Há dias, li uma crónica gastronómica de um prezado amigo meu que considerava os amantes da boa mesa como “epicuristas”. O tema – e o erro frequente – é muito importante para mim, que me intitulo sempre de epicurista, e julgo que me desculpará o pretenciosismo de uma breve e simples lição de filosofia.
É vulgar, como ocorreu com o meu amigo, confundir-se hedonismo e epicurismo. Por exemplo, um dos sítios justamente muito visitado de gastronomia chama-se Epicurious. De facto, é hedonismo, o culto de todos os prazeres sensuais. É certo que os epicuristas conheciam os hedonistas e não os desconsideraram, assim como os estóicos que vieram a seguir também não renegaram o epicurismo.
O epicurismo é um produto do helenismo, já na fase de cienticismo da filosofia grega, contra o idealismo de Platão e mesmo de Aristóteles, apesar de este já fazer a transição para uma “filosofia científica”. Epistemologicamente, o epicurismo assenta na ideia de que nada está para além dos nossos sentidos, de que não existe nenhuma realidade que não possa ser entendida com auxílio deles. É de certa forma um "naturalismo radical”, percursor do materialismo moderno.
A escola de Epicuro aliava o prazer – já veremos em que termos – com a racionalidade, o ateísmo, a virtude e o prazer ético e pessoal dos prazeres nobres, estando bem consigo e com o mundo; é a ataraxia.
Sobre o ateísmo, e não o “envergonhado” agnosticismo, diz tudo o paradoxo de Epicuro, sobre as três características divinas essenciais, a omnisciência, a omnipotência e a omnibenevolência. Tantos séculos depois, a maior inteligência da fé, Tomás de Aquino, não soube resolver este paradoxo:
Enquanto omnisciente e omnipotente, deus tem conhecimento de todo o mal e poder para acabar com ele. Mas não o faz. Então não é omnibenevolente.
Enquanto omnipotente e omnibenevolente, então tem poder para extinguir o mal e quer fazê-lo, pois é bom. Mas não o faz, pois não sabe o quanto mal existe e onde o mal está. Então ele não é omnisciente.
Enquanto omnisciente e omnibenevolente, então sabe de todo o mal que existe e quer mudá-lo. Mas não o faz, pois não é capaz. Então ele não é omnipotente.
Note-se que Epicuro praticamente não deixou nada escrito e o que sabemos é pelos seus discípulos. Os pilares fundamentais do epicurismo são:
– Libertar os homens do temor dos deuses, demonstrando que pela sua natureza feliz, não se ocupam das obras humanas.
– Libertar os homens do temor da morte, demonstrando que ela não é nada para o homem: "quando nós existimos, não existe a morte; quando a morte existe, não existimos nós"
– Demonstrar a acessibilidade do limite do prazer, isto é, o alcançar fácil do próprio prazer;
– Demonstrar a distância do limite do mal, isto é, a brevidade e a provisoriedade da dor.
Para ser feliz, o homem necessita de três coisas: liberdade, amizade e tempo para filosofar. Os gregos subvalorizavam o amor (exceto com os efebos...), que pode bem ser associado aqui à amizade, isto é, a toda a esfera da afetividade.
Talvez o fundamental, ao contrário dos hedonistas, seja a limitação (diria hoje controlo) do sentido do prazer. Não é um prazer imediato, com fruição dos sentidos. É um prazer superior, com muito de cético, acima de tudo a noção do dever cumprido. Mas dever não codificado, não perante Deus ou as leis, antes o dever perante a consciência. É um estado de prazer/paz/tranquilidade de consciência a que Epicuro chamava de ataraxia. Conjuga-se necessariamente com a busca do conhecimento do funcionamento do mundo.
A procura dos prazeres moderados é para atingir um estado de tranquilidade e de libertação do medo, com a ausência de sofrimento corporal pelo conhecimento do funcionamento do mundo e da limitação dos desejos. Já quando os desejos são exacerbados podem ser fonte de perturbações constantes, dificultando o encontro da felicidade que é manter a saúde do corpo e a serenidade do espírito (aponia).
Também é importante a atitude perante a morte. A morte é o nada, conceito muito difícil de aceitar pela maioria das pessoas e, afinal, a "resposta" de todas as religiões que prometem alguma coisa contra esse nada. Quantos ateus, perante a morte, se fazem crentes? Estou a lembrar-me agora, com o devido respeito, do meu velho camarada Paulo Varela Gomes. Segundo Epicuro, nós nunca nos encontramos com a nossa morte – a nossa existência nunca se dá ao mesmo tempo da existência dela. Logo, ocupemos as nossas mentes com a vida e desfrutemos dela. Tantos séculos depois, é a ciência, a neurobiologia, que nos diz o mesmo. E é o maior elogio da vida. Vivemos essa maravilha enquanto vivemos, não a queiramos prolongar para além do seu fim natural. É o tempo da vida da rosa.
Com tudo isto, este vosso amigo é epicurista mas não é nenhum Falstaff!