sábado, 31 de agosto de 2013

Lixo na net

Já muitas vezes aqui escrevi que tenho uma relação de amor-ódio com a net. Muito manifesta quando o poder de imposição do botão “send” obscurece toda a capacidade de análise. Uma pessoa que me dizem ser saudavelmente contestatário, eventualmente de esquerda, não deve fazer mais nada e envia-me diariamente dezenas de mensagens, muitas a meu ver agudas e sensatas, outras inconcebíveis de má qualidade, por vezes difamação e baixeza. Em regra, com forte dose de populismo, coisa que hoje substitui a luta política de nível e que passa à frente do mínimo de sentido crítico e de rigor intelectual.

Há dias, recebi dele uma mensagem com base no estafado documento de Cavaco a pedir à Pide acesso à consulta de documentos Nato reservados. Simplesmente, a mensagem transformava isto em prova de Cavaco ter sido colaborador (informador?) da Pide: “Após uma investigação aos arquivos da ex-PIDE depositados na Torre do Tombo em Lisboa, eis a cópia do original do Formulário Pessoal Pormenorizado do senhor Cavaco Silva, no qual, em 1967, o mesmo declarou a sua intenção em integrar a ex-PIDE da ditadura salazarista.” Qualquer meu leitor sabe que não tenho qualquer simpatia política por Cavaco. Nem sequer pessoal, quando todos os dias nos cruzávamos no Instituto Gulbenkian. Mas isto que recebi é abjecto e desqualifica moralmente quem difunde coisas destas.

É preciso deixar claro que um excremento destes não é de gente de esquerda. Propus a este meu correspondente traçar o caminho da mensagem em sentido oposto, com desmontagem da calúnia, até o autor ver que nem sempre a podridão compensa. Não o fez, o que me permite escrever aqui isto.

Ainda uma nota. Nessa mensagem, diz-se que “em 1964 o Silva ainda não era um PIDE seria só em 1967”. A referência a 1964 tem a ver com a legenda, feita pelo autor anónimo (mas por que responsabilizo legitimamente o meu correspondente) de uma fotografia de Cavaco como alferes em Moçambique, dizendo “rapaz de armas do exército português". Note-se que o termo "rapaz", neste contexto pejorativo, é retintamente colonialista (fascismo, colonialismo, populismo neofascismo, andam hoje de braço dado). Eu fui firme opositor da guerra colonial mas não insulto assim as centenas de milhar de jovens a quem o fascismo prejudicou tanto, enviando-os para a guerra. E quem escreveu este nojo de texto se calhar até, com a mentalidade fascistoide que ele revela, é que é apologista tardio da guerra colonial.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Será que ainda hoje sou um comunista com problemas? (II)

RESUMO: de como o autor, num texto forçosamente longo, descreve o que foi ser comunista nos anos 60, prepara a transição para a explicação da sua primeira rotura partidária, com a revolução de Praga e, mais tarde, o regresso à actividade partidária após o 25 de Abril. Também o que parece serem motivos compreensíveis para que as discordâncias com o PCP não derivem para uma atitude anticomunista.

* * * * *

Queremos dar lógíca a artigos, mormente quando encadeados, mas eles emaranham-se com outros e só rendeira de bilros consegue fazer sair dali alguma coisa que se veja. Já há tempos que comecei a escrever sobre a esquerda e as suas propostas para a crise, logo a possibilidade ou não de uma mítica unidade que parece ser desejada por tanta boa alma da esquerda pura donzela.

Falar do PS não foi difícil, porque, a meu ver, não pode determinar um governo de esquerda em rotura com a servidão a que a crise nos sujeitou. Então, que será esse governo de esquerda, propriamente dita? Difícil é ir só mais para a esquerda, falar do PCP e do BE. As posições económicas destes partidos não são radicalmente incompatíveis, a diferença é política. E também a sua viabilidade de governação não depende só das suas propostas de economia política, estando muito ligada à percepção estritamente política que o eleitorado deles tem. 

Muita desta percepção, mesmo por parte de quem não viveu velhos tempos e principalmente em relação ao PCP, vem de preconceitos. Outras vezes, de factos reais mas interpretados fora do contexto de uma cultura partidária (mal) peculiar. Muitas vezes, também, de erros com grave repercussão na imagem pública do partido. Também, frequentemente, de um grande defensismo sobranceiro que desculpabilizava o partido em relação à necessidade de esclarecer as pessoas, mesmo bem intencionadas, em relação a coisas que se remetiam para o lixo do “anticomunismo primário”. Era verdade, mas quem não limpa a nódoa de excremento que lhe atiram aparece aos outros como sujo.

Creio que vale a pena discutir hoje o que deve ser um partido comunista nesta volta para o século XXI. Não julgo que seja matéria exclusiva dos seus militantes, principalmente quando quem entra nesse debate fraterno, embora como independente, é muito crítico do partido mas não lhe é hostil.

No plano político, não posso falar do PCP sem alguma reflexão pessoal. Assim, interrompi a cadeia de posts “Os puros e os espúrios” para o último “Será que ainda hoje sou um comunista com problemas?”, que hoje continua, até retomar aquela. 

Começo por dizer que ainda hoje, mais de trinta anos depois de ter deixado de ser militante do PCP, tenho dificuldade em falar dele com objectividade. Para o bem e para o mal, a minha vida política, com tudo o que ela me significa de missão, cumprimento de um trajecto de vida, são indissociáveis do que foi o meu único partido e de que saí com discrição, sem alaridos mediáticos a servirem os adversários. Como há tempos me dizia o meu amigo MC, grande escritor, fica-se com a relação e a memória terna que temos da primeira namorada, mesmo que depois, com o tempo, venhamos a ver que ela era feia e bastante estuporada. Mas gostámos dela! Assim, nunca depois fui anticomunista, sem prejuízo de frontal e declarada discórdia com muita coisa do PCP. Senão, se não discordasse, não teria saído.

Isto está a sair muito personalizado, admito, mas é difícil ser de outra forma. Justifica-se então um escrito que não é análise, que é mais testemunho ou catarse? Creio que sim, porque muito do que tenho lido de ex-comunistas, sendo isso de apenas literatura de confissão pessoal, não tem a honestidade crítica que julgo que me vou esforçar a ter neste texto. Todavia, e como a mais importante das limitações deste escrito, admito que se duvide da sua validade, quando quem o faz desconhece por completo, em vivência, o que foi a actividade do PCP como partido de operários e de trabalhadores agrícolas, mesmo quando nele militou, como estudante universitário.

E seria possível fazer análise rigorosa? Coisas à Pacheco Pereira e outros, por muito documentadas que sejam, são vistas de fora, por quem não consegue minimamente sentir o enorme componente afectivo do que foi a militância comunista. Mas, sendo assim, um testemunho, uma impressão, em nome de quem posso falar? Em tempo, lugar e modo, do que sei: década de 60, Lisboa e particularmente a universidade, perspectiva e condicionalismos de um jovem da pequena-média burguesia de serviços educado na província (ilhas). 

Mesmo assim, isto remete para coisa mais difusa do que a política partidária, mais especificamente o movimento associativo estudantil e a intervenção cultural, por exemplo a cineclubística. Do partido (dizer partido ou PCP era indiferente) só em âmbito muito mais limitado, quase nebuloso. Entre 1962, em que a crise académica me acordou, e 1964, em que comecei a ter responsabilidades associativas e depois militância no PCP, creio que não li mais do que meia dúzia de Avantes e certamente que não o Rumo à Vitória. Quanto a conhecimento de outros comunistas e das suas memórias posteriores, só a meia dúzia que conheci na minha organização clandestina e, depois do 25 de Abril, os bastantes mais de quem suspeitava e que vi, como eu, aparecerem à claridade.

Desvio para assunto colateral mas importante, a guerra colonial. Só havia uma escolha para comunistas, discutida com o partido: desertar ou ir para a guerra mas com a intenção de fazer o máximo de trabalho político junto de soldados ou, como meu caso, marinheiros fuzileiros. Também, claro, junto dos oficiais do quadro. Continuo a achar que foi um factor importantíssimo na génese do MFA. A quadrícula “antiterrorista” implicava a estadia longa em quase isolamento de um capitão ou primeiro-tenente comandante de companhia, normalmente já em segunda comissão, em convívio estreito com três alferes milicianos mais um médico, muitos com traquejo associativo estudantil e alguma formação política. Mas não vou falar disto em termos de militância no PCP. A minha experiência, creio que generalizável, é de que esta acção era individual, sem possibilidade de contacto com o partido.

Como nos tornávamos comunistas?

Os percursos eram certamente muito diferentes. Peço novamente desculpas mas vou personalizar. Adolescíamos aos 13 e pré-adultávamos aos 17, a ir para a universidade. Neste período revoltávamo-nos, deixávamos de ir à igreja, líamos o Drama de Jean Barrois, depois Sartre, ouvíamos Juliette Greco, no meu liceu fazíamos um clube Antero de Quental (“pour cause”), provocávamos Ilídio Sardoeira – que pedagogo! – a fazer de nós gente, alinhávamos nas iniciativas de outro jovem um bocado mais velho, amigo inesquecível, Ernesto Melo Antunes. 

E tudo mudou com a crise académica de 1962. Também antes, para quem ouvia alguma coisa em casa, mesmo que muito limitada e numa perspectiva de oposição democrática tradicional, a campanha de Delgado, o Santa Maria e a Índia (“mas não contas isto fora de casa”). Com sorte de não ouvir, o que era frequente nessa época, opiniões paternas reaccionárias e salazaristas, as opiniões em família podiam parecer-nos recuadas mas eram valorizadas. A política também é afecto. Ou, se calhar, é principalmente afecto, mais ética e missão na vida, respondendo-se perante quem quer que seja, um deus, a nossa consciência que até se vai connosco, os outros, ou mesmo a nossa memória vaidosa.

Porque aderíamos ao PCP? Antes da resposta, é preciso ter em conta que só falo, com razão, do PCP. Os esquerdistas, começando com a FAP de Francisco Martins Rodrigues, são nessa altura um pequeno grupo e acabam por ser relativamente ultrapassados, já no passar para os 70s, pelo MRPP, num processo que nunca percebi bem (e há quem perceba bem a origem e trajecto do MRPP?). O PS, então Acção Socialista Portuguesa, era apenas um grupo de amigos, de estudantes – valha-lhes que prestigiados academicamente – na órbita, até familiar, de Mário Soares e limitados quase que só a Medicina, com um pouco em Letras e Direito. Não tinham programa, nem ideias que se vissem, eram apenas anticomunistas muito sectários.

Volto à pergunta. Aderíamos principalmente porque queríamos lutar, e o orgulho de querermos lutar, contra todos os riscos, ninguém nos tira até à morte. E aderíamos por três factores, com peso relativo conforme cada caso. Primeiro, a revolta contra a injustiça social. Creio que pesava nisto a educação católica prévia, se influenciada por alguma perspectiva de acção social cristã, como eu tive. Em segundo lugar, o sentido da eficácia (talvez com algum radicalismo juvenil), vendo a gratuidade e acomodamento burguês da oposição tradicional, do reviralho, bem como do que se vislumbrava já dos grupos juvenis socialistas. Em terceiro lugar, talvez com menor peso, a elaboração ideológica. Isto merece um pouco mais de reflexão.

Ainda há dias me dizia alguém que a nossa geração universitária era politicamente inculta, que se ficava pela Marta Harnecker, activista chilena e discípula de Althusser. Talvez não seja bem assim e desconfio de que quem agora me diz isto nem a Marta leu nessa altura (até nem ela escrevia então). 

Muitos dos meus camaradas também começavam por ler Georges Politzer (“Princípios Elementares da Filosofia”) ou o “Processo Histórico”, de Zamora. É verdade que livros com algum esquematismo, mas que não enjeito como introdução ao pensamento marxiano. De Marx, ao menos o Manifesto era bem lido. Em todo o caso, talvez mais do que leram, dos clássicos, muitos dos detractores da formação ideológica da minha geração de comunistas. Quantos só leram o livrinho vermelho de Mao?

É necessário contextualizar. Primeiro, era bem difícil obter os livros. Dos jovens estudantes, só alguns tinham amigos respeitáveis que os apresentassem na Barata ou ao Brito, ou que, como a mim, lhes trouxessem livros de Paris. Depois, para quem tinha como bases de leitura e instrumento de reflexão os livros de filosofia do liceu, mesmo os textos mais básicos de Marx não eram pera doce. Bem me lembro de quantas vezes precisei de reler e reler cada página do Capital, em tempos em que nem sequer havia a wikipedia para nos explicar cada termo de economia política. 

Mesmo assim, não éramos poucos os que lá iam fazendo e lendo a sua pequena biblioteca básica dos clássicos, como se pode ver ainda hoje cá em casa, em lugar de carinho de memórias (as bem conhecidas “Oeuvres Choisies” das “Éditions du Progrès”, de Marx-Engels e de Lenine, mais uns avulsos (como o indispensável, tanto relido, "A Sagrada Família"), assim como uma edição em português do Capital (Delfos, de 1973, ainda antes do 25 de Abril!) e que está toda sublinhada e anotada. Não o digo para me gabar, mas para que se veja que muita gente da minha geração político-partidária não era assim tão acarneirada e primária. E quanto ao Manifesto, não seria só uma minoria de militantes intelectuais a lê-lo. Pergunto-me se tinham este nível de formação a maioria dos anarco-diletantes ontem e hoje muito mais anticomunistas ou os maoístas hoje recauchutados à direita ou pelo menos a hábitos de boa burguesia.

Abro parênteses para mais alguma coisa sobre a literatura marxista-leninista (termo de que não gosto, por achar que a junção de Lenine diminui Marx e até o desvirtua; além de que, pessoalmente, sou hoje marxiano e nada leniniano). Também cá tenho Engels, mas não o aprecio. O Anti-Duhring é indigesto e a Dialéctica da Natureza um disparate. Ao elaborar a sua noção de materialismo dialéctico, ou de materialismo histórico, Marx nunca caiu nesse erro de o “objectivizar”, no mundo físico. A dialéctica é inerente e limita-se ao pensamento humano e à sua decorrente acção social e histórica. Também cá tenho três volumes de Lenine, todos lidos na juventude mas hoje a amarelecer. Considero Lenine um grande teórico da acção prática política, mas completamente datado. Quanto ao Materialismo e Empiriocriticismo, mais uma pecha dos revolucionários que têm de mostrar que também são filósofos. Que seca! 

Atraía-nos a coerência do PCP, a sua aura de resistência, a coragem dos seus quadros face à tortura – mas também nos angustiava não sabermos nós se também resistiríamos, mau grado os ensinamentos do “Se fores preso, camarada”. Víamos determinação, boa elaboração mental e viabilidade prática (hoje tenho dúvidas) no programa do VI Congresso (1965), na proposta de Revolução Democrática e Nacional, explicados no Rumo à Vitória. Líamos uma análise sólida do papel dos monopólios e da propriedade latifundiária na exploração do nosso país e na ligação com um estado de essência fascista (não me venham com a forma) que sustentava essa economia. Sabíamos dependerem fortemente do PCP as acções políticas eficazes, que nos mobilizavam, como as CDEs ou o Congresso de Aveiro.

No plano externo, víamos que era o único partido com posição firme de condenação do colonialismo e de apoio aos movimentos de libertação. Era o partido que apoiava “aventuras” (no bom sentido) simbólicas da nossa juventude, como a revolução cubana (na sua genuinidade) e a resistência vietnamita. 

Tudo isto com muitos erros? Certamente, mas nada de comparável com outros que tinham também erros e nada destas coisas positivas. Muito menos com a “pureza” dos que criticavam e não se comprometiam. Porque comprometer-se podia ser perigoso, acreditem.

Estávamos cegos?

Encontro hoje amigos e conhecidos próximos desses tempos que cultivam uma atitude anticomunista evidente. A sua pergunta habitual, como que a dizer que eles viam, é “mas vocês não viam?”. O que é que não víamos que eles então viam? Em muitos casos, esta sua atitude actual e essa sobranceria não é honesta, mormente por parte de muitos que, sendo hoje assim, cometeram na época muito mais flagrantes erros, como se babarem a ler o livrinho vermelho, ou a criticarem o partido em consequência de terem recusado por razões menos dignas a proposta de nele lutarem.

É verdade que havia muito a criticar, embora as possibilidades de informação e de construção de opinião isenta não fossem fáceis. Começa por se estar em plena guerra fria, com guerra de propaganda e de desinformação feroz. Depois, algumas coisas passadas, como as sublevações de Berlim e de Budapeste, apanharam-me com 9 e 12 anos e passaram de raspão pela casa dos meus pais, até pessoas interessadas pelo mundo. Mais importante, a denúncia do estalinismo já tinha sido feita pelo próprio PCUS no início da década de que estamos a falar e não havia nenhuma razão para pensarmos que o PCP não estava a alinhar com a linha khruschoviana de correcção dos crimes do estalinismo. Por exemplo, na década de 60, não havia qualquer culto de personalidade de Cunhal (nessa altura nem conhecia um retrato seu), que só aflora depois do 25 de Abril como hábito sabujo de arrivistas de última hora que o PCP, na época do "assim se vê a força do PC", não soube analisar e controlar.

Se havia razão para desconfiarmos, no quadro do consequente conflito sino-soviético, até era para nos interrogarmos sobre o inverso, sobre o que de monstruoso se passava com o maoísmo, logo com a mortandade anterior da Grande Marcha. Também, mais tarde, com o movimento dos guardas vermelhos e a Revolução Cultural, a decapitar a elite da direcção do comunismo chinês, como tinha feito Estaline. Que diziam “os poetas maoistas de agora (de então)”?

Vi eu bem, mais tarde, depois do 25 de Abril, in loco, que a vida na URSS era cinzenta e tristonha. Que dominava a burocracia, o formalismo, uma norma social arrasadora da riqueza da individualidade inserida no bem comum. Mas como podíamos sabê-lo antes, em época de guerra propagandística feroz, com contactos fechados de parte a parte? Desconfiámos alguns pela surpresa que foi o golpe de palácio de Brejnev e do seu grupo. Que significava afastar Khruschov, o símbolo de uma certa transparência?

Estou a dizer com isto que se discutia muito, obviamente que apenas no âmbito restrito da nossa célula. “De cima”, só o que vinha no Avante e no Militante, mais algumas orientações genéricas do “controleiro”. Também pelas condições da clandestinidade, não podia haver um controlo rigoroso do partido sobre o que se discutia na base, a desmentir o que se diz sobre a disciplina férrea que reinava no partido. Havia todo o lugar para a abertura de espírito, embora condicionada, positivamente, por uma grande identidade de ideias, aceite colectivamente. Assim, quanto conversei, por exemplo, sobre Maio de 1968 ou sobre o eurocomunismo, sem ter de pedir autorização, era o que faltava. 

Ao mesmo tempo, evidentemente, o centro de toda a discussão política marxista, a revolução de Praga, acontecimento decisivo na minha vida política e de bem mais um grande grupo de camaradas. Tão importante que aqui me fico, em passagem para o seu significado para outra fase de análise da vida no PCP, não sem dizer, ainda aqui, que o processo checoslovaco revolucionou – até hoje? – toda a minha maneira de ver a revolução socialista e a construção de uma sociedade que eu já imaginava e desejava, a reflectir o profundo sentido humanístico de Marx, de que via agora ser o movimento comunista oficial uma caricatura. Lembram-se do lema de Marx, também o meu? "Humani nihil a me alienum puto" (Sou homem e nada do que é humano me é estranho).

(continua)

NOTA - No período que estou a relembrar, e mesmo depois, até ao 25 de Abril, houve amigos meus que, individualmente, sem organização, um pouco à anarco-diletante, como disse, tiveram actividade política.  Mesmo quando me dão razão, então ou agora, para os incluir no anticomunismo que critico, quero deixar bem claro que os distingo dos outros que falam para se ouvirem falar e instalarem-se no sistema. Esses são amigos que prezo e admiro, que correram riscos, que até foram presos. Para mim, esse seu anticomunismo é honesto, respeito-o, discutimo-lo com duas cervejas, até porque nem tenho alguma dama a defender com voto de serviço donzel.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Feira das vaidades

Há quem, muito legitimamente, se entusiasme com os êxitos do mundo científico português, numa época em que pouca coisa positiva nos pode envaidecer em contraste com a vergonha da “triste, apagada e vilm tristeza” a que nos estão a remeter. Infelizmente, não é bem assim.

Hoje, no i, vem mais uma notícia de descoberta científica portuguesa. Pode ser verdade, pode não ser. Isto porque, ao contrário da política, dos negócios ou do jornalismo, a ciência tem uma credibilidade ímpar que lhe vem, em grande parte, do facto de só ser deontológico divulgar resultados após a sua publicação em revistas consagradas, com escrutínio dos artigos por cientistas independentes.

Não é o que se passa com esse caso (e muitos outros, todos os dias). Divulgar grandes descobertas por via de conferências de imprensa, comunicados e declarações à imprensa é cada vez mais frequente (alimenta a pressão pública para o financiamento e a construção de boas carreiras) mas não é deontológico e, muitas vezes, nem é verdadeiro como informação. 

No caso presente, nem é difundida por investigadores mas pelo gabinete de divulgação do centro de investigação – que certamente desvia parte do precioso financiamento da própria investigação. Até já se passou à fase profissional da propaganda da investigação e contratam-se "empresas de comunicação". Ainda recentemente tive conhecimento de um contrato desses, com uma famosa agência de "comunicação" especialista em promoção da imagem de políticos e em campanhas eleitorais.

Pode-se chegar mesmo ao ponto, como já li, de anunciar com parangonas não os resultados mas sim a intenção de desenvolver um projecto de investigação ainda nem iniciado. Ou elaborações sobre aplicações práticas que são banalidades ocas ou que só existem na fantasia (só?) de quem as diz. Enormes potencialidades de aplicação ao bem-estar humano, à saúde, de coisas de que ainda nem se faz ideia de para que servem? Em investigação, o melhor é dizer que servem para avançar o conhecimento. É tudo e é muito bom.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Será que ainda hoje sou um comunista com problemas? (I)

A minha mulher é 13 anos mais nova do que eu. Quando eu andava na universidade e militava no movimento associativo e, clandestinamente, no PCP, tinha ela inocentes 7 aninhos. Mesmo quando fui viver em Angola, por opção de lá fazer a guerra colonial, e a podia ter encontrado por grandes relações de amizades de família (lembro a tua grata memória, Valério), não dava para termos antecipado o que temos hoje de imensa vida comum, a menos que eu fosse pedófilo.

Isto também tem reflexos nas nossas conversas sobre política, muito empáticas mas sempre com grande respeito mútuo, até porque sabendo que as divergências não se opõem à identidade dos valores e ideais básicos. Ontem, dizia-me a morena que estava certa de que, com outra evolução das coisas, se não tivesse havido a rotura brusca na sua vida que foi a descolonização, se tivesse vindo estudar normalmente para Lisboa em 1974, teria acompanhado na militância associativa e provavelmente no PCP um seu primo muito amigo e “heroi de família”, um dos últimos presos da traição de Nuno Álvares Pereira (e que eu, como presidente de medicina, fortemente apoiei – as voltas que o mundo dá), como exemplo da luta pela sociedade que ela deseja, embora com uma certa dose, que me faz enorme ternura, de Madre Teresa de Calcutá.

Aos 17 anos, a sua mudança de vida, a perda das raízes de angolana, a brutal desinformação a que toda a sua geração de angolanos repatriados foi sujeita, mentiras desmesuradas de que só agora tenho conhecimento e que obviamente ela e os seus jovens amigos não podiam desmascarar, a falta de informação política de que a minha geração beneficiou cá, só é de admirar é que não a tenham atirado, e a amigos dela que hoje conheço, para o maior reaccionarismo. É que, não sei bem porquê, a malta do liceu dela que hoje conheço, é gente boa, jogavam à bola na rua com o preto, não devem ser identificados com os racistas que também havia. Estes racistas que até foram, muito caracteristicamente, o chamado batalhão Ferreira da Costa, de labregos que para lá foram depois do “para Angola, em força”.

Com tudo isto, as objecções que ela hoje me põe à política e prática do PCP são-me muito úteis. Claro que não ponho sequer remotamente a hipótese de voltar ao PCP, mas gosto de ter uma atitude isenta e justa. Estou a reencontrar-me, também talvez com alguns excessos que foram pesados na minha saída, cerca de 1980. Há coisas que ela me questiona e a que respondo honestamente como tendo eu também sido conivente, em época de sectarismo “justificado” (claro que não) pelas traições alheias que punham em causa a revolução. Mantenho que houve muitos erros no verão quente, que não houve uma reflexão profunda, antes, sobre a perspectiva enorme de revisão do socialismo aberta pela revolução de Praga, que houve enquistamento na concepção do marxismo, que a rigidez do centralismo democrático à maneira de Lenine conduziu a erros graves de funcionalismo e hierarquismo da vida partidária e do livre e enriquecedor debate interno.

Mas também, outras vezes, principalmente quando, 40 anos depois, uma pessoa interessada e honesta me interroga sobre acontecimentos concretos, admitindo logo que possa ter sido influenciada por propaganda, é uma desafio enorme à nossa capacidade de revisão da história pessoal, integrada na história colectiva.

O problema é quando a conclusão é “mas isto não se conhece. Porque é que tu e os teus amigos íntegros e coerentes não contam toda essa história, mostrando que tanto apresentam o positivo como o negativo e cada leitor que avalie?”. De facto, porquê? Por que pudor, tantos anos depois? Para não me pôr em bicos de pés, quando, para minha surpresa, ainda há pouco tempo uma biografia de Melo Antunes refere repetidamente a minha colaboração na sua fase de actividade política nos Açores, ainda eu nem tinha responsabilidades no movimento estudantil?

Não será que é mesmo altura de mostrar que ainda vive gente que não é da geração dos jotas Sócrates, Coelhos e Seguros? E gente que, no seu tempo, não assinava na Pide decalarações de bom comportamento?

(continua)

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Uma cabecinha radiosamente brilhante (ou Solar)

Não destoando da colecção de escritos broncos que o arquitecto solar destila semanalmente, escreve ele hoje o seguinte mimo, num artigo de louvaminha a Maria Luís Albuquerque em que até chega a notar a sua parecença (?) com Angela Merkel, mas para melhor (venha o diabo!):
“(…) fragilizar neste momento o ministro das Finanças, qualquer que ele seja, é fragilizar o regime e fragilizar o país.Ora, se se percebe que o PCP e o BE o façam, não me parece que o PS tenha algum interesse nisso.”
Não se percebe o quê, Sr. Arquitecto (ou romancista policial)? Percebo que, risível hoje a propaganda anti-comunista das criancinhas ao pequeno almoço e da injecção atrás da orelha, se tente passar a mensagem da ideologia antidemocrática (fragilização do regime) e antipatriótica (fragilização do país), como não pode deixar de ser com veneradores de Kim Jong-un ou da memória de Enver Hoja.

O PS deve pensar que figura faz quando esta gente, por contraste implícito ou explícito, o usa como exemplo de uma “esquerda” realista, credível, moderada, bem comportada, etc. 

Tony Blair, ainda virarão as costas ao desfile do teu caixão, como fizeram à senhora de ferro.

NOTA – Notável mas infeliz pai, que tal filho teve.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Dúvidas de ignorante

Já aqui tenho dito que, hoje, um dos principais papéis dos economistas de esquerda, mais do que simplesmente se manifestarem como cidadãos com posição privilegiada, é fornecerem aos seus companheiros de luta, leigos, a informação técnica necessária para fundamentar uma opinião política. Peço-lhes hoje um trabalho destes.

No blogue de Yanis Varoufakis vem uma longa entrevista de James Galbraith (JG), agora novo co-autor da “proposta modesta”, sobre a Europa, a Grécia (e o Syriza), a Alemanha e a América

Logo ao início, JG considera um erro, contra a verdadeira ideia de Keynes (?), que se contraponha ao austeritarismo o estímulo económico e a pretensão de voltar à inicial – considerada como normal – tendência de evolução do “output” potencial. A seguir, enreda-se, a meu ver de leigo, na discussão de constrições que impedem a luta pelo emprego, ao mesmo tempo que propõe alternativas de duvidoso realismo (novas formas de trabalho de serviços avançados, aumento de actividades não lucrativas, desfinancialização dos mercados de energia e de “commodities”, limitação dos efeitos da tecnologia na procura de trabalho, etc.), e enquanto considera ligeiramente a inevitabilidade de desemprego no sector manufactureiro.

A sua defesa de uma “terceira via” (instintivamente, detesto esta expressão!) parece-me mais uma versão do sonho com a fada europeista, em que, afinal, se baseia a “proposta modesta”. Parece-me reflectir, ao que sei, o posicionamento trotsquista e pró-Syriza de Varoufakis e, provavelmente, dos seus amigos e co-autores, como, aliás, expressamente manifestado nessa entrevista, com elogio à posição pró-europeia do Syriza e uma entusiasta admiração pessoal pelo seu líder, Alexis Tsipras.

Segundo JG, o estímulo não é alternativa imediata à austeridade. “A primeira necessidade é estabilizar o doente, que está à beira do colapso. Isto não significa estimular, não é regressar ao crescimento, ou regressar ao pleno emprego; é impedir um desastre que conduzirá à destruição da zona euro e à dissolução da União Europeia”

Pergunto eu, ignorante: porque é que, para JG, mais importante do que resolver a crise dos periféricos é manter a todo o preço a integridade da zona euro? E é correcto afirmar que uma política de estímulos a curto/médio prazo é pseudo-keynesiana?

(Imagem – um "cartoon" sobre  "A Modest Proposal" de Jonathan Swift)