E concluo com o aspeto mais determinante desta discussão, o de maior interesse prático para os eleitores: seja em 2015, seja antecipadamente, o que mudará com o voto? O que mudou passando de Sócrates a Passos Coelho? Valerá a pena haver eleições ou não será melhor encontrar uma solução tecnocrática, um Monti que deve haver por aí? Alguém acredita numa verdadeira alternativa de governo de esquerda?
O que mudará com o voto? Há logo uma maneira muito simples, talvez radical, de responder: pior do que isto não pode haver, é matéria de salvação nacional retirar urgentemente do poder este bando de loucos que está a arruinar o povo português como nem o fascismo conseguiu, por muito que também lhe estivesse na sua “fé” política. Chegou-se a um ponto tal que essa urgência é tão premente que passa à frente de qualquer ponderação do que será o que venha a seguir.
De qualquer forma, admitindo que seja vencedor o PS e mesmo receando que possa governar encostado à direita, penso que sempre tem alguma vantagem: mesmo que obedeça à troika e ao pensamento europeu dominante, e oficialmente obedece, parece-me que, ao menos, não faz gala em ser muito mais troikiano do que a troika. Que, por afinidade partidária, tenderá a ir mais venerar Hollande que Merkel. Claro que tudo isto pode ser menor, mas do mal o menos.
O que mudou passando de Sócrates a Passos Coelho (ou de Teixeira dos Santos a Gaspar)? Que pensem nisto todos os tais eleitores, de entre o pântano ou centrão dos 80%, que transitaram do voto num partido para o voto no outro. É verdade que já ninguém podia aceitar Sócrates sem vergonha ou ofensa à honestidade de cada um, mas a política não é só emoção ou reação primária.
Muitos me dizem que se deixaram enganar, mas nunca mais. Gostaria de acreditar nisto, dito por quem se deixou enganar por Cavaco e lhe deu a maioria absoluta, por quem trocou Guterres ou Ferro Rodrigues por Durão fujão, por quem trocou Sócrates por Passos Coelho. Nunca mais se vão deixar enganar? Só quando se libertarem da influência desinformativa, ideológica, de comodismo de vida, de egoismo, de des-socialização, também de medo, que a sociedade hegemónica, à “big brother”, tem usado para os dominar.
Valerá a pena haver eleições ou não será melhor encontrar uma solução tecnocrática, um Monti que deve haver por aí? Assim começaram sempre as soluções autoritárias. Por detrás de cada “tecnocrata” está um político autoconvencido, arrogante, movendo-se no círculo fechado dos poderosos mundiais do neoliberalismo e com grandes raízes profissionais e de amizades na banca internacional, os homens do Goldman-Sachs. Gaspar, Borges? Ou então, qualquer provinciano senil (ou intelectualmente pouco honesto?), que só pode ser tido a sério num país de tão forte marca messianista sebastianina.
Os pergaminhos técnicos servem para fazer esquecer a falta de cultura e valores éticos democráticos. Pior, talvez não só a falta, mas a existência dos contrários. A Dra. Manuela Ferreira Leite proferiu aquela célebre afirmação de que Portugal talvez precisasse de seis meses de suspensão da democracia. Foi tida como blague. Têm a certeza? E têm a certeza de que o Presidente da República, por quem passaria obrigatoriamente esta solução de governo, garantiria, como jurou, a obediência à democracia e à Constituição de um governo “tecnocrático”?
Alguém acredita numa verdadeira alternativa de governo de esquerda? Esta é a grande questão. Também eu, no imediato político, não acredito. Mas antes é preciso entendermo-nos sobre o que é uma alternativa de governo de esquerda. Estamos num momento muito propício a discursos ambíguos. Começo por falar da esquerda apartidária, em que me situo. É coisa muito fluida e complexa, extremamente plural (e bem bom!) e que, por não obedecer a disciplinas e instrumentalismos partidários, preza muito a ética pessoal e a sua independência mental.
Para esta esquerda, o que é a esquerda? O que interessa mais é o que é para ela a esquerda organizada, partidária. Joga muito aqui um velho e louvável sentimento radicado na unidade antifascista, que partilho (embora, pessoalmente, no âmbito do movimento associativo em que tive ações políticas destacadas, tenha tido por vezes de dizer não, mesmo contra a unidade).
Esta atitude unitária, ainda louvavelmente prevalecente, usa um critério inegavelmente útil: é fácil definir a direita; portanto, tudo o resto é esquerda. Infelizmente, não é assim. Por exemplo, nas eleições marcelistas de 1969, sabe-se muito bem como as ilusões de aceitação pelo regime, mesmo como o mendigo a provar a caridade do senhor, não atraíram só a ala liberal, também causaram a criação das três CEUD. As CDE eram indiscutivelmente esquerda. E as CEUD eram esquerda ou não? Depois, por exemplo, os conflitos dentro dessa “esquerda” muito larga – com reflexos no MFA – sobre a luta antimonopolista e sobre a descolonização, depois do 25 de abril?
Afinal, parece-me inegável e a ter sempre presente que esse entendimento muito ambíguo sobre “a esquerda” teve sempre avanços e recuos, de natureza tática. Creio que estamos numa situação única, simultaneamente de avanço e recuo. Pode parecer isto estranho, mas já explico a ideia, obrigatoriamente circunscrita já não a uma luta estratégica, contra o fascismo, mas a um ciclo político curto, em duas fases.
Para o grosso da esquerda, consequente, o ciclo político que vivemos tem como eixo de luta a recusa do austeritarismo; a recusa da ideologia neoliberal; a defesa acima de tudo do emprego, do bem estar mínimo garantido dos portugueses. E, para tudo isto, o crescimento económico; a obrigação de assumirem responsabilidades os causadores do principal problema, a dívida privada e nomeadamente a banca; e, se necessário, a aceitação das últimas consequências, como a suspensão do serviço da dívida e mesmo a sua reestruturação, para não falar da eventualidade de saída do sistema monetário do euro. Tudo isto é, essencialmente, a denúncia do memorando com a troika, obviamente que com negociações subsequentes.
Muita gente de esquerda, e dois dos partidos desta área, pensam que isto é absolutamente necessário para solução da crise e que, mesmo com custos elevados, eles serão inferiores aos custos terríveis, sempre a crescer e a derrapar, da política de austeridade.
Então, a plataforma de uma desejável alternativa de governo deve exigir esta base comum? É óbvio que o PS não está minimamente aberto a sequer discuti-la. Até onde ele pode ir é a) à pretensão de renegociação, com todos os cuidados, dos prazos do resgate, dos juros, de novas condições para recapitalização da banca e das condições para compra de dívida pelo BCE; b) à exigência, mesmo que só com efeitos propagandísticos internos, de compromissos do memorando que foram acrescentados pelo fervor gaspariano, depois da assinatura pelo PS.
Perante esta situação, PCP e BE, sem esquecer a importância de posições a defender por movimentos não partidários e pelos sindicatos, têm uma árvore de bifurcações de opções. 1) Mantêm a exigência da denúncia do memorando, e não há plataforma eleitoral, mas: 1.1) o PS tem maioria sobre o conjunto PSD/CDS (o que, para já, vai contra as sondagens) e o bloco PCP/BE fica em posição confortável, destacando-se da política do PS. 1.2) o PS precisa dos votos do PCP/BE (e/ou, não vou esmiuçar isto agora) mas exige-lhes apoio quase incondicional e estes ficam numa posição muito delicada. 2) O PCP e o BE dão sustento antecipado a um governo do PS essencialmente com o programa deste e então não podem colaborar na governação, tendo sempre que afirmar a sua posição e justificando cada voto com o “entre o péssimo e o mau, seja este”, mas com total liberdade de esclarecimento dos eleitores.
Porque é que falei em duas fases do próximo ciclo? Por causa de 1.1 ou de outra hipótese ainda, a de o PS, com maioria relativa, fazer um grande bloco troikiano ou então só com o CDS/PP. A meu ver, um primeiro ciclo legislativo para o PS, completo ou incompleto, nestas condições, seria catastrófico, eleitoralmente e em termos de fracionamento interna. Era a “pasokização”.
As posições vencedoras dos congressos recentes do PCP e do BE parecem apontar para esta estratégia de desgaste do PS e, por parte do BE, de um mimetismo com a Syriza, o que está longe de ser “cientificamente” sustentado. Parece-me claro que a moção A da convenção do BE aposta nisto, contra o que me parece ser uma posição mais flexível taticamente, mais atenta à psicologia especial dos possíveis dissidentes do PS, que era a da moção B, perdedora. No entanto, findo o predomínio Louçã, e apesar de não perceber como vai funcional a nova direção dual do BE, mantenho alguma expetativa positiva em relação ao traquejo político, do meu tempo, de João Semedo.
A hipótese 1.2 é de cortar à faca e desafia qualquer prognóstico. É imprevisível, depende do calendário, da reação popular às exigências da troika e à degradação económica, do nível de asneira do PS. É seguir a cada momento. À primeira vista, será catastrófica para o PS, mas não excluo consequências indesejáveis, mesmo golpes antidemocráticos.
Na hipótese 2) não acredito, pelas idiossincrasias de cada um dos partidos. No entanto, seria a via mais segura para a “pasokização” do PS, para a emergência de alternativas intra-partidárias. Até agora não falei disto, que me parece essencial. Um dos nossos problemas mais velhos na esquerda é a ausência de qualquer coisa entre o PS e o conjunto PCP/BE.
Ficam ainda duas notas. Neste contexto, com tanta margem de imprevisibilidade, com uma dinâmica política que ultrapassa o sistema partidário, os movimentos podem ter um papel determinante. Alguns diluiram-se ou perderam dinâmica, até por terem sido coisas impreparadas a cavalgar a onda, outro remeteu-se a um trabalho muito circunscrito (a Iniciativa da Auditoria Cidadã da Dívida), muito dedicado mas teórico. Resta o de maior ambição de globalidade política e o de maior impacto público, o Congresso Democrático das Alternativas (CDA).
Em relação a tudo o que agora escrevi, parece-me ter o CDA um papel muito importante, como mediador: defende sem ambiguidade a denúncia do memorando; defende eleições antecipadas e declara-se a favor de uma alternativa eleitoral comum de esquerda; não hostiliza o PS oficial e mantém todas as portas abertas à discussão amigável e leal; procura relações com margens do PS. Pode ser que nada disto resulte, mas toda a muita gente que participou no Congresso ao menos fica de consciência política tranquila.
Também continuo a pensar que a esquerda portuguesa precisa de um novo partido, como tantas vezes discuti neste moleskine. Simplesmente, tentativas em que me empenhei, também as de outros, mostraram-me a inviabilidade, por razões que em boa parte lamento profundamente, de uma tal convergência de esforços. Embora admita uma boa dose minha de irrealismo, creio que só será possível um novo elemento de jogo partidário na esquerda por gemulação a partir do PS, desde que não feita por diletantes, mas sim por políticos a sério que sabem o que são as bases estruturais, financeiras e organizativas necessárias à criação de um novo partido.
E também o debate político e a coerência de posições que assemelhem esse novo partido a um Parti de Gauche francês e não à Esquerda Democrática grega, hoje no governo troikiano.
Faltou falar da rua. Não foi esquecimento. Disse logo de início que, por agora, ia falar só de eleições. A rua fica para depois.