domingo, 18 de março de 2012

Camaradas, pá!

Passou há dias o primeiro aniversário da grande manifestação do 12 de março, da “geração à rasca”. Provavelmente 100.000 pessoas. Foi celebrada este ano com uma ação de rua, defronte da loja do cidadão nos Restauradores, que juntou uma ou duas centenas de jovens, muitos com ar de estudantes ou desocupados, em casa dos pais, sem ainda nada saberem do que é desemprego ou emprego precário.
No entanto, “somos o povo, pá!”. Veja-se o vídeo (depois da publicidade que não consegui eliminar).




É claro que os 100.000 não podiam ser considerados à letra. Foi uma manifestação conjuntural que juntou tudo o que era anti-Sócrates, o que não era difícil. Depois, a acampada do Rossio foi pálida amostra. A manifestação do 15 de outubro nem chegou a um décimo. Agora isto. Dá para refletir, mas sem se cair na ridicularização injusta e historicamente errada destas movimentações.
Devemos considerá-las como parte, certamente ainda menor, do que é, politicamente, “a rua”. E esta vai ser cada vez mais determinante, muito mais cedo, nesta crise do capitalismo financeiro, do que se pensaria há uns anos, na via triunfal do liberalismo reforçado com a implosão do mundo soviético. No jogo político, a rua deixou de ser uma “infantilidade” ou aberração da democracia, reduzida para muita gente à sua vertente formal, institucional, hoje em descrédito. 
Por outro lado, em época de crise e num sistema democrático recente, como o nosso, em que a superestrutura institucional avançou mais depressa do que a dinâmica dos corpos intermédios, que não se decide com assinaturas no papel, estes acabam por só aparentarem força quando também saem para a rua, embora à sua maneira, como é o caso da CGTP.
Mas há rua e há rua, porque há gente na rua e gente na rua. A rua ocupada ordeiramente é obviamente um sinal importante do sentir do povo. Mas também pode ser, perversamente, uma válvula de escape do sistema, quando a pressão é controlada por um mecanismo muito mais potente: a hegemonia ideológica, de que falarei adiante, mais uma vez. Na Grécia - nós não somos gregos?!… - todas as semanas a Sintagma está cheia com uma manifestação. Que resultado? Claro que esta é uma pergunta perigosa, se não entendida dialeticamente. A ação de rua com a ação institucional não resulta em 1+1=2, dependem a cada momento uma da outra e fazem tudo o resto orbitar em volta de duas estrelas conexas em laço de forma de oito, coisa que não conhecemos no sistema solar.  
Se tudo fosse linear, milhões de eleitores amorfos mas “e pur” influenciáveis, e com apetência para serem esclarecidos, teriam na rua ordeira mais um fator de reflexão. No entanto, também há a rua grega dos prédios de escritórios incendiados, das agências bancárias destruídas. Mas nós não somos gregos!?… Será? O que estamos é temporalmente desfasados, um ano atrás dos gregos neste processo de miserabilização. A raiva dos gregos não será daqui a um ano a raiva dos portugueses?
Então, a esquerda tem de estar preparada para que a rua em chamas deixará de ser vista pelo eleitor comum como coisa positiva, a reforçar o seu desgosto impotente com o sistema político. Este sistema usará o perigo da rua para mais manipular e atemorizar o eleitor. Apesar disto, é quando a rua será revolucionária, porque o sistema estará na defensiva, mesmo que até podendo melhorar a sua posição no plano institucional, da democracia formal partidária.
Da rua é que virá a revolução, como sempre na história. O que será essa revolução ninguém sabe, exceto que certamente não será nada escrito já em livros ou desenhado a régua e esquadro. E que não será bem comportada e respeitadora dos “interesses legítimos” que, não sendo nada os da enorme maioria das pessoas, elas foram formatadas a pensar que são intocáveis para pessoas de boa educação. 
Na minha juventude política, estudantil, com muitos outros, aprendi a perceber racionalmente, também a intuir, quase que a cheirar, quando se podia avançar para uma ação ou quando ela seria condenada à derrota. Também a saber quando e se aproveitar uma ação surgida imprevistamente. Isto era coisa elementar de ensinamento dos clássicos, a perceção de uma situação revolucionária.
A rua e os chamados novos movimentos são hoje um desafio a este sentido da revolução. É bonita, está na moda, alguma atitude de infantilização em relação a eles por parte de gente experiente. O extremo oposto também é negativo, o de se olhar sobranceiramente para coisas politicamente pouco sustentadas, mas que pelo menos mal não fazem.
Mas está a revolução à porta, em tempo pessoal, diferente do histórico? Se sim, não é de concentrar na novidade histórica, nas novas movimentações, o essencial do esforço de luta? 
A meu ver, não. A história não caminha numa só linha, mas em linhas paralelas com velocidades diferentes. Como já aqui disse várias vezes que me preocupa muito, há um fator  muito importante que, travando muito a dinâmica de contradições na ação institucional (parlamentar, etc.), retira base de apoio subjetiva à movimentação revolucionária da rua. É a hegemonia ideológica
As pessoas estão dominadas por um “pensamento” hegemónico. As situações problemáticas são complexas, o eleitor fica desarmado se só confiar nos slogans partidários. Não tem bases técnicas para formar opinião. Ouve a televisão com o seu coro unanimista dos opinadores de serviço. Como são todos professores doutores, o homem comum submete-se inconscientemente ao argumento de autoridade. Também a duas outras coisas envenenadoras do espírito crítico: “sempre foi assim” e “está-se mesmo a ver”.
Com isto, foram 80% dos eleitores que apoiaram os acordos com a troika. Quantos serão da próxima vez? Por isto, volto e volto a dizer que penso que a prioridade (o que não quer de forma alguma dizer exclusividade) da ação política, a curto prazo, é a do terreno institucional, com criação de um novo partido a romper a cristalização do sistema partidário atual, em que a esquerda é objetivamente conivente com o sentimento geral de falta de alternativa.

Voltando à rua, a muito possível radicalização das suas movimentações coloca desafios à ação no plano institucional. Muitas pessoas precisarão de uma nova oferta partidária cuja pedagogia e seriedade, também com realismo, lhes permita escapar ao pânico de ficarem perdidos entre o “caos da rua” e a ineficácia do sistema político formal.
NOTA - Muitas vezes, os dirigentes de movimentos ainda pouco estruturados acabam por ser muito maus parteiros e por dar cabo da vitalidade da sua criança. Às vezes, até acabam por a abandonar, atraídos por ofertas sedutoras de quem, mais sabido, soube explorar algum desejo de notoriedade de até então desconhecidos. Outras vezes, é apenas questão de patetice, condizível com opiniões pessoais a que se tem pleno direito, por exemplo na esfera da pansexualidade (?) mas que não credibilizam muito a ação política. 
Raquel Freire, em nome do que é hoje o Movimento 12 de março, anunciou que vai ser criada uma Academia da Cidadania, “para explicar às pessoas o que é a democracia”. “O ativismo aprende-se, justificou a cineasta, explicando depois que a academia propõe-se dar formação específica a grupos populacionais tão distintos como crianças, mulheres ou trabalhadores precários. Pretende ainda produzir um manual para ensinar as pessoas a concorrerem às eleições autárquicas, através da criação de movimentos de cidadãos.” Ai, os intelectuais!

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