Vejo mais e mais que o acordo ortográfico de 1990, em vigor oficialmente, e o seu processo são um nó cada vez mais emaranhado. Uma das conclusões que tiro é de que, nesta confusão, cada um, sob risco de ser dito mal-escrevente da língua, pode escrever o que quiser.
Acresce a que julgo, no essencial, que as críticas anti-AO são conservadoras, emotivas, não objetivas. Isso irrita-me! E tende a puxar-me para o lado contrário. Depois, quando leio defensores da velha ortografia escreverem mal, em sintaxe e em harmonia fonética! Que autoridade têm?
Eu sou adepto feroz do critério fonético. Escrever fácil é um instrumento prático também para todos os que a aprendem de novo. Por mim, eliminaria, à italiana, o h inicial. Escreveria com uma única letra sons homófonos (embora haja diferenças de pronúncia local) como s e z (cosido e cozido – originalmente “co[d]zido), ss e ç (cassa e caça – “ca[t]ça”), ge e je (gesto e jeito – “[d]jeito), etc. Sei bem quais são as raízes nas diferenças de evolução do latim bárbaro, mas são tempos que já lá vão, que só têm pequenas diferenças locais na pronúncia. No entanto, como nada disto foi abordado no AO, não digo mais.
Passo para os acentos. Poucas línguas indo-européias têm grafias com tantos sinais diagráficos. E vem sempre o cágado e o cagado! Coitadas das crianças inglesas, a terem de aprender qual é a sílaba tónica de uma palavra, sem ajuda de acentos. Há exemplos frequentes, em português, em que a supressão do acento nas exdrúxulas (foi assim que aprendi a dizer) gere confusões graves? E resolveria a diferença entre o português “económico” e o brasileiro “econômico”. Simplesmente “economico”. Ou alguém pronunciará “economíco”?
A defesa dos acentos mostra uma preocupação excessiva com as homografias-heterofónicas e mais ainda com as homonímias. Mas o português não está cheio de homónimos, sem problemas? Alguém fica confuso com sentar num banco, ir levantar dinheiro ao banco, ser atendido no banco do hospital ou obter informações num banco de dados?
Também tenho em conta a ergonomia, principalmente no uso hoje banal e quase universal do teclado do computador ou de um dispositivo móvel. Por isto, não admira que os jovens tenham inventado uma ortografia “digital”, “k” em vez de “que”.
Parece-me ainda que a discussão já não tem sentido prático, quando muitos milhares de jovens já aprenderam a escrever com as normas do AO, quando muitos manuais escolares já estão publicados assim, quando muitos e muitos pais dificilmente poderão conservar-se na antiga grafia quando têm de mudar com os seus filhos, nos trabalhos escolares, usando o AO.
O argumento de Angola e Moçambique não terem ratificado não colhe. Durante muitos anos houve grafia dupla em Portugal versus Brasil, agora haverá em relação a Angola e Moçambique. Não duvido de quem ficará a perder.
Pelo contrário, o que me preocupa é que até se tenha acentuado a dualidade de grafia entre os dois principais falantes do português, de norma portuguesa e brasileira.
O que é gerador de maior confusão é a coexistência das duas ortografias, pré e pós-AO. O melhor exemplo é o dos jornais. A maioria adotou o AO, mas não, por exemplo, o Público. Num caso e noutro, vemos em todos os jornais notas elucidativas de que este ou outro autor adota a norma que não é a da redação do jornal. O mesmo se passa com a administração pública, vinculada ao AO, mas não com a generalidade das entidades privadas. Os seus membros têm frequentemente de ser escreventes “esquizofrénicos”, de uma forma no trabalho, de outra na vida pessoal.
Eu iria por uma reforma ainda mais radical, com base fonética. Como exemplo paradigmático, como já disse, eliminava o “h” inicial, como no italiano, a mais latina de todas as línguas. No entanto, tudo isto é muito avançado mesmo em relação ao criticado AO90. Assim, com algum sentido prático, vou enumerar o que será a regra ortográfica que vou passar a seguir, regra minha por que não vou preso e que não obriga a ninguém. Claro que será uma experiência transitória, exemplificativa e pedagógica. A ver se alguém diz que não me consegue perceber a escrita.
1. Os acentos.
a) aceito a diferenciação de “por” e “pôr” ou de “para” e “pára”, bem como o acento nas formas do pretérito que se confundem com o presente (“cantamos” e “cantámos”, “comemos” e “comêmos”). Mas não “fazemos” e “fizémos”, que têm grafias diferentes.
b) Sou mais radical nas exdrúxulas (como se chamavam no meu tempo). Na grande maioria dos casos, não se confundem com palavras graves; a acentuação causa inúmeras diferenças com o circunflexo brasileiro; e não consta que nós falantes de outras línguas sem acentos tenhamos dificuldades. Assim, passo a omitir (com economia de uma “teclagem”) todos os acentos, agudos ou circunflexos, nas exdrúxulas que não fiquem homógrafas com palavras graves (cá vem o cágado e o cagado).
Por exemplo, no texto acima, escreverei ortografico, lingua, fonetica, etc., mas manterei o acento em crítica ou contrário, para distinguir das formas verbais, graves.
Façam uma experiência. Escolham um texto ao acaso e contem quantos acentos eliminavam assim.
c) O mesmo na acentuação de ditongos. Escreverei heroi, mois, aneis, bateis, fieis, papeis, ceu, chapeus, ilheus, etc. Para quê o acento infantilizador?
Também não acentuarei para desfazer ditongos, que me parece escusado para a aprendizagem da leitura: heroina, diluido, moido, distribuido, etc., sempre sem acento agudo.
d) E serve para algum efeito prático o acento em, por exemplo, amável, fóssil, réptil, éden, açúcar, tórax, etc.?
e) Uso o acento grave, como agora, circunscrito às contrações com a preposição “a”.
f) Os acentos ~ e ^ também parecem redundantes. Não consigo distinguir diferenças entre os fonemas ã e â, por exemplo em mão e câmara. É verdade que há “pôr” e “põem”, incongruências (aqui está: porque não incongruencias, em que o n já anasala?) de família que devem perturbar os que argumentam sempre com “Egito” e “egípcio”. Mas não vou tocar nisto, não sou perito e só estou aqui a falar de coisas verdadeiramente práticas.
2. As consoantes mudas
Sou adepto incondicional da supressão das consoantes mudas, mesmo com a inevitável dualidade com a norma fonética brasileira. É principalmente o meu critério da grafia fonética e da ergonomia. O problema está em que, com a tendência portuguesa para comer sons, muita gente “de facto” diz “de fato” ou diz “pato orçamental”. É necessário estabelecer uma norma erudita.
3. O hífen
É neste domínio que tenho as maiores dificuldades com o AO. A ortografia anterior já era complicada, mas tinha aprendido bem. Agora, aprender coisas muitas vezes ilógicas e incongruentes, sem uniformização de critérios, é-me muito difícil.
A abolição do hífen nas formas derivadas de “haver de” faz sentido por comparação com “ter de”. Mas parece-me que a combinação de palavras já adquiriu tal significado como auxiliar de futuro de outros verbos, como palavra única, que continuarei a escrever com hífen, da mesma forma que a flexão com pronomes (“faz-se”).
A maior complicação é a das palavras compostas e locuções. A aglutinação do prefixo ou o uso do hífen podem ter muito sentido linguístico, mas são confusas. Por exemplo, aglutinam, dobrando a consoante se necessário, os prefixos ante-, anti-, co-, contra-, extra-, hiper-, auto-, mini-, des-, in-, e muitos mais. Mas levam hífen os compostos com os mesmos prefixos e uma palavra começada por h, ou quando a última vogal do prefixo e a primeira letra da raiz são a mesma (contra-almirante), apear de se escrever, antes do AO90, connosco, em que se dobra uma letra. E também com exceção, estipulada no AO90, da dobragem “oo” (coordenar).
Também o AO90 normaliza diferentemente a grafia de compostos com os prefixos pós-, pré- e pró-. Mas porque escrever pós-graduado e pospor, pré-natal e previsto, pró-cíclico e promover? É certo que é diferente a acentuação do prefixo, mas complica.
Vou simplificar, na minha ortografia. Salvo casos excepcionais, que agora não posso explicar, vou escrever sem hífen todos os compostos com prefixos consagrados.
Complicado é também o caso das locuções. Escreverei com hífen as de mais do que duas palavras, não diferenciando, por exemplo, “cor-de-rosa” e “cor-de-laranja”, como faz o AO90. Quanto às de duas palavras, para além das já aglutinadas, como paraquedas, tenderei a aglutinar todas, escrevendo, por exemplo, guardachuva.
4. Vírgula.
Numa listagem, o último “e” não é precedido de vírgula, ao contrário da norma anglo-saxónica. Mas muito vezes o elemento anterior já inclui um “e”, o que confunde. Vou seguir, como já muitas vezes faço, a norma inglesa, fazendo preceder sempre de vírgula o último elemento de uma lista, mesmo iniciado com“e”.
É claro que tudo isto é uma brincadeira, de quem não é obrigado a seguir uma regra. Inventei uma e quero testá-la. É este o meu único motivo, e por isto desejo vivamente comentários ao que irei escrevendo contra as normas.
É uma provocação, até uma brincadeira (mas a sério…).