A visão de um meu querido amigo brasileiro. Parece-me que os intervenientes brasileiros na discussão estão a ser um pouco condescendentes, "socio-simpáticos". Mas o testemunho do sessentão negro é um lado de toda esta história (e referindo-se aos acontecimentos iniciais) que merece atenção, mesmo que crítica.
No meio de tudo o que se tem escrito, volto a querer esclarecer a minha posição. Isto é coisa a analisar muito bem, sociologicamente. Do ponto de vista político, claro que é um fator de contradição dialética da crise social e política. Mostra claramente que há uma situação objetivamente favorável à revolução, o que não quer dizer, marxismo elementar, que seja subjetivamente favorável. Continuo a dizer que este tipo de acções de motim não é um elemento revolucionário, é só um aspeto da conjuntura em que se deve organizar a revolução, mas sem o lumpen. O lumpen, a selvajaria, as pilhagens dos bens simbólicos do consumismo, é canalhice, não é luta de classes, não é a revolução, por muito que mostre que o sistema, com esta canalhice, está a abrir as portas à verdadeira revolução, que será feita por outra gente.
Mesmo a outro nível, muito mais respeitável, se vê a mesma atitude de confusão. Os revolucionários com consciência, com elaboração ideológica sólida, parece estarem envergonhados por não terem a projeção mediática dos jovens protestativos, sinceros, generosos, mas frequentemente pouco organizados e pouco consequentes. A mesma coisa, bons fatores objetivos, fracos fatores subjetivos. Leia-se Gramsci. Anulam-se esses meus coevos, dizem que só os jovens é que são o futuro, que nós já acabamos.
Não é verdade. A revolução precisará de todos, da maturidade e experiência dos mais velhos, da generosidade e combatividade dos mais novos. Os da minha geração que dizem que temos de nos apagar à sombra dos acampados do Rossio são derrotistas ou hipócritas a dizerem coisas "bonitas" que não sentem. Hipocrisia de S. Boaventura afinal demagogia insultuosa para os tais jovens que, no fundo, despreza olimpicamente.
Para ser brutal, acuso claramente: quem entre nós elogia babadamente estes saqueadores londrinos é gente que respeito como bem intencionada, com quem tenho dialogado, mas que, felizmente mais jovens do que eu, tiveram pouca experiência, felizmente também do que é ter de se pensar a sério no que é ser-se revolucionário consequente, em tempos que não permitiam "flestirias" e a luta não se fazia em escritos na net. Hoje é fácil ser-se todo prafrentex, mas era bom pensar-se um pouco nos prejuízos que esta atitude de esquerda diletante causa à verdadeira esquerda.
A latere - Este texto veio-me a propósito de uma conversa do meu amigo Eduardo Costa, brasileiro. Fiquei a pensar em como ele lerá esta resposta. Ambos com funda formação marxista, temos de reconhecer o relativismo. Eu estou a pensar à europeia. Mas se estivesse no lugar dele, de quem andou de "canhota" na mão, na guerrilha, de quem sabe o que a favela lumpen talvez seja o fermento da revolução brasileira, de quem sabe o que não sabemos cá, o que são os sem-terra, de quem sabe o que matou o Che, a falta de apoio dos pobres mesmo pobres, não proletários e sem consciência revolucionária, admito que tinha de abrir a mente. E Lula nunca deve ter lido uma página de Marx! Eduardo, estamos a precisar de grande conversa com um chopinho, charque e aipim. Ou uns petiscos açorianos no meu ninho da águia.
E ainda mais à margem, Eduardo, não imaginas o que é o bombardeamento que aqui temos de inteletuais brasileiros bem pensantes e bem educados que se horrorizam com a sua ultrapassagem pelos fraldiqueiros, que gozam com um Lula analfabruto, que não leram o Viva o Povo Brasileiro, o maior romance da língua portuguesa do último século.
E neste tempo de crise e mediocridade europeia, eu acho que era bem melhor eu ser membro do 27º estado brasileiro, Portugal. Assim se cumpria "Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal: ainda vai tornar-se um imenso Portugal!". Grande Chico!