quinta-feira, 10 de março de 2011

Protesto lúcido ou zanga cega?

Quem me conhece ou me tem lido certamente sabe que sinto como minhas as queixas da "geração à rasca" e que, portanto, compreendo e apoio, no essencial, a manifestação de 12 de Março. Uma ação pontual, como esta, é sempre útil, como contributo para uma luta mais ampla. No entanto, em política, não basta estar-se a favor ou contra, é preciso que a ação seja consequente e eficaz. Daí a análise que se segue.


 As pessoas estão zangadas, e com toda a razão. Tem de se reconhecer esta legitimidade sem se invocar limitações elaboradas, como “é uma atitude irracional, não tem como fundamento a compreensão da crise” ou “não têm o direito de protestar se não apresentam alternativa”. Qualquer destas coisas é de inteira verdade em relação às forças políticas convencionais e seus dirigentes, mesmo os seus militantes, também a quem promove e organiza ações políticas, mas claro que não relativamente ao Zé Povinho, a quem lhe basta - ou melhor, nunca bastou em termos de resultado prático - o valente manguito. 
E que “en la calle” é coisa muito importante como força de rotura de equilíbrios precários no sistema político estabelecido, já o escrevi aqui uma vez e outra, embora com as reservas que vêm do sentido da oportunidade política e das condições mínimas necessárias para o sucesso, no momento ou à distância. Também me parece claro que não estou a pensar em barricadas revolucionárias à comuna de Paris ou ao vendaval europeu de 1848, mas sim em sinais fortes para fazer pensar ao “sistema” e seus atores que devem ter presente o risco de passagem brusca e incontrolável para o caos, a violência, a anarquia, porque o povo já não quer e os dirigentes já não podem (velho renano!). 
Dito isto, posso estar enganado - gostaria de estar - mas não alinho no apoio acrítico à manifestação do 12 de Março. Pior, às manifestações, porque não me parece que haja só uma. É fácil beijocar o ego dos jovens neopolíticos (nem todos o serão, mas a história mostra que muitos virão a ser e daqui a uns tantos anos estarão no parlamento, esquecida a rua). É fácil esconder a demagogia e o paternalismo hipócrita de tal afago, “com os olhos doces” (até, pasme-se, em discurso de posse do presidente da República). Mas eu não vou por aí! “Há, nos olhos meus, ironias e cansaços”.
Vamos por partes, numerem-se.
1. Política web 2.0
Um milhão na rua? Pode ser figura propagandística, mas é tolice, politicamente, dizer tal coisa. Para já, parece que não mais do que 50.000 pessoas, utentes do Facebook, manifestaram acordo. Como sou casmurramente contra ter uma conta Facebook, não sei muito bem o que isto quer dizer, mas parece que é só coisa muito fácil, clicar num botão de "concordo" ou coisa do mesmo tipo. É muito mais fácil do que sair de facto à rua, e fica bem apoiar virtualmente, sem esforço. Veja-se aliás o caso de Viseu, em que a mobilização foi de umas dezenas de jovens.
Então o que nos separa da capacidade de mobilização pela net, no Egito? Em primeiro lugar, a “revolução pela net” egípcia foi preparada desde há pelo menos três anos, como hoje se lê em entrevistas dadas pelos jovens dirigentes que agora apareceram. As redes sociais tinham já um grande componente de agitação política, ao contrário do Facebook português, que serve para tudo mas onde raramente vi - quando por lá andava - discussões políticas. Não é agora que se faz uma rede política sobre uma rede de coisas gerais e de conversa muitas vezes fiada.
Qualquer pessoa com traquejo de atividade política percebeu que o movimento egípcio estava muito bem organizado: piquetes, controlo e encaminhamento nos acessos, distribuição de água, montagem de tendas, etc.; e que a articulação com os militares foi decisiva, a partir de certa altura. Em Portugal, no âmbito desta movimentação, o que se viu até agora foi uma arruaça de umas dezenas de jovens, como disse acima, com comportamento incivil, em Viseu, coisa que só beneficiou Sócrates. Não há garantias de que tanto a ineficácia dessa mobilização como o comportamento incivilizado não se repitam em próximas manifestações, com descrédito para as boas intenções, que reconheço. Tiro no pé! E não se esqueça que no Cairo a rua só venceu depois de mais de 300 mortos. Já alguém escreveu no Facebook português que está disposto a morrer pela revolução?
Depois, a net pode ser um bom instrumento mas não generaliza situações muito diferentes. Portugal é uma democracia, pelo menos no sentido formal e convencional do termo. O sistema partidário ainda é, para a maioria das pessoas, o sustentáculo da democracia, mesmo que merecedor de muitas e muitas críticas, desabafos, anedotas, manguitos, ao contrário do Magrebe em que os regimes eram na prática de partido único, suporte da corrupção. 
Finalmente, e talvez decisivamente diferente, não há qualquer comparação em relação à situação social e económica entre os nossos jovens à rasca (no caso presente, particularmente os licenciados, entenda-se), mas filhos de pais que ainda os sustentam e lhes dão carro, futebol e discoteca, de qualquer forma privilegiados em relação a todos os muitos mais jovens desempregados com o 9º ou 12º ano, fora as quase analfabetas operárias têxteis do Norte, no desemprego; não há comparação, dizia, com a situação verdadeiramente proletária dos jovens da Praça da Libertação.
Não se esqueça, por exemplo, que a grande agitação popular de rua, em Paris há poucos anos, foi um fogacho, quando tinha por detrás as tais condições favorecidas de comunicação e mobilização, não tanto a net, mas igualmente eficaz o boca-a-boca dos bairros de emigrantes da “banlieue”. Mais elucidativo o caso grego, com agitação que até já vem de antes da crise, mas que ainda não conduziu a nenhuma alteração da política austeritária do camarada helénico de José Sócrates. E nem é preciso ir bem atrás na nossa história, sobre o significado real da aventura empolgante mas inglória da Marinha Grande de 1934, que até foi, mal ou bem, apodada de “anarqueirada”. 
2. “Geração” à rasca? O que é isto de geração?
Outro aspeto que me deixa confuso, com alguma dificuldade de análise, é o caráter vincadamente geracional deste protesto. Primeiro, a solidariedade intergeracional é coisa essencial do estado social que nos caracteriza, apesar de em risco: os mais velhos têm a suas reformas garantidas pelos descontos laborais dos mais novos, os mais novos têm a sua educação garantida pelos impostos dos mais velhos. 
Segundo, parece sobrevalorizar, na crise política e social que cheira a fim de ciclo histórico, uma camada muito limitada da população, os jovens à procura do primeiro emprego ou com emprego precário. E os desempregados na casa dos cinquentas, que dificilmente voltarão a conseguir emprego? E os velhos, a viverem tão frequentemente em condições desumanas de abandono, miséria, tristeza absoluta de vida? E os agricultores destruídos pela política agrícola comunitária? E as vítimas da deslocalização de empresas que já não podem viver mais da mão de obra barata? E os imigrantes, que também são nossos irmãos?
Terceiro, invocar-se direitos ou especificidades geracionais pode ter preço. Eu tenho quem esteja sempre a fazer-me de grilo falante, “tenta compreendê-los, estás a ser saudosista e até um pouco arrogante”. Eu vou sempre por esses conselhos, mas se os jovens começam a querer destacar-se como tal, estou no direito, como alguém que lida muito com jovens, de apontar, erradamente, repito, outras “características geracionais”: incultura (em termos clássicos), egoismo, falta de gosto e de sentido estético, até, frequentemente, a mais elementar falta de maneiras e de gentileza (ainda hoje um aluno me fechou a porta na cara, depois de quase me ter atropelado). Insisto que só estou a apontar, por absurdo e de forma snob, os riscos de uma atitude geracional, que é pau de dois bicos.
Quarto, em política deve-se sempre perguntar “a quem serve o quê”. A quem interessa confrontar gerações? Claro que aos que sempre dividem para reinar, dividir naturais e imigrantes (e a filha Le Pen à cabeça nas sondagens!), dividir trabalhadores dos setores público e privado, e mais.
3. Confusão ideológica
Escolhi propositadamente o termo, ideológica, por saber que me vão perguntar “o que é isto? Coisa de esquerda e direita, diferença bolorenta?”. Esta é a atitude típica de quem, velho, adulto ou jovem, está formatado pelo sistema, pelos media, pela opinião hegemónica, pela escola, por todos os instrumentos de alienação, para não perceber que é improdutiva a simples acumulação desorganizada de valores e objetivos, mesmo quando de mérito, para perceber, ao invés, que a capacidade de intervenção e transformadora exige alguma sistematização. Desculpe-se-me a vulgaridade desta afirmação, mas é importante para a clarificação do que se está a passar de revolta, zanga, protesto, com exemplificação na chamada à rua no dia 12.
Comecemos pela convocatória do trio do “Manifesto da geração à rasca”. Mesmo descontando as  reservas em relação ao risco de “flop” e ao vício de geracionalidade, e também descontando exageros desmentidos pelos factos - “60% dos jovens licenciados estão a trabalhar em lojas ou em call centers”, como escreve erradamente uma participante - o manifesto é, no essencial, uma denúncia que qualquer pessoa socialmente empenhada subscreve, um protesto justo contra a desqualificação do capital humano, contra a precaridade, o desemprego, a exploração. 
No entanto, se as razões são válidas, em termos absolutos, já não o são em termos relativos, quando focados principalmente nos licenciados ou diplomados em geral. É bem sabido que, quanto mais elevado o nível de habilitações, menor é o nível de precaridade. Comparado com um desempregado da mesma idade mas com menor escolaridade, o diplomado entra mais rapidamente no mercado de trabalho, passa em média por menor tempo de desemprego e tem maior probabilidade de reencontrar trabalho a nível mais qualificado.
Também, repito, não há no protesto uma única frase de diagnóstico, de situação deste problema na crise geral do sistema político e económico. Nem sequer alguma coisa de frescura de linguagem em relação ao discurso tradicional de partidos e sindicatos. Para geração da net, queria-se mais. Maio de 68, apesar da sua inconsequência, foi muito mais imaginativo. Este convencionalismo de agora, associado à estreiteza social do protesto, faz recear que, se porventura vierem melhores tempos, muitos dos contestatários de agora, conjunturalmente, se adaptarão facilmente ao sistema, mesmo que na sua margem eticamente mais confortável - Danny le Rouge... - até serem então objeto de contestação em novo ciclo de protesto geracional.
Talvez por esta falta de novidade - novidade não se pode limitar à utilização do Facebook ou do Twitter - é que não evitam, se até talvez nem lhes desagrade, encobertamente, a colagem de partidos e juventudes partidárias, ao que consta (admito que não posso confirmar e que possa estar errado). 
Reconheça-se, todavia, que há um aspeto novo neste protesto, como escreve um dos seus ativistas (ao que suponho), Pedro Loureiro: “há um tronco comum de razões (…) mas depois cada um tem as suas razões próprias para se manifestar. É uma manifestação costumizada”. 
De facto, no inquérito promovido pelo Público, aparece uma grande lista de motivos, desde o desejo de reconversão dos partidos até à exaltação patriótica, desde a afirmação da cidadania à solidariedade com os desempregados mais velhos (muito bem!), desde a defesa de um novo paradigma do bem comum até à defesa da iniciativa privada independente do Estado. E até demagogia inaceitável em jovens “puros”, como opor a nova geração em risco de degradação da sua futura segurança social à geração anterior beneficiada com reformas de 6000 euros de pessoas de 50 anos (apesar dos escândalos, e sem os desculpar, afinal quantos, na atual geração de pensionistas?). 
Isto tem um risco. Afinal, quanto a colagens, nada mais fácil quando um movimento como este é tão difuso (mesmo que reconhecendo-se que esta difusibilidade tem aspetos positivos). Outros estão já a tentar cavalgar a onda. Um exemplo é a secção portuguesa do Zeitgeist, que já anunciou o dia 12 como um dos seus dias Z. É movimento quase ignoto, mas a ter como exemplo de muita coisa anarquizante, niilista que anda por este mundo fora, ao estilo de seitas, em tempos novamente milenaristas de perplexidade, angústia coletiva e falta de perspetivas. 
Como é regra da segunda geração destes movimentos ou seitas, tem um discurso moderno, em defesa de uma economia sem dinheiro e baseada nos recursos (faz-me lembrar Pol Pot, desculpem o exagero…), filmes que andam no YouTube com longas preleção eclética de pseudo-erudição psicológica e económica, mais o velho maltusianismo da escassez dos recursos, mas tudo ao serviço de ideais consensuais, combate à fome, à guerra, à injustiça. Na prática, um guru com um fantasista projeto Vénus, a que não faltam naves espaciais, veículos de levitação magnética e, claro, uma planificação estrita e totalmente centralizada (por quem?) com base científica e tecnológica. Orwell não inventou melhor!
Do Zeitgeist não se desmarcou o grupo do Manifesto, mas, acertadamente porque senão seria escandaloso, foi obrigado a desmarcar-se do “demitam todos os políticos”. É gente que não dá a cara e cujo posicionamento se desconhece. A sua petição é, essencialmente, a reprodução de um texto confuso que anda pela net já desde há algum tempo e que, de tão desconchavado, não percebo se é de autoria de gente muito hábil a passar por falso-tonto ou se de autor mentalmente pobre.
Com efeito, é uma mistura de coisas consensuais, de reclamações sobre factos inventados ou insignificantes, de protestos demagógicos. Coisas consensuais como a proibição da utilização privada de meios do Estado - por exemplo, automóveis -, acabar com organismos públicos e empresas municipais inúteis, reforma do sistema de administração autárquica, acabar com pareceres jurídicos que estejam ao alcance da administração, ressarcimento do pagamento do Estado ao BPN e ao BPP, etc. 
Também coisas duvidosas ou insignificantes, como acabar com as “mordomias” (?) dos ex-presidentes da República, com o pagamento de viagens às ilhas dos seus deputados, com o financiamento público da RTP (porquê só esta, entre todas as empresas públicas?) e até verificar e auditar os parquímetros. Esta faz-me lembrar uma célebre carta reinvindicativa de soldados a seguir ao 25 de Abril que, depois de uma lista importante, terminava com a reclamação de uso de sapatos em vez de botas.
Finalmente, não podia deixar de ser, a demagogia, que tanta gente bem intencionada ecoa, da redução do número de deputados, velha pretensão do bloco central, que assim veria diminuída a representação da oposição.
Mas ainda mais finalmente, a grande reclamação: “um milhão de pessoas na Avenida da Liberdade pela demissão de toda a classe política”. Isto é fascismo puro e duro, embora encapotado porque sem a designação aberta de um chefe que nos vem salvar de toda a classe política. Isto não é dito por qualquer padre Malagrida senil. Isto anda pela net, em milhares de mensagens. Isto é-me reenviado por pessoas honestas, como eram honestos muitos milhares de analfabetos políticos que seguiram Salazar. Se isto é a nossa versão de “revolução Facebook”, fico com medo da net como instrumento político. Não há hoje arma mais perigosa do que o botão “Send”.

Nota, em P. S. - A questão do desemprego de licenciados tem levantado outra, a da desadequação da oferta de educação superior, "com cursos a formar para o desemprego".  É uma visão obsoleta, de um utilitarismo educativo que já foi arrumado pela volatilidade atual do conhecimento e pela constante mudança no perfil do trabalho superior, em que mais importante são as competências transversais. Nos EUA e no Reino Unido, com a sua tradição newmaniana de educação liberal, é menor a percentagem de empregados que possuem um curso diretamente ligado ao seu emprego (com exceção óbvia de advogados, médicos, engenheiros, etc.) do que de matemáticos a trabalhar num banco, historiadores num jornal, licenciados em línguas a trabalhar em editoras, etc.. Até se conta sempre a anedota, real, de que a maior concentração mundial de falantes de grego clássico é a City de Londres. Já discuti isto aprofundadamente e voltarei ao tema, em próxima entrada.

P. S. (2), 12.3.2011. No Público: "O protesto da Geração à Rasca, que se diz apartidário, vai afinal contar com a presença de deputados e militantes de partidos. Membros da JSD, da JCP e do BE vão marcar presença". Não é bom indício, não promete a novidade neste protesto.

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