  • Embora haja exceções bem sucedidas (“teaching universities”), não basta que os professores, a nível individual, investiguem em centros de excelência, fora da universidade. Deve haver um clima de ciência que só é possível com investigaçao de qualidade intra-muros.
  • O recrutamento é exigente em termos de qualidade, tanto de professores como de estudantes. Dirige-se a todo o mundo e é combatida a endogamia - e muito mais a nepótica. A progressão dos professores (repare-se que não falo de investigadores: não há separação, todos são professores-investigadores) é muito flexível e o mérito é recompensado. Quanto aos estudantes, a própria universidade reserva recursos significativos para bolsas a estudantes carenciados mas de alta qualidade.
  • O conteúdo funcional do cargo de professor integra todas as atividades de ensino, investigaçao e extensão, em tempo completo, não sendo admissível contratações "à hora", exceto em casos excecionais de colaboração de pessoas de grande mérito e com muita ocupação profissional (professores convidados).
  • A carga docente é muito reduzida. Por consequência, os rácios são muito baixos (1,8 em Harvard, 2,6 em Cambridge!). Entenda-se por rácio uma simples relação numérica, nunca um critério de recrutamento: os professores são recrutados casuisticamente, apenas em termos de qualidade ou de politica institucional (novas áreas científicas, desenvolvimento selectivo de grupos de investigação, etc.).
  • A relação numérica entre estudantes de pré e pós-graduação é de cerca de 1:1 (entre nós, nos melhores casos, é de 9:1). A formação dos doutorandos é exigente e completa, com ensino formal e acompanhamento estreito, não se limitando ao trabalho de tese.
  • Os percursos individuais dos estudantes são variados e flexíveis, correspondendo tanto quanto possível aos seus interesses culturais e científicos. Os estudantes de ciências têm que obter um certo número de créditos em humanidades e vice-versa.
  • A prática cultural e desportiva ocupa parte significativa da vida estudantil.
  • O estudante (excepto em cursos vincadamente profissionais) é habituado à ideia de que a sua formação é apenas uma base geral a abrir-lhe caminhos de empreendedorismo e de escolhas profissionais variadas.
  • A actividade de extensão, com grande prestígio social, é muito valorizada como factor de imagem da universidade como centro da vida cultural comunitária. Até chega a ser "snob" para a alta sociedade frequentar os cursos nocturnos de Harvard e os cursos de verão de Cambridge e Oxford, os concertos, os espectáculos de teatro ou as exposições de arte de alunos e professores.
  • Finalmente, e condição indispensável: com tudo isto, e em ciclo vicioso, a universidade tem que ter grande capacidade de "fund raising", com grande recurso ao mecenato, com destaque para os antigos alunos (vale imenso a noção de "alma mater", pouco significativa entre nós). Há antigos alunos de Harvard que, todos os anos, vão da Califórnia a Boston para a sessão solene da sua universidade.
Depois, no meu sítio “Reformar a educação superior”, passei isto para Portugal, para não me chamarem utópico, adiantando propostas concretas, aqui e aqui, de criação de uma hipotética Universidade de Lisboa Oriental (houve quem acreditasse que eu estava encarregado de a criar…). Vale a pena reler, meia dúzia de anos depois? Que o digam os leitores.

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