1. A PaF ganhou as eleições, mas perdeu 700000 votos, 23 deputados e, com isto, a maioria absoluta, ficando dependente de outros, ativa ou passivamente, para formar governo. Foi uma vitória de Pirro.
2. Como se justifica a vitória dos partidos do governo depois do ciclo legislativo mais duro de que se tem memória desde há décadas? Ou não será, quando nem sequer precisamos de estatísticas e basta, como vi ontem, o meu centro comercial já sem as empregadas que recolhem os tabuleiros e a maioria das lojas com metade dos empregados? Será que o povo português é passivo, temeroso da mudança, “mais vale os que já conhecemos”? Melhor é procurar fatores objetivos. Primeiro, a grande maioria dos que sofreram o trauma da emigração só dificilmente pode votar. Graças a diversos fatores, o último ano trouxe algum alívio da crise: ligeira recuperação económica, competitividade por desvalorização do euro, ação do BCE, baixa da taxa de juro, boas perspetivas, a curto prazo, de liquidez para o serviço da dívida e, já antes, proibição pelo Tribunal Constitucional das medidas mais gravosas.
Acrescem um discurso ambíguo mas simples da direita, atemorizando os eleitores com a ideia de que o PS podia pôr em risco o “esforço de saída da crise”, elogiado por todos e que possibilitou não ter havido segundo resgate; e o discurso do PS, embrulhado em números, com promessas de duvidosa exequibilidade.
3. Esta terceira nota é supérflua, não traz nada de novo em relação ao muito que se tem dito. Vai o PS ou não viabilizar o governo PSD-CDS? Ou entender-se-á com a esquerda para, falhando o governo de direita, ser indigitado em segundo passo e formar um governo maioritário com PCP e BE, em coligação ou por acordo parlamentar ou extraparlamentar? Apesar da especulação que a comunicação social ainda hoje faz, com encontros e desencontros, a resposta foi dada logo na noite eleitoral quando António Costa elencou quatro posições condicionantes do PS, das quais três suficientemente vagas para poderem ser aceites por todos e a quarta exclusiva da esquerda, da maneira como é expressa, por exemplo, por Cavaco: respeito pelos compromissos europeus.
Já antes, na RTP1, quando o PS ganhou algum ânimo por saber que a coligação não tinha maioria absoluta, também Santos Silva tinha aberto a porta, servindo-se enviesadamente da maioria absoluta de esquerda (no sentido inclusivo do PS): “o povo votou expressivamente contra a austeridade e é aceitável qualquer programa que vá nesse sentido”. Será que para Santos Silva alguma cosmética no programa de governo vai nesse sentido?
Os próximos quatro anos não são de recuperação económica segura, muito menos de crescimento e criação de emprego. Reestruturação da dívida e denúncia do Tratado orçamental, nem pensar. Para onde vamos e para onde vai o PS perdido neste seu labirinto? Ao contrário desta legislatura, em que foi oposição, é certo que envergonhada e votando frequentemente com o governo, o PS vai estar claramente comprometido com a direita. Mesmo que encapotadamente, vai integrar um bloco central. Posso estar muito enganado, mas prevejo o definhamento do PS, para a abstenção e partindo-se os dois extremos do seu eleitorado para o PSD e para o BE (se este estabilizar as condições de que agora beneficiou). É a pasokização de que costumo falar.
4. Lembre-se que, durante a campanha, o atual cenário não foi colocado pelo PS. Nunca se comprometeu a inviabilizar um governo da direita, embora afirmasse seguramente que não deixaria passar o orçamento para 2016 (o que agora desmente, atirando a decisão para essa altura). É uma falácia, porque a reprovação do orçamento só tem como consequência a apresentação de outro, enquanto que a rejeição por maioria absoluta (PS, BE, PCP, PEV) implica a queda do governo. Por isto, e pelo que se disse antes, o PS considera que o seu programa “de esquerda” não é liminarmente incompatível com a prática e programa eleitoral desta maioria de governo.
5. Mas teria o PS outra solução? Julgo utópico supor-se que o PS pudesse fazer uma coligação à sua esquerda. O seu eleitorado oscila entre zonas diferentes do pântano e, desde há décadas, é visceralmente anticomunista. É errado pensar-se que só o inverso é verdadeiro. Uma coligação de esquerda alienaria uma parte considerável dos 174000 votos que se transferiram agora da coligação para o PS (saldo, sem contar com a origem dos votos acrescidos no BE). Da mesma forma, muitos dirigentes da ala centrista ou de direita do PS, da port giratória, advogam abertamente um bloco central mais ou menos explícito. Por isto, é de duvidar que, não havendo disciplina de voto, todos os deputados do PS votassem contra o programa do governo, para assim viabilizarem, em fase seguinte, um governo de PS e esquerda.
6. Tudo o que é comunicação social, agora Cavaco, pressiona ao máximo o PS para apoiar um governo da direita. Falta pensar no que seria a pressão da UE se o PS agisse de outra forma. E o PS não quer certamente perder a imagem de bom aluno europeu.
7. A que se deve o resultado do BE, em comparação com o PCP? É efémero ou aponta para uma base sustentável?. A campanha do BE e a comunicabilidade simpática de Catarina Martins e seus camaradas deve ter valido muito, bem como a frescura da linguagem e da imagem. Em contrapartida, o PCP e Jerónimo estão cansados, repetitivos, não deixam a sua língua de pau. Não nego a sua determinação política e a sua firmeza mas, para além de camadas de trabalhadores correspondentes a velhos arquétipos, não se abrem para a conquista de novas camadas de trabalhadores com diferentes ambições sociais, para a nova realidade do mundo do trabalho, para o papel da juventude intelectual (com ou sem emprego) oriunda de extratos da classe média. E, para a maioria das pessoas, são os vestígios vivos, sem autocrítica (embora Cunhal a tenha feito, mas sem a devida profundidade), do sistema soviético.
8. Duas razões de sucesso do BE: estando eu convencido de que, mais do que a campanha, de espetáculo, valem os debates, creio que Catarina Martins ganhou grandes pontos, arrasando Portas e paralisando António Costa com a proposta de conversas para 5 de outubro, traçando como linhas vermelhas a taxa social única, a manutenção das pensões e a não flexibilização dos contratos de trabalho. Por outro lado, foi mais hábil eleitoralmente do que o PCP menorizando a questão da saída do euro, de que os portugueses têm medo, em relação à reestruturação da dívida. A ver vamos como evolui o BE, agora que Catarina Martins ganhou ascendente na guerrilha interna. Falta ao BE, essencialmente, a penetração no mundo do trabalho, a conquista de posições autárquicas e a experiência de trabalho comunitário, nesta época em que partidos e movimentos sociais têm de se entrosar.
9. Em todo o caso, a esquerda anticapitalista obtém 18,5% dos votos. É um resultado notável na Europa, logo a seguir ao Syriza (vamos ver a IU e o Podemos em Espanha).
10. Finalmente o Livre/TdA, que, desde a sua fundação, não se pode queixar de falta de atenção por parte da comunicação social. Creio que foi a principal vítima do apelo ao voto útil por parte do PS. Fazendo parte central do seu programa – ou assim considerado pela opinião pública, a convergência à esquerda e, portanto, uma maioria do PS, os seus simpatizantes não se perderam por esse caminho e acharam mais prático votar diretamente no PS. Coisas que acontecem a quem não tem uma identidade bem demarcada.