A presidente da Argentina, Cristina Kirchner, ao nacionalizar a filial da Repsol, deu um exemplo notável de coragem e de coerência política de esquerda (podem dizer que estou a qualificar abusivamente como esquerda, mas faz sentido se olharmos para a nossa situação política). Pouco tenho a dizer sobre isto a mais do que já tanto se disse. Mas uma coisa puxa outra.
Pensar na Argentina, desde a sua rotura com o embrulho de Menem e sucessores efémeros com o FMI, é pensar no exemplo de uma conceção pura e dura da política, sem tibiezas, sem prisões de moralidades. Maquiavel escreveu há cinco séculos, lembram-se?
Já aqui deixei expressa alguma surpresa pela frequência de uma discussão política entre nós, mesmo entre pessoas de boa cultura política, que tende a privilegiar um registo moral, de atribuição de culpas. De uma forma geral, vejo isto muito limitado temporalmente, quase que circunscrito aos tempos de Sócrates para cá e também muito determinado pelos aspetos morais, de caráter, de pessoa, dessa infeliz figura, muito menos sobre a sua ação política. Até acho que isto é fazer o jogo da direita, porque explora o inegável e justo sentimento geral de repulsa para com o homem contra a análise desta política de direita. É triste que um partido como o PS tenha oferecido tão fácil bombo de festa.
Quem me lê habitualmente sabe como execrei a imoralidade e a falta de caráter de Sócrates. Simplesmente, ao contrário de muitos milhares de pessoas - tristes pessoas, que hoje ouço a lamentarem-se com este governo - não transferi absurdamente o meu voto dele para Passos Coelho. O atual primeiro ministro parece mais sincero, mais honesto, mais verdadeiro (?), embora a sua matriz de jotinha, com a sua licenciatura tardia e talvez fácil, não se distinga muito de Sócrates. Mas o que vale isto, a não ser por nos termos livrado de uma dolorosa chaga moral, se a política concreta se está a revelar muito pior? Se o anterior era um oportunista e o atual é um fanático ideológico, o que é pior?
E como é que o PCP e o BE não assumem a sua responsabilidade por esse taticismo político?
O homem Sócrates, como pessoa, era execrável. Mas como pode muita gente ter imaginado que derrubá-lo e substitui-lo por uma coligação de direita pura e dura, ideologicamente fanática - mesmo que não imaginássemos que pudesse ir aos extremos de frei Gaspar Savonarola - fosse melhor do que coisas que me parece não terem sido tentadas (por exemplo pelo PR, a quem não convinha), a apresentação pelo PS de outro primeiro ministro? E o PEC 4 - é certo que pouco credível, depois de falharem os anteriores - não teria sido melhor do que o programa da troika?
Antes de avançar, digo desde logo que a minha crítica não significa a desculpabilização. Em alguns casos, como na Islândia, acho muito bem que a responsabilização vá até à incriminação penal. Mas temo que a procura das árvores nos retire a noção da floresta e do seu ecossistema. As causas e mecanismos da crise são demasiadamente complexos para podermos reduzir a discussão a coisas de política convencional. Se as quisermos fazer passar da teoria e da análise económico-política para o terreno prático da política, então que tiremos consequências sistemáticas e não fiquemos pela espuma superficial.
É claro que a vontade de culpabilização, num quadro tradicional de luta partidária e porventura com objetivos eleitorais próximos, arrisca-se sempre a ser redutora. Mesmo que entendamos a “culpabilização” no sentido da determinação objetiva das causalidades, querer-se focar só em pessoas é forçosamente redutor.
Até há tempos, os adeptos da culpabilização tinham uma base de discussão fácil, embora aceitando a argumentação do adversário: a crise era dos défices orçamentais. Logo, absolutamente decorrente de ações políticas de governantes identificáveis. Mas quem culpabilizar?
No ano de transição dos governos Durão Barroso e Sócrates, 2005, o défice foi de 6,1%, tendo-se depois reduzido a 2,7% em 2008, o ano de início da crise. Antes, nos governos de Cavaco, andou entre 5 e 6%. Os governos ditos despesistas de Guterres mantiveram o défice abaixo dos 3% do PEC. É claro que o défice explodiu em 2009 e 2010, mas por uma razão bem precisa: a injeção de dinheiros públicos no setor bancário, premiando o grande responsável pela crise. Eu alinho na culpabilização do governo, mas não por ter criado défice. Antes pelos motivos por que criou o défice.
Depois, os políticos tradicionais com esquemas simples tiveram de aceitar que o problema não era de défice orçamental mas sim de dívida. As coisas ficaram mais complicadas para a culpabilização, porque a economia não distingue dívidas. No entanto, para quem quer só olhar para os governos, lembre-se que a dívida pública é bastante inferior à dívida privada e nesta é preciso distinguir a dívida das empresas e das famílias da parte mais considerável da dívida do setor financeiro. Não é só uma questão quantitativa. É que aquelas dependem essencialmente da última, a bancária.
Com a transferência de dinheiro barato para a periferia, houve uma enorme pressão bancária para o endividamento das famílias (desde logo no imobiliário, embora não tenhamos tido uma bolha como em Espanha - mas, por exemplo, vejam nos Açores, desde há anos, as casas que os bancos depois não conseguem vender, entregues por devedores insolúveis). Culpar generalizadamente os portugueses (e os gregos, e amanhã os espanhóis) por “terem vivido acima das suas possibilidades” é injusto, irracional e muitas vezes hipócrita, quando dito - e tenho ouvido - por pessoas com um padrão de consumo exagerado.
Chegados à discussão da dívida, fica difícil aos esquemáticos circunscreverem-se ao quadro nacional, às responsabilidades dos nossos governantes (que aceito, mas não como coisa exclusiva ou maniqueista). Os nossos bancos obtiveram dinheiro barato porque os países ricos, no sistema disfuncional do euro moeda única, lhes fizeram quase engolir esse dinheiro barato. Como há tempos disse lapidarmente Helmut Schmidt, “o nosso excedente é o défice dos outros”.
Todavia, por absurdo, admitamos que os adeptos da nossa culpabilização têm razão. Isso justifica que o núcleo neoliberal da Europa rica, económica e ideologicamente hegemónico, nos imponha uma política de austeridade que até já o FMI critica? Uma política fundamentada em razões de “economia moral”, de necessidade de os pecadores expiarem pecados para que os outros, vendo as penas do inferno, não sejam tentados a pecar? Isto parece - e é - uma atitude quase religiosa. Como é religiosa a atitude de crença irracional no deus mercado do ministro Gaspar, levando Passos Coelho como menino de coro, ignorante e um pouco tonto.
O protestantismo fez avançar a cultura europeia, mas também deixou um lastro pesado, de puritanismo (hipócrita, principalmente se pensarmos nas raízes puritanas do capitalismo americano) e de rigidez mental que não se compara com a "flexibilidade" - sem princípios - do Vaticano.
Dou razão a um amigo meu que me critica quando falo na sargenta prussiana. Faço-o por conveniência fácil, assim como outro amigo comum costuma falar da campónia saxónica, mas de facto ela simboliza é a mistura de cultura extrema luterana (o pai era pastor) e do neo-estalinismo intelectualmente indigente da RDA em que se formou. Já pensaram que ela é a primeira governante “össie”? Podem vir mais.
Como isto já vai longo, deixo apenas uma referência telegráfica àquilo que ainda está mais fundo na pirâmide das “culpas” (entre aspas porque a palavra culpa não cabe num raciocínio científico) pela nossa situação: o euro. Com exceção do caso especial de paridade fixa no Benelux antes do euro, as moedas únicas ou paridades fixas (peso argentino e dólar, nos maus tempos de Benem) só funcionam em espaços de verdadeira unificação política, em particular nos estados federais: banco central emissor sob controlo do estado e “emprestador de última instância”, orçamento federal forte e redistributivo, emissão de dívida comum, possibilidade de monetarização da dívida, solidariedade entre estados, etc.
Querem responsabilizar pessoas individuais? Acho bem, mas não deixem de fora o primeiro ministro português que assinou o tratado de Maastricht ou aquele que fez entrar Portugal no euro, ou aquele que assinou o tratado de Lisboa, ou aquele que assinou recentemente o “tratado orçamental”.
Ao conduzir a discussão para um contexto largo e complexo, à escala europeia, corro um risco. Pareço alinhar-me com os eurófilos, mormente com uma fração da chamada esquerda radical, que, talvez por sentimento de impotência cá na terrinha, transferem para uma mítica luta europeia que não se vê (numa UE hoje hegemonizada pelo pensamento ordo-neo-liberal) a esperança de amanhãs que cantarão.
É claro que a atual UE é objetivamente (mas não subjetiva ou ideologicamente) contraditória. É óbvio, por exemplo, que uma união do sul - Portugal, Espanha, Itália, Grécia, mais os novos membros mediterrânicos - teria uma enorme força contra o centro dominante. Mas é no quadro europeu convencional que isto se fará ou no quadro de uma articulação política setorial forçada pelos povos?
Começa tudo por coisa à La Palisse: os nossos governantes ainda podemos mudar, a Sra Merkel não podemos. Então, a única possibilidade de intervirmos à escala europeia não é europeia, é nacional, é a de escolhermos governantes que se batam por mudar a situação política europeia.
Mas isto tem dois planos. O político é o que temos estado a discutir. Mas mais determinante para o esclarecimento dos nossos eleitores, quanto à Europa, é o ideológico. É neste plano que o neoliberalismo domina, aí deve ser combatido. Mas, como os eleitores votam europeias baseados nas simpatias políticas nacionais, é importante que os partidos de esquerda ofereçam alternativas de conjugação da mudança por luta conjugada nas duas frentes, europeia e nacional.
A fechar, afinal o que tem toda esta conversa a ver com a Argentina, a coisa com que comecei esta conversa? Tem a ver com isto que disse acima, “forçado pelos povos”. Para nós, a tarefa prioritária de convencer os nossos compatriotas de que o orgulho nacional ainda compensa, como se vê com a Argentina, que não estamos condenados a nenhuma fatalidade de imposições de outros.
Depois, que o confronto de clubite partidária no arco do bloco central, a transferência de votos dentro desse espaço, ou a crítica política diletante não nos levam a parte nenhuma, porque afinal todo o bloco central alinha no essencial.
Arraial, arraial, por Portugal!
NOTA - Afinal, ficou por dizer coisa importante, sobre a moral. Claro que a política tem uma fundamental dimensão moral. Mas tem uma dinâmica própria, em que a moral é um fator entre outros. Muito mais fortemente, a economia política é uma quase-ciência, "amoral". Como já tenho escrito, muita energia e boa vontade de gente querida minha anda perdida em coisas morais, como qualificar a legitimidade das parcelas da dívida. A rotura da Argentina com a sua prisão do FMI, fazendo a reestruturação radical da dívida em 2005, considerou moralmente as dívidas, legítimas e ilegítimas? Houve alguma auditoria de economia moral? E agora a nacionalização dos petróleos teve algum argumento moral? Política é guerra, não é conversa de sacristia. Vamos relembrar o nosso verão quente de 1975 (para elogiar e para criticar)?